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Tá fácil.

Tá fácil.

| Sally | | 22 comentários em Tá fácil.

Tenho visto umas novas gerações reclamarem muito das “dificuldades” em flertar, em conseguir parceiros, em conseguir relacionamentos, como se estivéssemos em tempos difíceis. Pois bem, não estamos.

Difíceis são vocês, floquinhos de neve especiais, que, de tão mimadinhos pelas facilidades da tecnologia, não suportam fazer um esforço. Deixa a tia Sally te contar o que era realmente difícil, para você não reclamar de barriga cheia. Observe a realidade da minha geração e pare de reclamar.

Vamos começar pelo primeiro estágio: conhecer gente. Quando não existiam redes sociais, antes da internet, antes de aplicativos, nós precisávamos sair para conhecer gente. Não só sair, como interagir com estranhos até conseguir encontrar uma pessoa com a qual tivéssemos um mínimo de afinidade e atração.

Não tinha essa de mandar fotinho cheia de filtro, editada, ou tirada do melhor ângulo, com a melhor luz, depois de cem tentativas. Era você, ao vivo e a cores, que tinha que ser atraente. Isso significa que sair com um layout escroto para ir ao banco, ao supermercado ou à padaria poderia ser sinônimo de minar uma chance de conhecer alguém legal. Tínhamos que estar apresentáveis o tempo todo. Toda ida na rua podia ser produtiva.

E estar apresentável não era tão fácil. Não havia facilitadores como escova progressiva, para manter o cabelo sempre lisinho, ou babyliss para manter sempre cacheado, era o cabelo que Deus te deu e faça as fazes com isso. Não havia maquiagem de boa qualidade (e com uma variedade decente de cores) e não existiam nenhum dos procedimentos atuais, desde canetinha para emagrecer até depilação definitiva, que te ajudassem. Ou você fazia tudo na raça, no esforço, ou não fazia. Era altíssima manutenção estar sempre apresentável.

E para os homens também era dureza. Não tinha implante de cabelo, não tinha harmonização facial, não tinha lente de contato nos dentes, não tinha nem remédio para queda de cabelo. Um carro custava muito caro quando comparado ao salário-mínimo e, se você fosse jovem, a menos que fosse de uma família classe média alta para cima, teria que buscar a mulher a pé. E não tinha remedinho azul para ajudar na performance.

Não tinha essa tonelada de informação online, então, o pouco que a gente sabia sobre o sexo oposto (e nem me refiro ao corpo humano) era por tentativa e erro (nossa ou dos amigos) e geralmente ninguém era muito sincero sobre seus fracassos, as pessoas contavam umas histórias de sucesso ficcionais, que, quando você tentava reproduzir, nunca tinham um bom final. Isso quer dizer que você ia para a interação olho no olho com pouquíssimo ou nenhum preparo.

Não existia fórum de discussão, tutorial no Youtube e nem ao menos essa mentalidade de acolhimento. Se faziam algo escroto com você ou se você fazia alguma besteira, basicamente tinha que lidar com as consequências dos seus atos, sem poder contar para o mundo (no máximo para algum amigo mais chegado). Não tínhamos essa noção de que certas coisas acontecem com todo mundo. Ninguém recebia afago da coletividade quando algo dava errado. Especialmente homens.

Os padrões de comportamento aos quais estávamos expostos eram péssimos. Você já viu, por curiosidade, um capítulo de alguma novela da década de 80/90? É tenebroso. O machismo, a insensibilidade, a babaquice. Aquilo era vendido como algo bonito, fodão. Pessoas fumando eram consideradas atraentes. Uma pessoa traindo era sexy. E o layout de ator na época era totalmente destoante da genética brasileira, não tinha como uma pessoa média chegar remotamente perto daquilo, seja pela aparência, seja pela produção.

Roupas eram artigo de luxo: não havia essa variedade nem esses preços de hoje. A roupa era cara e não tinha muitas opções. Se você queria estar “na moda”, tinha que usar a marca X, que sempre era caríssima. E pulávamos de modismo em modismo, um mais caro do que o outro: mochila da Company, tênis da Redley, moletom da Pakalolo e por aí vai. Não tinha substituto, ou você usava o modismo da vez ou estava fora de moda. Íamos para o campo de batalha quase todos fora de moda.

E mesmo quando nossos pais se comoviam e atrasavam o aluguel para comprar o modismo da vez, não havia a variedade de roupa que vemos agora. Mesmo modelo, três cores diferentes. Escolhe uma e usa até não caber mais ou até se desfazer. Vai para o cinema, para a festa, para a excursão, tudo com a mesma roupa.

Geralmente, quem não fosse muito privilegiado, tinha uma, duas ou no máximo três roupas de sair. E era com isso que você tinha que se virar em todos os eventos que fosse. Nem perfume era algo acessível, muita gente só jogava o desodorante pelo corpo para se perfumar.

Os eventos sociais de pegação geralmente se resumiam a festas. Não grandes festas, festinha caída no play de alguém. Você nunca sabia quem ia e quem não ia, pois não tinha celular para confirmar quem vai chegar e quando. Era sempre uma taquicardia esperando que aquela pessoa que você queria que fosse chegasse. Todos nós fomos a festas que foram um completo desperdício, mais de uma vez. Perdia-se tempo, energia, dinheiro e preparo.

E nas festas, meus amigos, você não podia contar com nada além da sua aparência e desenvoltura. Não tinha seu número de seguidores para te tornar interessante, não tinha fotinho com o grupo ou selfie para mostrar o quanto foi legal. Normalmente eram umas festinhas caídas, nas quais mulher levava algo para comer e homem levava algo para beber e a festa toda costumava girar em torno de… dançar.

Isso mesmo, durante muitos anos o grande peneirão acontecia na pista de dança. Era lá que os meninos chegavam nas meninas. Se eram mais jovens, em festinha de play ou matinê. Se eram mais velhos, em boates. Mas era sempre na pista de dança. Você tinha que, no mínimo, fingir que dançava.

Quem é +40 aqui certamente já se humilhou dançando o que não queria para tentar pegar mulher (deixe nos comentários se o seu coração mandar, queremos rir). Existiam as músicas da moda, que tocariam em qualquer festinha. Nos tempos mais obscuros, uma febre de lambada humilhou os homens como nunca antes na história do país. Para pegar mulher homem tinha que tentar dançar lambada, Senhores. Pensem bem se vocês têm motivo para reclamar.

Também teve um tempo obscuro do axé. Aonde você ia, tocava axé e tinha que dançar, caso contrário você entrava no grupo marginalizado antissocial e inferiorizado que ficava às margens da pista de dança, um grupo que reduzia muito suas chances de pegar alguém.

Mas não bastava chegar e correr para a pista de dança não, ali era só para finalizar todo um trabalho pregresso de vender bem a você mesmo. As pessoas tinham que procurar aptidões que as tornem valorizadas, já que não tinha como postar fotinho das realizações online. Não fazia muita diferença ter viajado para lugares lindos, ter comido pratos maravilhosos ou qualquer outra “realização” do passado. Ninguém via.

Você não entrava com status pregresso para te ajudar. Importava o que as pessoas viam quando olhavam para você, naquele momento. Tinha que ser interessante ao vivo, no improviso, na frente da plateia, mesmo com uma roupa escrota repetida 500 vezes. Se você não fosse aquele um e um milhão que nascei belíssimo, tinha que se virar para conseguir chamar a atenção.

Quem não era abençoado pela genética, (e poucos eram/são) tinham que encontrar e aprimorar outros atrativos para que, na interação olho no olho, despertassem interesse. Tocar violão, ser muito bom de conversa, ser bem-humorado e muitos outros recursos eram testados e desenvolvidos. Havia um empenho real em se aprimorar, não por evolução pessoal, mas para pegar gente mesmo.

E você não podia pensar com calma no que ia “postar” para ser atraente. Era na hora, em tempo real, no calor do momento. Não é tão fácil quanto parece. Uma coisa é estabelecer uma imagem online, pensando com calma em cada passo e depois só sustentar. Outra é ter que construir essa imagem em tempo real. E sustentar.

A imagem física também era um desafio. Ninguém lembraria de você como sua foto de perfil de uma rede social e sim como você se apresenta em uma festa. E se já era difícil se apresentar de forma bacana, terminar uma festa de forma atraente era pior ainda. Quase tudo que se fazia em matéria de beleza era gambiarra, já que no Brasil quase não entravam produtos importados e a indústria brasileira não fabricava muita coisa além de Monange. Maquiagem borrava, desodorante vencia. Não era fácil.

Se alisava o cabelo com ferro de passar, se hidratava o cabelo com babosa, se usava aquele batom hediondo verde, que você passava na boca sem ter a menor ideia da cor na qual iria se transformar (e sempre se transformava na pior cor, um vermelho menstruação que fazia o lábio parecer uma peça de carne do açougue). Spoiler: durava 24h e não saía da pele nem com água sanitária.

O máximo de beleza que conseguíamos alcançar era baixo. Não dava para se garantir nisso, a menos que você fosse muito privilegiado geneticamente – e quase nenhum de nós era, ao  menos não eu. Todos os dentes retos e brancos? Causaria até estranhamento. Pele perfeita? Esquece, impossível. Corpo com pouca gordura? Altamente improvável. Você ia para a vida com o que mãe natureza te deu, podendo fazer pouquíssimas modificações. E tinha que jogar com outras ferramentas, outras habilidades… ou se conformar em pegar uma pessoa não tão bonita.

O máximo que a gente conseguia, em termos de beleza, era passar um gel New Wave no cabelo ou um brilho labial que vinha dentro de uma embalagem que simulava um morango. Espinha no rosto? Se fode aí, compensa sendo muito legal. A gente era o que era e tinha que encontrar dentro da gente armas para lutar esse jogo da conquista.

E mesmo no campo da conversa, nada era fácil. Não era possível ver redes sociais do outro para saber quais eram seus interesses e nortear a conversa para esse lado. A gente entrava em uma conversa sem ter a menor ideia de quem a pessoa era, se era solteira ou não ou do que ela gostava. Não raro falávamos algo que ia totalmente de encontro como o que a pessoa gostava, era altamente constrangedor.

Pense no tempo que você precisa interagir com alguém em redes sociais para conhecer melhor a pessoa e imagine que esse mesmo tempo deveria ser gasto em encontros presenciais, para conseguir criar alguma conexão com a pessoa. Não era possível fazer algo multitarefas: conversa com a pessoa enquanto trabalha, enquanto faz o almoço, enquanto faz compras. O tempo era usado 100% para o outro. Pensa no trabalho e no tempo que levava fazer tudo presencial.

E muitas vezes a gente investia bastante tempo em conhecer uma pessoa e depois de todo esse investimento, descobria um obstáculo inegociável (o fato de a pessoa ser comprometida, o fato de a pessoa fumar ou qualquer outra coisa) que nos obrigava a jogar fora todo o trabalho. Tinha zero conversinha de responsabilidade afetiva, todo mundo mentia e pronto, você que lide com isso.

Quando a pessoa mentia para você, você só descobria em um futuro distante. Não existia foto de rede social para provar que ela não morava em determinado bairro ou que ela não estava viajando a trabalho. A peneira, meus amigos, era muito, mas muito difícil, pois cientes disso, todo mundo mentia muito.

Imagina só, homem falando de si mesmo sabendo que as chances de uma mentira ser descoberta são mínimas. Tá decepcionado porque descobriu que o contatinho votou no político X? Na nossa época a gente descobria que o contatinho era pai de família ou procurado pela polícia!

E se você tivesse a sorte de pegar alguém e essa pessoa não estar mentindo para você, seus desafios estavam só começando. Não havia celular, o que significava que, para falar com a pessoa novamente, você teria que ligar para a casa dela (se, com sorte, ela tivesse telefone fixo) e correr o risco de falar com o pai ou com a mãe dela. Era uma taquicardia ligar para os outros, você nunca sabia quem ia atender.

E não era fácil falar com a pessoa de primeira, pois para isso, a pessoa precisaria estar em casa e a linha precisaria estar desocupada. Era muito comum ligar e ninguém atender, o ligar e o telefone estar ocupado, ou ainda ligar e falar com pai/mãe e eles te avisarem que a pessoa não está. Era todo um processo. Geralmente demandava pelo menos umas 5 tentativas. Imagina essa geração que tem medo de falar ao telefone tendo que passar por isso cada vez que quer falar com seu ficante…

Se finalmente você conseguisse falar com a pessoa e tivesse a sorte dela topar sair com você, precisava marcar dia e hora para o encontro. E quando chegava o dia e hora, torcer para que a pessoa esteja lá, pois não era possível avisar em caso de atrasos ou imprevistos. A vida sem celular era bem desafiadora. A gente ia mais nunca tinha certeza se o outro de fato estaria lá. Não por te rejeitar, podia acontecer qualquer imprevisto e a pessoa não teria como te avisar.

Isso te colocava em um exercício muito cruel de autoestima: quanto tempo esperar caso a pessoa não apareça na hora marcada. A pessoa marcou às 20h com você em um lugar público, mas são 20:20 e ela não chegou. Você sabe que ela não vai poder te avisar se acontecer um imprevisto, seja de falta, seja de atraso.

O quanto é digno esperar? Quando ir embora? Era uma decisão difícil quando estávamos realmente interessados na pessoa. E geralmente os locais de encontro eram locais públicos, como porta do cinema ou restaurante, então, todas as outras pessoas podiam assistir sua espera ansiosa. Vocês ficam aí chorando ghosting quando a pessoa não responde um Whatsapp? A gente se arrumava todo, ficava plantado e todo mundo assistia a nossa humilhação!

E mesmo que desse tudo certo, fatalmente, vocês teriam outros encontros, então, isso se repetiria outras vezes: ligar e falar com o pai da menina, ter que se arrumar com pouquíssimos recursos, ter aquela taquicardia de não saber se a pessoa vai atrasar ou te deixar plantado esperando… Namoro era basicamente esse grande combo.

Não tinha como se falar o dia todo. Não tinha como saber onde o outro estava, o que estava fazendo ou se estava bem. As pessoas se falavam, no máximo, no final do dia para contar rapidamente (ligação telefônica já custou muito caro) como foi o dia.

Dividir problemas? Pedir conselho? Conversas profundas? Só no final de semana. A gente ia construindo intimidade e proximidade final de semana a final de semana. Demorava muito mais. O que essa geração faz em seis meses a nossa demorava anos para construir. E os bonitos reclamam que tudo vai muito devagar na vida deles…

O lazer também era muito limitado: cinema, pracinha, casa dos outros, festinha. Não fugia muito disso, a menos que sua família fosse rica. Isso nos obrigava a focar mais nas pessoas do que nos lugares, mais na conversa do que no espetáculo. É bem mais desafiador sustentar algo só na base das pessoas. Essa nova geração enjoa fácil do outro? Imagina quanto duraria quando o programa era só sair para comer um cachorro-quente e ficar conversando olho no olho.

Já ultrapassei uma página do meu limite e não cheguei nem perto de cobrir todos os perrengues que passávamos quando éramos jovens. Se interessar, posso fazer uma continuação. O fato é que hoje a vida tá fácil, tá muito fácil. Se está difícil para você conhecer gente, bem, desculpa te informar, a responsabilidade é só sua. Pare de reclamar e busque ferramentas para: 1) aprender a escolher pessoas boas e 2) conseguir se conectar com elas e construir algo.

E… sério mesmo, deixa nos comentários as suas maiores humilhações na pista de dança para tentar pegar alguém. Todos nós precisamos dessa alegria.

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