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Palavras ao vento.

Palavras ao vento.

| Somir | | 6 comentários em Palavras ao vento.

Há muito tempo eu percebo uma espécie de achatamento do vocabulário humano. Não necessariamente uma diminuição de número de palavras conhecidas pelo cidadão médio, porque historicamente sempre foram poucas mesmo, mas no número de significados delas. Parece que até mesmo as palavras se tornaram extremistas…

Eu entendo que toda língua muda com o passar do tempo. O ser humano está otimizando sua comunicação há milênios e não há lógica nenhuma em querer impedir esse progresso. Simplificamos palavras que usamos muito, adotamos novas ou ressignificamos antigas de acordo com intercâmbio cultural e novas tecnologias, e até mesmo inventamos algumas do nada para expressar situações e sentimentos ainda não cobertos pela língua que usamos.

Língua parada no tempo é língua morta. Hoje eu não estou aqui para reclamar de abreviações, gírias e emojis, estou mais preocupado mesmo é com a forma exagerada como muita gente vai empilhando palavras nos extremos de cada sentimento. Em tempos de pouca nuance nas posições políticas do cidadão médio, esse radicalismo no vocabulário só aumenta as tensões.

A minha teoria é que a tecnologia é mais culpada por isso do que gostaríamos de acreditar. Com a internet, muita gente teve suas primeiras experiências em se expressar através de texto. Sem a ajuda do olho no olho ou do tom da voz, muita coisa que expressávamos com naturalidade ficaram estranhas na escrita. Há mais de 20 anos as pessoas brincam (sério) que a internet deveria ter algum símbolo para expressar sarcasmo. Passar tudo o que sente numa sequência de palavras escritas é tarefa complexa, um misto de arte e ciência que poucas pessoas dominam.

Para a maioria de nós, é questão de soltar a informação na grande rede e torcer pelo melhor. E até por isso, é razoável exagerar um pouco. Escrever que está furioso quando está mais ou menos incomodado, dizer que está rolando de rir no chão quando só sorriu um pouco, dizer que ama algo pelo qual tem algum apreço… aprendemos a nos fazer entender nesse meio através da hipérbole. E com o tempo, isso vai virando uma guerra. Quando todo mundo grita, você se sente obrigado a gritar também.

E pelo visto, a primeira geração a formar seu caráter com a presença constante da internet, os millenials, é justamente uma das gerações mais radicais que já vimos. Não importa o lado do espectro político que se encontrem, não há muito espaço para moderação. Os sentimentos flutuando entre os limites de cada ideia sem nuance nenhuma. E o impacto disso não acaba nesse geração: os mais velhos vão reagindo de forma cada vez mais ávida se perdendo em conspirações (algo mais relacionado com uma visão de mundo antiga de pouca gente controlando a informação) e especialmente as novas gerações, que já chegam nesse mundo debaixo de um tiroteio e acabam se dessensibilizando com tanta loucura.

Mas vamos ser mais práticos. Hoje em dia não custa muito para ser chamado de coisas que seriam acusações gravíssimas algumas décadas atrás. Não sei como isso vai se adaptar à parda realidade brasileira, mas nos EUA todo mundo que você não gosta é supremacista branco. Não há mais nenhuma preocupação em acusar alguém disso. E francamente, cada vez menos repercussão.

Deveria ser algo muito sério: para receber essa pecha antigamente, precisava ter visões de mundo bem violentas, acreditando na superioridade racial dos brancos como justificativa para erradicar ou escravizar outros povos. Um supremacista branco deveria ser alguém de quem temos medo e precisamos eliminar das sociedades modernas antes que fatalmente cometam atos terríveis de violência. Hoje em dia, supremacista branco é um youtuber que disse uma palavra racista num vídeo uma vez há dez anos atrás.

Caps Lock não é mais a forma de gritar na internet, o importante é exagerar absurdamente no peso da palavra usada para descrever. Ultimamente vimos diversos casos de homens mais velhos dando em cima de garotas de 15 ou 16 anos e sendo chamados de pedófilos. Sério? É um comportamento louvável? Não. É a definição de pedofilia? Também não. Um Zé Ruela em crise de meia idade correndo atrás de uma jovem que nem prestou vestibular é meio patético, mas não muito mais do que isso. Natural querer coibir o comportamento, mas não jogando no lixo uma palavra séria como pedófilo.

Se vai marcar alguém com essa palavra, que seja para proteger crianças, não para envergonhar alguém que você acha meio babaca. Mas a sanha de gritar na internet é tão grande que não importam as consequências. Não importam as palavras que perdem o peso quando não descrevem mais o que deveriam descrever.

Acha que é sacanagem colocar uma transexual com o dobro da massa muscular da mulher média para disputar um esporte de contato na modalidade feminina? Você vira transfóbico. Ou seja: você tem fobia, medo irracional de transexuais se acha que algo que está vendo com os próprios olhos está errado. Não se sente sexualmente atraído por transexuais? Medo irracional também. O sufixo fobia é um dos mais afetados por essa corrida rumo ao volume mais alto na internet. Fobia agora é discordar.

E parece que eu só vou bater no lado esquerdo das coisas, mas a direita abraçou a mudança numa boa: quer explicar para crianças como funciona o sistema reprodutor delas para evitar problemas futuros? Pedófilo! É a favor do direito ao aborto? Assassino! Acha que o governo precisa melhorar seus programas sociais? Comunista! Quer dar menos importância para as insanidades escritas em seus livros sagrados? Cristofóbico!

Eu não sei quanto tempo vamos resistir a essa escalada de gravidade nas palavras usadas. Nem tanto pelo ângulo de gerar uma guerra mundial, mas mais pela fadiga que isso tende a causar. Misógino, racista, homofóbico, fascista, comunista… já são palavras que não tem o mesmo peso de antes. Quando você percebe que a maioria das pessoas ao seu redor já foram chamadas disso, a tendência é relativizar. Ainda cola em redes sociais, mas na vida real virou piada. Eu gostaria de saber se algum amigo meu fosse misógino, porque eu provavelmente deixaria de ser amigo dele e tomaria muito cuidado de deixar mulheres por perto dessa pessoa. Mas, se ele é misógino porque acha que pensão alimentícia é algo errado… bom, você pode até discordar dele, mas não é algo que realmente coloque em risco as mulheres ao seu redor.

O perigo é que percamos a noção dessas palavras. Misógino pode ser alguém que deseja matar mulheres com toda a fúria de seu ser, ou pode ser alguém que expressou uma opinião crítica contra uma mulher num caso específico. A lógica nos diz que na dúvida, é mais provável que seja o segundo caso. Se tanto homem fosse misógino assim, não ia ter mais muita mulher nesse mundo… quanto mais metade da população humana.

O racista pode ser quem deseja a volta da escravidão ou pode ser alguém que falou mal do cabelo de uma apresentadora de TV. O homofóbico pode ser quem ataca gays na rua ou quem faz cara de desgosto quando vê dois homens se beijando. O pedófilo pode ser quem abusa violentamente de crianças de colo ou pode ser alguém que elogiou uma jovem de 16 anos no WhatsApp. Nós realmente queremos que todos esses casos sejam pressionados pra caber nas mesmas palavras?

Bons os tempos em que eu reclamava das pessoas dizerem que amavam qualquer coisa, chamavam de épico qualquer feito mediano, diziam que odiavam uma comida que não lhes apetecia muito… a coisa está piorando, e piorando para esvaziar o significado de muitas das mais sérias acusações que um ser humano pode fazer. E ênfase em esvaziar. Talvez daqui a alguns anos ninguém se importe muito de pesquisar sobre uma pessoa e ver que ela tem múltiplas acusações de racismo, misoginia, transfobia… porque talvez seja um nazista terrível, mas muito provavelmente é só alguém que falou umas merdas quando estava estressado.

E é aí que as pessoas realmente perigosas desses mundo vão conseguir se esconder na multidão. Se todo mundo é supremacista branco, ninguém é supremacista branco, não? Talvez a língua tenha que se renovar, achando palavras ainda mais hiperbólicas ou reaproveitando algumas medianas que caem em desuso. Mas enquanto isso, os piores exemplares de nossa espécie só têm a agradecer: nada melhor para sua imagem do que ter virtualmente toda pessoa famosa na mesma categoria que elas.

Quando a acusação vale mais que o julgamento, o crime fica em segundo plano.

Para me chamar de meio babaca, para dizer que não concorda com alguns pontos mas tudo bem, ou mesmo para dizer que foi um texto bem razoável: somir@desfavor.com


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