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Descult: A Artista Está Presente.

| Somir | | 68 comentários em Descult: A Artista Está Presente.

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Entre os dias 14 de Março e 31 de Maio de 2010, o Museu de Arte Moderna de Nova Iorque (MoMa) exibiu uma “instalação” chamada “The Artist Is Present”, de Marina Abramović. Marina, cujo sobrenome vou evitar que nem a peste por causa da letra final que não encontro em meu teclado, sentou silenciosa encarando fixamente visitantes do museu, durante horas, todos os dias. E se você já está achando chato, saiba que eu vou recomendar o documentário feito sobre esse acontecimento. Vai encarar?

Marina é uma daquelas artistas performáticas que adora “chocar a sociedade”, arquitetando e executando as mais diversas sandices para chamar a atenção das pessoas. Vocês imaginam o tipo, não? Pessoalmente, nunca fui muito fã desse tipo de arte, acho tudo simbólico demais, com exceção, é claro, da nada discreta vontade de aparecer. Entendam que não estou entrando nesse texto com a pretensão de demonstrar bagagem cultural, afinal, não estamos num lugar onde sensibilidade artística seja exatamente um predicado a ser anunciado. Ainda bem, que fique registrado.

Onde eu estava? Ah, sim… Marina. Apesar do preconceito inicial pelo seu campo de atuação, não posso negar exista um quê de trollagem nesse tipo de interação com a sociedade. Com a estratégia correta, esses arroubos de expressão artística podem gerar o interessante efeito de desmascarar as pessoas ao seu redor. Marina passou boa parte de sua carreira pelada, fazendo coisas estranhas e mantendo a pose de “alternativa”. Já gozava de relativa fama nos circuitos mais “artísticos”, mas estava afim de passar um pouco de tempo debaixo dos holofotes e ser lembrada por algo a mais do que suas esquisitices habituais.

E não sou eu fazendo uma presunção, ela mesma declara que queria mesmo chamar atenção. Não fez pose, assumiu o objetivo. Achei digno. Digno por vir de quem vem: Pode-se culpá-la de várias coisas, mas uma delas com certeza não é oportunismo. Marina passa a impressão clara de que realmente se importa e acredita no que está fazendo. Direito de cada um achar arte performática e intervenções babaquice, em muitas situações eu também acho, mas há de se louvar quem pelo menos faz isso porque quer, gosta e acha que tem função.

Essa pequena defesa logo no começo do texto é para TENTAR conter narizes torcidos e olhos revirados ao descrever sobre o que se tratava a instalação “A Artista Está Presente”: Marina sentava-se em uma cadeira, no meio de um espaçoso espaço quadrado dentro do museu, e as pessoas (qualquer uma) podiam se sentar logo a sua frente para encará-la, olhos nos olhos, sem proferir uma palavra sequer, por pelo menos quinze minutos.

Sim, a arte em questão era olhar em silêncio para os cornos de uma artista por um quarto de hora, levantar-se e ir embora. A exposição foi um sucesso estrondoso, espaços concorridos e inúmeras pessoas levadas às lágrimas só por estar ali. Só de explicar parece meio bobo, e pra mim era justamente isso até VER as cenas no documentário.

O documentário de título homônimo à exposição está passando na HBO, e com um pouco de pesquisa “tapa olho e perna de pau” também na internet. Por si só, é basicamente um apanhadão do dia a dia da exposição, com o básico de entrevistas e escolha de melhores momentos da partida. Muito bem feito, com um ritmo ágil o suficiente para até gente que faz cara feia para arte moderna (feito eu) aguentar o tranco até o final.

O documentário, como todo bom documentário (ouviu, Michael Moore?), não tenta enfiar nenhuma conclusão goela abaixo de quem o assiste. Talvez te faça mudar de ideia sobre essa obra em questão, talvez você continue achando tudo uma pataquada. Mas com certeza deixa o terreno bem preparado para que você mesmo tire suas conclusões. E foi isso que eu fiz.

Para entender um pouco sobre o que eu vou falar antes de assistir, é bom entender um pouco qual é o “layout” de Marina: Ela tinha 63 anos de idade na época do “A Artista Está Presente”, mas se ninguém te avisar, ela passa fácil por uma quarentona. E mesmo com feições pendendo bem mais para o lado exótico (vulgo narigão), ainda sim é uma mulher surpreendentemente atraente e jovial para a idade. E isso é importante para que não se confunda-a com uma mulher que evoca a imagem de matrona propriamente dita. Madura, mas sem aquela aura inofensiva de “vovó”.

As pessoas ficavam esperando sua vez para passar seus quinze minutos em frente dela, e muitas saiam de lá visivelmente abaladas. O tempo todo em silêncio, olhando fixamente nos olhos de outro ser humano. Minha empatia funcionou muito bem nesse caso porque eu nunca gostei muito de olhar nos olhos dos outros, parece uma experiência banal, mas ela claramente carrega um peso impressionante, tanto nas pessoas quanto em Marina.

É visível como depois de algum tempo as duas pessoas começam a se sentir mais vulneráveis. É tenso viver num mundo onde as pessoas tendem a não prestar atenção umas nas outras e se ver como foco central de alguém. As pessoas não parecem preparadas para isso. Apesar de achar meio exagerado, até consegui “entender” quem acabava chorando ou saía de lá desconcertado. É uma guinada brusca na vida de muita gente.

Normalmente eu não vejo o ponto desse tipo de arte, mas dessa vez pegou na veia. Posso estar fazendo o famoso papel do crítico que cria o significado para o artista, mas o importante é que havia ali uma mensagem e uma análise humana a ser depreendida. Nós nos vemos pelos olhos dos outros, a tão desejada atenção é uma via de mão dupla, muitas vezes difícil de lidar.

Tinha gente que estava claramente desconcertada ali, dava para ver na expressão da pessoa que ela estava se sentindo pelada na frente de uma multidão. Tudo isso resultado apenas de uma mulher olhando nos seus olhos por quinze minutos. Isso deve ser método de interrogatório em algum lugar do mundo, parece muito eficiente. Por si só, isso é um insight precioso sobre a mente humana. E essa parte se pega logo ao assistir o documentário.

Mas enquanto o tempo passa no filme, também corre na vida real que se propõe a captar. E é quando a exposição começa a ficar famosa em Nova Iorque e no resto do mundo que as coisas começam a ficar mais divertidas para mim. É quando as pessoas que se sentam ali começam a vivenciar os efeitos da fama alcançada pela instalação de Marina.

No começo, temos várias pessoas que só “curtem o momento”, curiosas pela quebra do cotidiano e o contato com uma artista que teve uma ideia inusitada. Mas quando começam a chegar as pessoas que receberam indicações ou viram as matérias na mídia, a reação começa a ficar mais “catártica”, parece que todo mundo começa a chorar depois de alguns minutos, gente de tudo quanto é canto não está mais numa obra de arte cabeçuda, está vivendo uma experiência quase que religiosa.

As filas começam a aumentar, pessoas começam a acampar fora do museu por dias a fio só pela oportunidade de se sentar em frente a Marina. Agora é algo que as pessoas “precisam experimentar”. E é aqui que meu lado troll começa a guiar a análise. A arte acaba domesticada, transformada em lugar comum, ponto turístico… As pessoas entram na dança porque querem se sentir parte de algo maior.

A babaquice humana volta com tudo. O primeiro passo é a transformação de Marina em uma espécie de deusa, que tudo sabe e tudo vê. Justiça seja feita: Marina nunca parece comprar essa bobagem e mantém uma invejável integridade durante o processo. E parece ser uma rotina extenuante… mesmo sentada o dia todo. São os que sentam a sua frente e se empoleiram ao seu redor assistindo os outros sentarem que vão gerando essa “aberração”.

E aberração entre aspas mesmo. É previsível que as pessoas comecem a se comportar assim, está no coração do processo de idolização tão comum ao ser humano. Mas ao mesmo tempo, isso começa a alienar e desumanizar a artista, virando a proposta de ponta-cabeça. Me parece claro que tem gente chorando e dizendo que sua vida mudou por pura auto sugestão, até mesmo crianças. Uma criança não deveria ter dentro de si “monstros” suficientes para serem desvendados por um olhar fixo de outro ser humano. Deveria ser uma experiência curiosa, não uma catarse.

Muitos babacas aparecem querendo pegar uma carona no sucesso e baratear TODO o processo com a maldição dos quinze minutos de fama. Achei o máximo como os seguranças locais não abriam nenhuma brecha para quem queria fazer daquilo um palco pessoal e dividir a atenção. Não bastava o conceito da exposição, tinham que aparecer mais. A porra da ideia toda era dissociar fama de atenção!

Se esse era o plano de Marina o tempo todo, o que pode ser depreendido pela sua alegada motivação de ser lembrada e deixar um legado, não deixa de ser uma bela de uma trollada nas pessoas que estiveram por lá. As pessoas são tão carentes e sugestionáveis que basta quinze minutos de atenção para uma pessoa se entregar completamente. Muitos(as) saíram de lá se dizendo perdidamente apaixonados, outros praticamente pregando a sobrenaturalidade do momento… Quinze minutos olhando nos olhos de alguém.

Nós aqui no desfavor sempre falamos que trollagem é arte quando você expõe a pessoa pelo o que ela realmente é, sem precisar ser invasivo. E é sublime quando você consegue fazer suas “vítimas” virem até você, pedindo mesmo que por vias indiretas para ser cobaia. Nesse ponto, eu enxerguei “A Artista Está Presente” como uma das formas mais lúdicas e… não acredito que vou escrever isso… poéticas… de trollagem possível. Marina ainda pode ser apenas mais uma intelectualóide movida a pretensão, difícil entrar na cabeça da pessoa para definir isso com certeza, mas mesmo que de forma não intencional, ainda sim tem o mérito de ser mais reveladora sobre a natureza humana do que muitas teses e estudos por aí.

É prática. É um experimento social. E por isso me chamou a atenção como poucas coisas chamaram nos últimos tempos. Altamente recomendado, principalmente se você não entrar nessa querendo colocar expressão artística num pedestal.

Ah, e tem gente pelada.

Para dizer que agora não sabe mais o que eu posso fazer para ser chato, para perguntar se eu estou punindo os leitores por discordarem de mim, ou mesmo para dizer que eu não entendi a proposta da artista (e?): somir@desfavor.com

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