Skip to main content

Colunas

Arquivos

Des Cult: Ninfomaníaca Volumes I e II

| Somir | | 19 comentários em Des Cult: Ninfomaníaca Volumes I e II

descult-ninfomaniaca

Mas pode chamar de “Lars von Trier é uma coisa que colocam na sua cabeça”. Demorei para assistir os polêmicos filmes de Trier sobre a vida de uma viciada em sexo, portanto esta crítica provavelmente está meses atrasada de qualquer pretensão de utilidade. De qualquer forma, o título é atraente e me permite falar mais sobre o meu diretor preferido.

Para quem já esqueceu ou nunca ficou sabendo, Ninfomaníaca é um filme dividido em duas partes que gerou muita polêmica entre o final do ano passado e o começo desse, muito em parte à natureza explícita de suas cenas. O filme conta a história de Joe – uma auto-diagnosticada ninfomaníaca – e suas experiências com centenas de homens desde sua adolescência. Aliás, Joe conta sua própria história: ela é encontrada desmaiada num beco por um homem idoso chamado Seligman, e é para ele (e com ele) que descreve suas desventuras.

Escrito e dirigido pelo dinamarquês Lars von Trier, Ninfomaníaca já nasceu com a certeza da polêmica. O próprio diretor já afirmara que queria fazer um filme pornográfico, e o resultado final foi claramente bem acima do tom nessa parte que a maioria absoluta dos outros filmes da mesma categoria. Os temas e tons pesados já eram conhecidos de seus outros trabalhos, mas dessa vez o grau de indulgência – tanto visual quanto em duração – finalmente fez Trier passar do ponto de presunção de genialidade incompreendida e apanhar de verdade com críticas.

E não me refiro ao público médio “eu achei chato”, essa turma nunca foi grande consumidora do material de Trier; dessa vez foram as pessoas que tem sim paciência e interesse para algo mais complexo que carros explodindo, mas acharam tudo pretensioso demais. Claro que as críticas foram infiltradas por gente pudica demais (eu ouvi um Aleluia?) para encarar o desfile de sexo explícito durante todo o filme, mas dessa vez gente com cérebro meteu o pau (ha).

E é para elas que eu me dirijo, ou pelo menos é a partir desse ponto de vista que vou discorrer sobre minha discordância: Ninfomaníaca é um excelente filme de um excelente diretor. E toda a suposta pretensão envolvida ali está exclusivamente na cabeça de quem vê. Sair decepcionado de uma sessão de Ninfomaníaca de Lars von Trier é mais ou menos como sair decepcionado de uma exposição do Picasso porque as “pessoas não se parecem com pessoas”.

Se você pensar no uso estendido da palavra pornográfico, vai começar a entender que dessa vez a pornografia de Lars calhou de estar vinculada com sexo, antes disso seus outros filmes sempre lidaram com exageros de tom. Pense em pornográfico como algo explícito e declarado. Exemplos: Dançando no escuro – aquele com a Björk – é a pornografia da tristeza. Não tem insinuação ou sutileza, é um filme que quer te deixar triste e vai até as últimas consequências para conseguir. Anticristo? Pornografia do desconforto. Dogville? Pornografia da podridão humana. Melancolia? Adivinha…

Ninfomaníaca é a pornografia da pornografia. O sexo está lá para te fazer se sentir sujo, para que você consiga entrar no estado de espírito de alguém que perdeu qualquer presunção de sexualidade como algo bonito e natural. Quase todo filme segue a fórmula de gratificação instantânea com arrependimento imediato. O filme é para ter essa pegada “cinema pornô depois de uma semana sem limpeza” mesmo. Tonto é quem vai ver o filme esperando uma análise tocante e delicada sobre a natureza humana.

Há de se tomar muito cuidado com essa coisa de enxergar pretensão demasiada no que foge da norma. Com certeza existem muitos casos de gente que junta meia dúzia de palavras, sons ou imagens e se finge de gênio debaixo da cortina da incompreensão, mas eu acho uma sacanagem apontar para Lars von Trier e dizer que ele está forçando essa barra. Está tudo lá, muito na cara. Se você está enxergando muita coisa a mais, está analisando um material que nem existe.

Lars von Trier é um dos responsáveis pelo movimento Dogma, que apesar de parecer a coisa mais pretensiosa do mundo, na verdade é justamente o oposto: é uma câmera na mão e uma história para contar. Se a história não segurar e os atores não prestarem, não tem nenhum outro jeito de fazer o público assistir. Ele ainda guarda algumas das manias dessa época do Dogma, no Ninfomaníaca mesmo vemos várias cortes de câmera para mesma câmera, sinal de que mesmo com o dinheiro que conseguiu levantar, ainda estava teimando em filmar do jeito que ele queria e botando um caminhão de pressão nas costas dos atores. Se errar, vai aparecer no filme, mesmo que indiretamente.

O filme é mesmo a história de uma mulher viciada em sexo e todos os problemas que isso trouxe à sua existência. O ponto de vista de Seligman é mesmo o de alguém que precisa dar muitas voltas para compreender o que ela fala. A ninfomaníaca e o assexual. Um escritor e diretor tem que escolher cenas e momentos para descrever, se Trier resolveu que aqueles ilustravam melhor a história que criou… que assim seja. Cada um depreende o que quiser delas. Arte não deixa de ser o que o público quer que ela seja.

Pra mim o ritmo incomum do filme é uma analogia ao comportamento sexual de Joe: não há um objetivo a ser alcançado a longo prazo. É uma série de clímax rápidos que eventualmente te esvaziam. Era isso o que Lars von Trier queria que entendêssemos do filme? Foda-se! Ele já se comunicou por sua obra, o que quer que ele quisesse falar já está falado. Aqui que entra a sua compreensão sobre o que está consumindo. Nunca dependi da crença que o diretor de um filme estava querendo que eu sentisse algo para efetivamente sentir algo. O filme é seu a partir do momento em que você começa a assistir.

Gosto da alma “pornográfica” dos filmes dele, mas gosto muito mais da liberdade que se tem para entender as coisas que o estilão “Animal Planet” permite. Sim, Lars von Trier parece um documentarista filmando chimpanzés na floresta. Eu provavelmente tenho essa impressão por ser uma pessoa distante eu mesmo, mas mesmo depois dos filmes mais “dogma” ainda dá para se sentir um voyeur na maioria das cenas que ele filma. Essa é a cena, essas são as pessoas… Identifique-se se quiser, senão, observe.

O estilo é arriscado, com certeza. A maioria dos filmes de mais sucesso comercial faz das tripas coração para que o espectador se sinta parte da história e eventualmente saciar suas fantasias pelas personagens que assiste. Acho que em todos os filmes dele que eu vi até hoje aconteceu alguma situação onde dá vontade de quebrar a quarta parede você mesmo e mudar os rumos da história. Entendo porque muita gente não tem estômago ou paciência de ver esses filmes, o papel de testemunha pode ser desgastante mesmo. Ainda mais no frequente mundo cão de suas histórias.

Acho até que no fator “tragédia” Ninfomaníaca é o filme mais light dele. Ainda atribuo ao ideal de te deixar se sentindo vazio depois de ver o filme, mas se você não fizer um esforço para entrar na cena, dificilmente vai sentir alguma coisa. É como se ele estivesse dizendo: já fiz a minha parte, agora faz a sua. A turma do “é pretensioso demais” provavelmente estava esperando um convite mais direto para se engajar na história. Duvido que essa seja a ideia do filme, não foi à toa.

Mas falemos mais sobre o filme em si. A partir de agora eu vou tender mais aos spoilers, mas não é exatamente um filme de grandes reviravoltas. Você passa quase toda a história preso com Joe na sua estrada rumo à decadência. De qualquer forma: avisados, ok?

Se tem uma coisa que eu não cedo aos críticos de Trier é a questão da qualidade visual e sonora das cenas. Se Melancolia e Anticristo permitiram cenas mais fantásticas, Ninfomaníaca provou que ele consegue tirar leite de pedra, são poucas as oportunidades de montar imagens em locais que não sejam cinzas e/ou banais, mas mesmo assim o nível de fotografia e sonografia médio é altíssimo. A sequência de abertura é espetacular, e tudo na cena é “feio”.

E mesmo nas cenas mais fortes, ainda tem muito chão entre pornografia tradicional e a meta pornografia de Ninfomaníaca: dá para pegar o ângulo mais explícito e mesmo assim encher a cena de significados. Seja vergonha, seja afastamento emocional, seja culpa, seja humor… cada cena de sexo tem muito mais cuidado e propósito que a média, inclusive de filmes tradicionais. Tem algumas ideias de cena que só dariam certo com genitálias em plena vista mesmo… Não deixe isso mexer demais com seu julgamento: via-de-regra Lars von Trier não colocou essas cenas só para mostrar gente pelada.

E até por essa necessidade, o diretor precisou recrutar um misto de atores desconhecidos e meio esquecidos (vulgo sem nada a perder) com seus de confiança: Charlotte Gainsbourg e Stellan Skarsgård são excelentes como os principais e são figurinhas carimbadas de outros longas do diretor. A ninfomaníaca e o assexuado. Muita gente pareceu irritada com a dinâmica, principalmente nas inúmeras interrupções do velho virgem no meio das histórias de Joe. Muito prolixo, muito professoral… concordo, mas alguém parou para se perguntar como escrever um assexual nessa história? Evidente que ele teria que agir daquela forma. Se queriam outra personagem na história, que escrevessem sua própria.

Seligman é a prova do que eu falo sobre o modo distante que Lars trata suas personagens. Não dá para se identificar muito com ela, e não dá para se identificar muito com ele. Ou você aceita o papel de testemunha, ou vai sair cuspindo abelhas do cinema e repetindo o mantra da pretensa pretensão. Não é filme para você se imaginar como alguém mais corajoso ou inteligente do que é na vida real e “gozar com o pau alheio”. Não gostou? Problema seu. O filme não tenta te acomodar.

Se você tentar se inserir na história a qualquer custo, periga perder cenas brilhantes como a de Uma Thurman, fazendo o papel de uma esposa traída tentando fazer seu marido banana e a amante (Joe) sentirem-se culpados. Humor negro da melhor espécie, pornografia de culpa entregue muito além da conta. Chega uma hora que você quer ver até onde vai, mas também quer sair dali. A câmera parece uma invasora, e você fica impregnado por essa sensação. Não era mesmo para você se identificar com ninguém ali, o filme está criticando todos os envolvidos. Sabe quando rola aquele clima na mesa de jantar na casa de desconhecidos?

Quando Joe se encontra com um grupo de suporte para viciadas em sexo, a sensação de estranhamento te permite uma visão diferente das coisas. Joe faz um discurso sobre como as outras participantes são todas reprimidas, como estão apenas fingindo ter uma doença para não assumir que gostam mesmo da vida que levam. O jeito que ela entrega o discurso é para convencer mesmo que Joe tem o ponto de vista mais honesto. Mas se você conseguir se manter “fora” dela, vai captar a soberba e a defesa de interesses óbvia típica de um viciado; ela quer se enxergar como superiora a qualquer custo. Joe não é mocinha nem vilã, empatia com a personagem só estragaria essa cena.

Na minha opinião, Joe é a personagem secundária do filme. Seligman – o assexual virgem – é que entrega as duas conclusões mais poderosas de toda a história. Uma por pensar fora da caixa, outra por demonstrar que na prática a teoria é outra. Joe passa o filme descrevendo comportamento sexual promíscuo, falta de interesse pela família (ela abandona o filho e o marido para se encontrar com um “dominador” profissional) e muitos casos de tirar vantagem do sexo oposto.

Seligman faz uma pergunta CLARAMENTE para a plateia: Se Joe fosse homem (o nome não era à toa), ela pareceria um ser humano tão horrível assim? Não sei quanto a quem também viu o filme, mas isso me pegou de calças curtas (ha). Se ela fosse homem a história pareceria bem menos dramática. E muito mais gente estaria disposta a perdoar Joe homem…

De uma certa forma, Seligman “absolve” Joe no final. Joe faz um voto de castidade, comprometendo-se a se tornar assexual na marra. Seligman sai do quarto, e deixa Joe dormindo sozinha, comprometendo-se a ajudá-la em sua nova vida.

E todos são felizes para sempre.

SPOILER
Até que Seligman volta para o quarto e tenta fazer sexo com Joe, afinal, ela faz com qualquer um… Joe entra em pânico e mata Seligman.

E todos são tristes para sempre. Agora sim é um filme do Lars von Trier!

Para dizer que para uma análise de um filme eu quase não falei dele, para dizer que eu sou pretensioso por achar algo interessante, ou mesmo para dizer que se dá trabalho para apreciar só pode ser uma porcaria: somir@desfavor.com

Comentários (19)

Deixe um comentário para darwin Cancelar resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado.