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Somir Surtado: Sai da esquerda!

| Somir | | 12 comentários em Somir Surtado: Sai da esquerda!

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O limite da avenida é 60. Não é nem que você esteja com pressa, mas quase ninguém ao redor, você sabe que não tem radar, uma bela descida acaba de te embalar… 100, 110, 120… só que tem um carro na sua frente. A 60 quilômetros por hora. Na faixa da esquerda e sem dar nenhum sinal de abrir passagem. O que você faz?

Agora eu poderia listar cada uma das possibilidades mais comuns e traçar paralelos com a personalidade de quem faz cada uma dessas escolhas. Poderia, mas não vou. Que esse tipo de bobagem típica de gente que precisa de características genéricas de personalidade para fingir que tem uma passe longe desta impopular nação. O ponto do texto de hoje não é o que você faz, mas como você enxerga o problema.

Portanto, por mais compreensível que seja que alguns de vocês queiram responder a pergunta nos comentários, ela não passou de um convite à reflexão (mesmo que reflexiva). Você tentou se impor ou aceitou a “derrota”? Ultrapassar pela direita, buzinar, dar luz alta ou mesmo colar no carro da frente… todas variações do mesmo tom. E normalmente as respostas mais comuns (qualquer um que dirige cotidianamente sabe disso).

Quero convidá-los a mergulhar um pouco mais na mente de quem desacelera o carro e espera pacientemente a oportunidade de ultrapassar pela esquerda. Esse tipo de ser que é constantemente tratado como perdedor na sociedade… como exemplo de passividade exagerada. O tipo que a nefasta turma da auto-ajuda te diz para não ser.

Afinal, o mundo é de quem faz e acontece! Esperar sua vez não é uma característica relacionada com sucesso, aliás, contemplação e paciência é um dos piores conselhos que se dá para quem quer subir na vida. Numa sociedade competitiva feito a nossa, há de se entender quem prega o caminho da ultrapassagem pela direita. Resolve um problema e deixa quem te atrapalha para trás!

Mas você estava acima do limite de velocidade, não? A pessoa na sua frente em tese não estava errada… com certeza não é conveniente para você que ela esteja justamente na faixa da esquerda, mas… se o limite é 60 e ela está a 60, ninguém poderia ultrapassá-la mesmo! Existem regras para o nosso convívio e basta nascer para aceitá-las. Imagino que a maioria de nós que força a passagem também saiba disso, mas na hora é mais fácil ignorar. Afinal, se a gente quisesse andar no limite de velocidade, o problema nem existiria.

E aqui, a verdadeira pergunta no texto: quantas regras (escritas ou não) você quer quebrar para chegar na frente? “Poucas, de preferência nenhuma” é uma resposta tão nobre quanto rara, de verdade. Tendo noção de como o nosso mundo funciona, a capacidade de encontrar soluções ao redor das limitações da lei e da ética se faz necessária com incômoda frequência. Parece “inveja de pobre”, mas é verdade que para chegar no topo você normalmente precisa fazer algumas cabeças de degraus.

A cabeça de quem responde “todas as necessárias” todos nós conhecemos bem. E de certa forma é a mais glorificada. Todo mundo desce o pau em quem age de forma desonesta e aproveitadora, mas sob o manto de uma personalidade forte e um voluptuoso desejo de vitória as coisas ficam mais palatáveis. Você pode, você consegue, o mundo te deve! Sinal verde para ser um filho da puta desde que você acredite que só assim vai chegar onde quer.

A cabeça do capacho também não é segredo. Responder “nenhuma” com convicção não soa como algo honesto. Até por isso esse é basicamente o truque de todas as religiões: fazer a pessoa achar que é essa a resposta que ela tem que dar e viver atormentada pela culpa de não praticar o que prega. Normalmente é só alguém que diria “todas as necessárias” se pudesse (ou soubesse) ser honesto.

O que me deixa fascinado – e por tabela o que os pune com este texto – é a mente de quem diz e pratica o “poucas, nenhuma se possível”. Quem aceita uma derrota de sua vontade por um exemplo mais correto; adaptando-se a uma situação e evoluindo diante de um confronto. Porque coloque a situação como quiser, andar em alta velocidade e fazer ultrapassagens pelo lugar errado sem uma urgência é arriscar a sua vida e a de outras pessoas por… basicamente nada. Sabemos disso! Mas… é difícil praticar, não?

E por favor, não entendam aquele momento de não ultrapassar do exemplo que abre o texto como uma análise completa de caráter. Aquilo é uma forma de enxergar as coisas encapsulada numa pequena decisão cotidiana. Pode até ter sido pura coincidência. Estou extrapolando o momento para uma análise mais geral.

E aqui, o pulo argumentativo sem aviso prévio: a pessoa que não tenta forçar a ultrapassagem é justamente a MENOS conformista. Há algo de podre na indústria da motivação pessoal, e é a crença que estamos num mundo tão cagado que não faz diferença uma acocorada a mais. O que não se diz em português claro é: “Fudeu, estragamos tudo ou já estava tudo estragado para começo de conversa… faz o seu e tira logo os seus lucros desse mundo antes que alguém faça primeiro.”

Quebrar todas as regras necessárias é se conformar com essa ideia. É aceitar bovinamente que caminhos mais elevados não dão em lugar algum. “Ultrapasse pela direita senão você não vai chegar onde quer”. O inconsequente que coloca em risco outras pessoas só para fazer sua coisa preferida comprou o discurso amargo de gente (muitas delas fracassadas) que confunde sua inépcia com punição “cósmica” contra boas ações.

Detesto adolescentes, mas na sanha de mudar o mundo deles há sim algo de muito nobre e belo: a esperança de que tem jeito sim. Que dá para ter um norte moral e ético e mesmo assim fazer uma diferença. A entrada para a vida adulta normalmente é o momento onde esses sonhos são esmagados pela realidade. E aí entra a resignação com o status quo. Está tudo errado e a pessoa não consegue mudar nada.

E aqui, a maldade: isso é também um círculo vicioso de incompetência e falta de desenvolvimento intelectual que atrasa a sociedade como um todo. Gerações se substituindo com a crença de que não foi o baixo grau de comprometimento com uma sociedade melhor que causou o problema, e sim que eles foram “bonzinhos demais”. Que não ultrapassaram o suficiente pela direita.

Essa coisa de se achar bom demais para esse mundo é mais velha que andar para frente. Conformismo do mais clássico. A culpa é sempre dos outros, certo? Sem ações para confirmar, são apenas palavras. É muito fácil cativar os outros dizendo que o problema deles é ter qualidades demais… tanto que é o negócio lucrativo que é.

Completo desserviço para todos nós. Ao invés de incentivarmos os outros a limpar a sujeira com a qual convivem, dizemos que o bacana mesmo é se acostumar com o cheiro e perder a frescura de se sujar mais. Não é de se surpreender que o resultado disso seja uma série de doenças sociais. Ultrapassar pela direita não é pensar fora da caixa, é aceitar passivamente que vai ficar preso nela e não tem mais o que fazer.

E como de costume, o caminho das vantagens a longo prazo é mais complexo. Parece que o mais fácil é aceitar que o carro da frente vai ficar por lá e não fazer nada, mas na verdade não tem nada mais simples do que buscar gratificação instantânea. O bunda-mole é quem burlou as regras para se beneficiar, e não quem pagou o preço pela escolha errada. Não era para estar a 120 por hora pra começo de conversa… agora aguenta!

Tudo isso pode ser resumido a um conselho que quase todos nós ouvimos de nossos pais em algum momento da infância: “Não é só porque os outros estão fazendo que você vai fazer também…”. Tem uma sabedoria incrível nisso, mesmo que frequentemente a frase passe em brancas nuvens tanto na cabeça da criança como a do adulto.

Enfrentar essa “desistência” da maioria das pessoas é uma merda, não vou mentir; mas alguém precisa segurar o rojão. Se todo mundo desistisse de uma só vez, o mundo como conhecemos hoje seria um paraíso em comparação. Dependemos desses teimosos, afinal, os parasitas precisam de hospedeiros. Por isso fica o apelo: pare de xingar quem anda na velocidade certa, mesmo que esteja na faixa da esquerda. Eu sei, na prática, que é difícil imitar o exemplo, mas o mínimo que se faz para conservar esse tipo de ser humano é não incentivá-lo a desistir.

Até porque mesmo que você seja uma merda de pessoa egoísta e aproveitadora, vai querer manter um fluxo constante de cabeças para pisar.

Pessoalmente, estou parando quase que totalmente de “ultrapassar pela direita”. Prestei atenção em gente fazendo isso de “entubar a frustração” e decidi entrar no grupo. É difícil. Mas… sabem de uma coisa? No final das contas eu só chego um ou dois minutos mais tarde onde quero. E muito mais tranquilo o caminho todo. O preço parece muito mais caro do que realmente é… a não ser que você se conforme.

Para dizer que achou muita frescura só para falar de trânsito (não riam, alguém pensou isso), para dizer que nunca que vai cair nessa, ou mesmo para dizer que passa por cima: somir@desfavor.com

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