Fetiches.

Fetiche é uma palavra com suas raízes no latim: facticius, significando artificial e/ou fictício. Existem várias formas de interpretar essa palavra, a mais comum normalmente relacionada com parafilias sexuais. Embora isso vá encontrar seu lugar no texto que se segue, quero ficar com o significado mais puro da palavra… o que talvez deixe o assunto um tanto chato para você. A não ser, é claro, que você consiga criar um motivo para gostar dele.

Quanto mais o tempo passa, mas eu me torno fetichista. É como se houvesse uma convergência de necessidade e habilidade movendo-me nessa direção. Não que eu esteja me satisfazendo apenas com pés femininos, mas os significados das pessoas, coisas e atividades começam a ficar mais e mais complexos, e menos ancorados na realidade objetiva.

Não, não estou fazendo terapia às custas de vocês, na verdade eu só quero deixar claro que mesmo que exista uma crítica aqui, não me eximo dela. Meu ponto aqui é que talvez todos nós estejamos cada vez mais fetichistas. Males ou mesmo benesses do mundo moderno. Mas de nada adianta jogar essa afirmação sem discorrer um pouco sobre o que eu estou chamando de fetiche.

A maioria das pessoas vai imaginar alguma prática sexual estranha, alguns vão se lembrar da análise marxista do fetiche, e poucos (se o fizerem) vão pensar em teorias filosóficas e sociológicas sobre o que é o fetiche. Como não gosto de deixar as coisas (muito) confusas, vamos entrar num acordo para continuar em terreno comum.

Fetiche, segundo Somir (DESFAVOR, 2015), é uma adição lúdica ao significado concreto. Ou seja, é somar a uma pessoa, objeto ou atividade uma ideia muito pessoal de valor. Ficando no mais óbvio: fetiche é enxergar um par de pés como se fossem órgãos sexuais. Você pega algum significado e o expande com imensa ajuda da sua imaginação. Você vê naquele elemento algo que não condiz com seu significado ‘real’ comum.

Um bem de consumo pode ser um fetiche: um carrão esporte pode ser visto como um atestado de sucesso na vida, uma extensão atraente do próprio corpo, a realização de um sonho… A sociedade de consumo e a publicidade fazem de tudo para que produtos e serviços virem fetiches, afinal, vender sucesso é muito mais lucrativo que vender um meio de transporte. As pessoas pagam mais pelo fetiche.

Atualmente até pessoas viram fetiche aos olhos alheios. Pior: algumas dedicam suas vidas para conseguir esse efeito, as subcelebridades que abundam (com trocadilho) por aí que não me deixam mentir. A pessoa não faz nada de realmente excepcional, mas aparece tanto que fica a cargo de cada um dos expostos a ela criar um significado para sua fama. A fama pela fama é um fetiche.

E quanto mais a vida nos inunda com informação, maior a carga de fetiches que carregamos conosco. E a concorrência é desleal: o fetiche soa muito mais apelativo do que o valor concreto. Ele diminui a natural confusão que fazemos ao escolher o que é melhor. Na prática é muito difícil fazer escolhas bem informadas sobre os melhores atributos práticos de pessoas, objetos e atividades. Tanta gente dizendo tanta coisa e nós no meio do fogo cruzado. O fetiche nos dá algo para agarrar nessa correnteza toda: o atributo imaginário de valor que dirime a incerteza.

Vamos construindo uma grande coleção de fetiches por dificuldade de reter informações concretas. E da união de todos eles, tiramos uma personalidade. É muito provável que você não seja o conjunto de suas opiniões e valores, mas sim o dos seus fetiches. E essa é uma situação cada vez mais moderna: quando tínhamos menos no que pensar e menos escolhas, havia mais espaço disponível para o concreto.

Se você é obrigado pela sociedade atual a ter voz ativa sobre todos os assuntos possíveis, é inevitável que informação de baixa qualidade como os fetiches (são basicamente vantagens inventadas) comece a inundar nossas cabeças. O cérebro humano completa as lacunas com o que tem ao seu dispor, e cada vez mais é o fetiche que faz esse papel.

A pessoa não deseja mais algo por acreditar ser a melhor escolha racional, mas sim porque sente-se melhor com o conjunto de qualidades imaginárias atreladas àquele objeto. Só há espaço na mente para isso, então vai isso mesmo! Deve existir um limite de quanta informação podemos lidar de forma ‘séria’.

Quanto mais informação você absorve, maior a probabilidade de apresentar as características do fetichismo. Afinal, eles não são apenas preguiça ou desinformação, de forma alguma! Eles também são uma resposta natural à repetição. Uma forma de jogar uma nova luz sobre um tema. Não seria por isso que os fetiches vão se acentuando com a idade? Seja sexual ou consumista, muita gente vive em função de seus fetiches, cada vez mais especializados e entusiasmados.

Que seja! Precisamos da paz de espírito de gostar de algo. Fetiches são uma defesa natural da nossa mente contra o excesso de possibilidades. Pegar alguma coisa dentro do universo conhecido e atribuir a ela características imaginárias (porém agradáveis) é mais velho que andar para frente. E por sinal, a base de todas as religiões. Ah sim, religião é um fetiche. Talvez por isso seja tão difícil de ser erradicada.

Mas não é como se fosse só uma coisa ruim. É no fetiche que o ser humano se mostra mais único. Expandir o significado ‘mundano’ de algo e atribuir a ele características valiosas muito pessoais cria universos paralelos dentro da nossa realidade maçante. Tem algo de espetacular na mente de alguém que sente prazer com fezes humanas, por exemplo. Nojento, mas fascinante! Como alguém consegue subverter tanto assim o ‘real’?

E nem precisa descer tão fundo assim: alguém que compra milhares de pares de sapato e enxerga algo de único em cada um deles? Fetiches são janelas para características incríveis da mente abstrata humana. É como se a realidade fosse mera massa de manobra em nossas mãos, flexível o suficiente para assumir infinitos significados apenas com um desejo.

A tendência é que o excesso de informação torne a humanidade mais e mais fetichista. Se por um lado isso deixa a realidade turva, não se pode negar que fica mais colorida. Há de se tomar cuidado com o fetiche, para que ele não te controle e te afaste de uma percepção mais sóbria do mundo; mas por outro lado, sem eles talvez esse mundo não tenha a menor graça.

Sei que é mais fácil ler um texto com uma opinião consistente, mas eu avisei desde o começo que não estava num dia especialmente fácil. Talvez seja meu fetiche escrever textos que relativizem a conclusão e deixem os leitores no mesmo ponto que começaram. Com certeza estou fazendo cada vez mais isso.

Para dizer que seu fetiche é não entender o que diabos eu estou dizendo, para dizer que esperava mais putaria (era texto nerd, texto nerd não pega ninguém), ou mesmo para dizer que eu bem que avisei: somir@desfavor.com

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Comments (6)

  • Innen Wahrheit

    Oi Somir.

    Creio que uma boa leitura não precisa conter opiniões, sejam implícitas ou expressas; pode ser meramente conceitual, e/ou sinalizar caminhos para que uma opinião possa sser formada… e para mim este texto cumpre seu propósito.

  • Então tudo que nos atrai seria um fetiche? Afinal, depositamos em basicamente tudo que nos chama atenção e nos faz desejar algo um valor que não corresponde somente ao valor real da coisa.
    Se for assim, de fato somos todos muito fetichistas.
    Somir, você sempre me faz dar um “nó no cérebro”.

    • Entendo que não… Entendo que usando o valor relacionado ao fato seja apenas gostar. Se você gosta de carro e dos atributos velocidade, conforto, visibilidade, você está enxergando um carro mesmo. Mas se quer um novo modelo porque é mais popular, mais aceito ou mais glamuroso, então e fetiche…

      E acho também que o maior indício de fetiche é o smartphone. Ele representa liberdade de um contexto (estar sozinho, estar com pessoas chatas ou mesmo entender que a virtualidade é mais “perfeita” que a realidade), representa status, amigos e tantas outras coisas que ele não é…

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