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Baixaria?

Baixaria?

| Somir | | 2 comentários em Baixaria?

O que me chamou a atenção para o tema de hoje foi a seguinte notícia:

O prefeito de Goiânia, Paulo Garcia (PT), sancionou uma “lei antibaixaria”. Desde 3 de maio, é proibido o uso de dinheiro público “para a contratação de artistas que em suas músicas, danças ou coreografias desvalorizem, incentivem a violência ou exponham as mulheres, homossexuais e os afrodescendentes a situação de constrangimento”.

Apesar de torcer naturalmente para que os “artistas” tipicamente relacionados com os temas proibidos tenham que procurar outros empregos, a coisa é um pouco mais complicada do que simplesmente gostar dos efeitos colaterais.

Mas antes que eu mude de assunto, vamos pensar um pouco mais sobre essa medida… por um lado é aberrante que o Estado financie o trabalho de quem valoriza em sua obra elementos que vão contra os objetivos de igualdade e respeito que toda sociedade suficientemente moderna deveria seguir. Por mais que o povão goste e tenha direito de se esbaldar com música baseada em baixaria, o dinheiro do Estado não está lá pra isso. Ainda mais no aspecto cultural, onde deveria ser papel das administrações públicas oferecerem ao público mais opções do que as que o mercado livre já oferece.

Então, espera-se do Estado financiar o que não é “pop”. Afinal, nossos bolsos já dão conta do recado no dia a dia. É muito mais cara de um governo incentivar música clássica ou folclórica do que funk, sertanejo, axé e similares. Nesse ponto, eu entendo claramente a lógica da tal “lei antibaixaria”. É até mais do que desperdiçar o dinheiro do contribuinte, é usá-lo para deseducar a população. Os pais que filmam seus filhos pequenos dançando funk que não me deixam mentir. Não tem ninguém no volante no cérebro da maioria desse povo.

Porém… no sentido oposto: o que exatamente configura desvalorização e constrangimento? O público-alvo das músicas baixaria com certeza não se constrange com seus gostos, povão vai rebolar ao som de palavrões até o sol raiar sem pensar meia vez sobre o papel da mulher, do homossexual e do negro na sociedade. Com a batida certa, o refrão “bicha preta rebola mais que puta” vai ser ouvido e dançado por milhares (milhões, pra ser mais honesto) sem a menor preocupação. Provavelmente não vai alterar a percepção que eles já tem sobre igualdade e respeito…

Cidadão pode ser misógino, homofóbico e racista só escutando sinfonias. Não tem muito como forçar a relação entre gostos e percepções sociais, essas opiniões são formadas por uma série tão imensa de fatores que parece tapar com a peneira tentar focar em alguma manifestação cultural para reduzir a incidência de comportamentos danosos. Sim, existe uma relação entre o popularesco e a ignorância generalizada, mas talvez ela não seja de causalidade.

Talvez a própria percepção de causalidade gere o resultado. É menos confuso do que parece: como enxergamos quem produz e consome essas músicas como “selvagens” diante de nossas visões do que seria ideal na sociedade, pode muito bem ser justamente por isso que eles produzem e consomem esse material. E uma medida como a que ilustra o texto de hoje, por mais que proteja os cofres públicos de gastos com gente que berra meia dúzia de palavrões num microfone pra ganhar a vida, também pode ser mais um empurrão para a população sentir-se digna da baixaria.

Não é a questão do “proibido é mais gostoso”, embora isso funcione pra muita gente, estou falando mais de um reforço de marginalização. O Estado não está lá pra financiar baixaria, mas, se é justamente isso que a pessoa gosta, se é o que ela sempre ouviu e somou nos seus gostos, o que isso diz pra ela? Que ela é baixaria e que o Estado não tem intenção de acolhê-la. Do lado de quem acha essas músicas e danças uma porcaria mesmo, é fácil achar graça numa medida dessas e esquecer de se colocar no lugar de quem gosta e talvez nem tenha subsídios para mudar de opinião.

Quando o Estado financia um evento cultural, presume-se que ele seja aberto a todos. Claro que existem outras modalidades de incentivo público, mas principalmente nos casos onde essas músicas e danças são apresentadas, a ideia é que o povão tenha seu entretenimento sem ter de pagar entrada. Mesmo antes da crise, uma boa parte do público alvo do material baixaria não tinha dinheiro pra fazer diferente mesmo.

Então, eu volto para o argumento pró-proibição: se a função do Estado é incentivar cultura que não tenha suporte mercadológico, as coisas podem ir um pouco mais longe do que comparar quem venderia ingressos e quem não. Na verdade, o Estado pode se infiltrar até mesmo no meio do mercado e desequilibrar o jogo. Se fica mais difícil para o artista baixaria ter um suporte para se apresentar e ganhar novos fãs (fãs que vão comprar tudo pirata mesmo e só pagam ingresso de vez em quando), as regras do mercado ficam ainda mais severas.

Se o que vende é baixaria e todos têm que lutar pelo escasso dinheiro de seu público habitual, para onde é que o mercado vai apontar? Mais baixaria! A tendência é que as pessoas consumam versões cada vez mais exageradas do que consumiam anteriormente, e a cada um que empurra a linha um pouco mais pra frente e faz sucesso, mil outros sentem a água batendo na bunda. O nível do popularesco caiu vertiginosamente nas últimas décadas, tudo bem que só explicitando ideias que já estavam lá, mas no mínimo não tem mais vergonha delas.

O Estado pode olhar para essa situação e seguir dois caminhos: intervenção ou abandono. Cada um pode defender o lado que achar melhor, mas só não vamos confundir as coisas: a lei antibaixaria é o caminho do abandono. É o Estado dizendo que não quer nada com essa cultura e deixando-a totalmente na mão do mercado. Que já fez o que fez até agora. E se, ao intervir financiando quem produz esse conteúdo o dinheiro público não se tornasse um agente de retroação da baixaria? Quando menos exposto aos sabores da popularidade mercadológica, mais fácil não ficar de olho na próxima linha a ser cruzada. Mais simples ter integridade quando os outros problemas da vida são menores.

Ideia que pode soar maluca: e se, ao contrário de deixar de financiar, o Estado não afundar o mercado dando estabilidade aos criadores do material baixaria? Jogando dinheiro neles para que a necessidade de cativar o povão fique cada vez menor, para que muitos deles possam finalmente descobrir o prazer na música ou na dança por elas mesmas? Não nos esqueçamos que em qualquer mercado do tipo, é uma minoria que realmente enriquece. O grosso dessa cena é de gente que cobra mixaria pra fazer show e se sair de lá vivo já está sorrindo.

É como se o governo dissesse que não vai interferir no que a pessoa quer fazer, mas se ela quiser fazer um funk sobre astronomia ao invés de eufemismos (cada vez menos eufemísticos) para sexo, ele vai conseguir se sustentar. Será que o que está faltando é repressão ao criador desse material ou estamos mesmo diante de um reforço de marginalização que poderia ser, no mínimo, retroagido?

Será que não é o sorriso que eu e muitos de vocês demos ao ler a notícia que cria esse mercado de baixaria? Quem se sente marginalizado, age marginalizado.

Para dizer que previa a posição mas não a argumentação, para dizer que deveria ter lei antienrolação, ou mesmo para dizer que sustentar esse povo só vai gerar mais e mais filhos rebolando no Youtube: somir@desfavor.com


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