Transumanismo: Real News.

Num texto anterior, falava sobre uma espécie de crise da verdade que vivemos nos dias atuais. Neste mundo tão conectado, com tantas fontes de informação ao mesmo tempo aliadas ao afrouxamento dos padrões do jornalismo tradicional (principalmente no que tange à imparcialidade) nos jogaram num mundo onde se torna progressivamente mais difícil saber no que acreditar. Mas, é possível que uma crise criada pela tecnologia possa ser resolvida por ela.

Mas é claro, isso não vai ser fácil. Via de regra, se algum problema começa a atingir a maior parte da população humana, você pode ter certeza que tem algo muito complicado no caminho. Podemos criticar o ser humano por diversos motivos, mas raramente por não fazer o mais simples assim que ele se torna disponível. A direção da menor resistência era justamente esse festival de notícias conflitantes e altamente carregadas de ideologias. A maioria das pessoas se sente mais confortável enxergando o mundo pelas lentes daqueles que já concordam com elas. O cérebro gosta de confirmação, gera recompensas químicas e senso de pertencimento.

A busca da verdade frequentemente nos coloca em conflito direto com noções pré-estabelecidas internas e do grupo ao qual pertencemos. Por limitações básicas na quantidade de informação que conseguimos manter na cabeça em qualquer momento e a grande dificuldade que boa parte das pessoas enfrente no seu dia-a-dia (a maior parte da humanidade vive com muito pouco), ignorância é a regra. Falta o básico para processar os dados que chegam de forma incessante nos tempos atuais. Separar um boato insano de um consenso científico depende de conhecimento previamente acumulado. Muito complicado intuir a verdade sem uma base sólida de informação.

Sem contar que existem níveis diferentes dessa capacidade. Eu gosto de me informar sobre tecnologia, mas não tenho paciência para aprender sobre nutrição, por exemplo. É relativamente simples para mim perceber quando uma startup está prometendo algo ridículo com seu novo app, mas as coisas ficam mais complicadas quando sai uma notícia sobre os efeitos do ovo na dieta. E eu tenho certeza que todos que estão lendo aqui também tem seus pontos fortes e fracos na hora de lidar com as informações que recebe diariamente. O ideal é conviver com várias pessoas que complementam esse menu de interesses, mas na prática gostamos mais de quem gosta de coisas parecidas, não? A própria natureza humana complica o processo.

E é aqui que podemos pensar em soluções para esse problema saindo da caixa de pele, músculos e neurônios. Hoje em dia, com a internet e o acesso constante à informação, é muito mais fácil pesquisar sobre um assunto para formar uma opinião melhor sobre o tema. Tem gente falando sobre tudo, sites inteiros dedicados a pequenas frações do conhecimento humano, com os mais diversos graus de aprofundamento. Artigos, podcasts, vídeos… quem quer mesmo aprender sobre alguma coisa, consegue, especialmente se souber mais do que uma só língua. Computadores e smartphones já fazem um serviço valioso de terceirização do conhecimento: é cada vez menos importante memorizar fatos, datas e estatísticas porque já ficou claro que máquinas são muito melhores para isso.

O cérebro humano é cada vez mais um processador de informações do que um acumulador. Mas mesmo esse modelo já mostra sinais de fadiga: se for para pesquisar a fundo cada uma das informações que chegam até nós, ninguém mais consegue viver, não daria tempo. A humanidade nunca foi tão bem informada, mas também nunca ficou tão confusa com excesso de informação. É difícil até mesmo para pessoas como eu e a Sally, que colocamos muita energia nesse processo de acumular, filtrar e repassar informações. Imagine só para quem não está focado nisso?

Evidente que as pessoas estão mais estressadas e divididas: ninguém tem tempo para lidar com essa loucura! A tendência de buscar confirmação do que já sabe tomou conta de vez, e é até compreensível, afinal, o tempo é um dos recursos mais restritos e valiosos da maioria das pessoas. É eficiente virar “ativista” de alguma causa e só consumir informações que vem de uma fonte fácil de compreender. Ou concorda comigo e está certo, ou discorda e é vilão. Mas como disse antes, todo mundo tem seus pontos fracos: quem é muito focado em política pode ser um alvo fácil para questões de saúde, por exemplo (existe uma relação perceptível entre conservadorismo político e rejeição às vacinas).

A tecnologia criou o problema do excesso de informação, então faz sentido acreditar que ela terá que resolver. Não sei quanto tempo a humanidade resiste antes da animosidade de redes sociais virar uma guerra tradicional. A violência ideológica com certeza aumentou. Uma ideia é fazer com que as mesmas máquinas que nos trazem a informação sejam capazes de filtrá-las. O que acontece nos dias atuais é que os algoritmos tendem a nos entregar informações mais condizentes com o que já mostramos gostar anteriormente. Bom para gerar mais cliques e receita, mas perpetua o problema do “vale do eco” que tanta gente vive atualmente.

Uma solução é criar algoritmos que não só tragam informações que gostamos, mas que também consiga prever o nosso grau de compreensão sobre elas. Quais notícias você compartilha, que palavras usa para comentá-las, como lida com opiniões diferentes… nenhum sistema consegue trabalhar com isso ainda porque ainda existem muitas barreiras de privacidade na legislação, e mais importante (já que privacidade claramente não é uma preocupação tão grande assim para Facebook, Apple e afins) barreiras de comercialização de dados. Um dos motivos pelos quais o Facebook compra tantas empresas de tecnologia e concorrentes diretos de redes sociais é justamente para poder acessar os dados deles.

Agora, se o seu smartphone pudesse coletar essas informações, processá-las e só aí dizer para os algoritmos de redes sociais e sites de notícias o que serve para você, conseguiríamos o equilíbrio ideal entre privacidade e relevância de conteúdo. O seu celular sabe mais sobre você do que sua mulher ou família. Como é uma interface de comunicação com o mundo usada incessantemente, a informação está lá. Ele pode saber que tipo de informação você gosta, qual não gosta e o motivo disso. Analisando o que você pesquisa, pode saber o que entende bem e o que te deixa confuso. Pessoas escrevem de forma limitada e raramente tem grandes vocabulários, seria até simples começar a conectar o que você escreve ou fala com as informações que recebeu. Se você recebe uma notícia sobre o Bolsonaro e um minuto depois de ler reposta em algum outro lugar com as palavras “vergonha” e “fascista”, o sistema pode começar a acreditar que você tem tendências de esquerda. E usando uma base de dados sobre os interesses e dúvidas comuns de outras pessoas com tendências de esquerda, ele pode filtrar as notícias que concordam com seu ponto de vista de forma mais liberal, e tomar cuidado para te passar notícias alinhadas com pontos-de-vista diferentes que já tenham sido categorizadas como de alta qualidade e bem fundamentadas. Não para mudar sua visão das coisas, mas para evitar que suas tendências saiam de controle.

Claro que você está enxergando algo de bizarro aqui: quem que define as atitudes de um sistema desses? O exemplo que eu dei facilmente pode ser considerado como intencionalmente político. E eu concordo, mas eu só precisava de um exemplo. Quem deveria decidir como agir caso a caso não é o programador do algoritmo, afinal, somos todos tendenciosos. A ideia é que a própria inteligência artificial tratando essas informações tome as decisões de quando controlar extremismos e quando fortalecer ou enfraquecer narrativas populares. Sim, eu estou falando de um computador decidindo a realidade por nós. Alguém tem que fazer isso. A pessoa ainda está livre para desligar esse sistema, ou mesmo ir buscar informações onde bem entender, mas se quiser ser passiva e esperar ser alimentada automaticamente por notícias e opiniões, vai ter que pagar o preço de ser “pacificada” através de uma inteligência artificial baseada em tirar pessoas de bolhas de confirmação e oferecer mais informações sobre as coisas que ela não sabe direito.

O programador humano tem que decidir um objetivo maior como reduzir animosidades e definir algumas regras como padrões de qualidade de informação. Mas a ideia é que a própria inteligência artificial comece a definir o que é informação de qualidade e o que gera conflitos, através de tentativa e erro com bilhões de pessoas ao mesmo tempo. Ainda não temos programas bons o suficiente para isso nem mesmo capacidade de processamento para lidar com esse código, mas a tendência é que esse dia chegue. Nada impede que com o passar das décadas, os smartphones sejam colocados dentro de nossos corpos, com acesso a novos dados como reações físicas, composições hormonais e até mesmo o estado de saúde atual, enriquecendo muito mais os dados captados. O sistema vai poder reconhecer estresse ao ler uma notícia, excitação ao ver uma pessoa e todas as outras coisas que habitualmente podemos esconder do mundo externo.

Desde que confiemos no nosso sistema pessoal, existe o potencial das pessoas do futuro serem menos dependentes das limitações orgânicas para absorver e processar informações. Você não consegue esconder suas reais intenções do seu sistema, ele sabe o que você entende, no que você confia… e para quem está achando que as grandes corporações nunca vão deixar isso acontecer: o dinheiro no mercado de publicidade PERFEITA é muito maior do que o da coleta de informações na base do palpite. Google, Facebook e afins só querem saber mais sobre você para poder te mostrar anúncios que você tem mais probabilidade de clicar. Ninguém se importa com sua vida pessoal, e sim com o que você pode comprar. Ter dentro de si um sistema que não só filtra as informações como sabe o que você SENTE quando lida com cada uma delas basicamente garante que quase toda propaganda que entrar na sua cabeça vai ser efetiva. O incentivo econômico de criar esse sistema de qualificação da informação baseado na verdade pessoal de cada um é imensamente maior do que qualquer coisa existente nos dias atuais. Tem dinheiro aí, e muitas vezes o caminho do dinheiro converge para o caminho de uma melhor qualidade de vida.

Mas, isso quer dizer que no futuro as notícias serão mais confiáveis? Sim, por um motivo muito simples: é muito fácil enganar uma pessoa, mas quase impossível enganar um computador com acesso instantâneo a todas as informações do mundo. Boatos serão esmagados quase que instantaneamente por filtros de veracidade, o sistema vai conseguir ler o boato e comparar com as reações de pessoas em relação a temas parecidos antes de te mostrar. Se você não demonstrou capacidade de lidar com essa informação antes, o sistema vai ter que achar uma alternativa mais bem explicada e fundamentada para te mostrar, afinal, ele não quer te deixar frustrado. Se não achar nada que corrobore a informação com uma qualidade jornalística maior, vai decidir se você tem condições de lidar com o tema. Se você for ignorante demais no assunto, ele vai esconder a informação enquanto não souber como pessoas que entendem daquele tema estão reagindo. Se elas concordarem com a informação, você recebe. Se elas chamarem de mentira, nunca vai chegar em você, ou já vai chegar uma nova informação explicando que aquilo está errado.

Tudo muito difícil de fazer para um humano em frações de segundo, mas trivial para um sistema com um processador potente e uma conexão rápida com a internet. A humanidade tende para uma espécie de consciência coletiva digital, usando o conhecimento de bilhões de pessoas para checar e filtrar informações em tempo real. O limite é a velocidade da luz com a qual as informações são enviadas pelo mundo. Pode demorar uns minutinhos a mais para confirmar um boato no Japão, mas que os dados vão chegar, vão. A única solução para essa insanidade de informações chegando de todos os lados é aplicar um sistema ainda mais insano de processamento delas. Nenhuma pessoa puramente orgânica está equipada para isso, mas, isso não impediu que voássemos ou que produzíssemos microchips, não?

O futuro é uma mistura do orgânico com a máquina, a vida humana torna-se cada vez mais complexa e exige cada vez mais capacidade de processamento de dados. Não é mero futurismo acreditar que a informação será transferida para máquinas antes de chegar em nós, afinal, já é exatamente o que acontece. Se duvida que o futuro é esse, abra o seu aplicativo de notícias no celular e diga se ele não está te mostrando basicamente coisas que você já gosta… Não tenhamos medo, a consciência coletiva parece ser o verdadeiro estado natural da inteligência. Isolados somos limitados, mas com ferramentas para nos comunicar e pensar juntos, somos praticamente imparáveis.

Para dizer que vão manipular o sistema com certeza, para dizer que o futuro é desligar a merda do computador, ou mesmo para dizer que Transumanismo é uma religião: somir@desfavor.com

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Comments (9)

  • O mundo tá do jeito que tá não pq não sabem a origem dos problemas atuais mas pq entenderam quais são as origens e viram que o remédio é amargo demais. E pq tem quem não queira que os problemas sejam solucionados.
    A sociedade tá que nem o cara que descobre no médico que o desconforto no peito é por causa do cigarro mas decide que prefere o desconforto.
    Se você abordar minimamente a origem dos reais problemas da nossa sociedade pode acabar linchado ou preso. Por isso nunca teremos uma solução.

    • Pelo lado positivo, quando você fica mais puto com a constatação de um fato, mais próximo da verdade está. Tomara que a verdade venha sem uma grande explosão, mas que ela está perto da superfície, está.

    • Meu primeiro texto solo no desfavor, mais de 10 anos atrás, falava sobre mídia manipuladora. E aquele argumento eu mantenho: pode manipular, mas faz direito.

  • “Não sei quanto tempo a humanidade resiste antes da animosidade de redes sociais virar uma guerra tradicional.”
    Projeção desanimadora, mas próxima da realidade. Já tem vários manifestantes de ideias opostas se encontrando e se batendo nas ruas por aí (podiam se exterminar e deixar o resto do mundo em paz) melhor ignorar essa geração perdida e estragada por ideologias e investir nas gerações mais novas antes que seja tarde.

    • “(…) melhor ignorar essa geração perdida e estragada por ideologias e investir nas gerações mais novas antes que seja tarde.” Infelizmente eu concordo.

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