O passado do futuro.

“O habitante do começo do século XXI vivia em sua maioria no sudoeste asiático, era extremamente pobre, com baixo grau de instrução e constantes problemas de saúde causados por péssima higiene. Seu entretenimento consistia em acessar a internet através de computadores primitivos de bolso, passando boa parte do seu tempo livre acessando redes sociais, onde consumia prioritariamente informações sobre celebridades e memes.” Se ainda existirem livros no futuro, é bem provável que você seja descrito assim. E se você não se sentiu representado por essa discussão, talvez comece a perceber um problema fundamental das nossas descrições do passado…

Elas costumam exigir um grau elevado de generalização. Afinal, mesmo considerando que a tecnologia atual permite o arquivamento de informações sobre boa parte dos bilhões de habitantes da Terra, provavelmente por toda sua vida, nunca vai caber no cérebro humano (natural de fábrica, pelo menos) a informação necessária para analisar um período histórico pelo ponto de vista de cada um dos que estavam vivos naquela época. E considerando que quem faz uso dessas informações precisa de um cérebro para começo de conversa, somos obrigados a colocar todo mundo numa vala comum e observar tendências do coletivo ao invés de indivíduos.

Mesmo que surja uma inteligência artificial poderosíssima no futuro, ela ainda vai ter que condensar toda essa pluralidade de experiências em uma ideia palatável para seres humanos. No final das contas, as coisas se resumem aos números. Se uma parcela razoável das pessoas que deixaram suas ideias para o futuro pensarem de certa forma, isso vai ficar registrado na história como a mentalidade do tempo. É bem possível que daqui a uns 200 anos, nós sejamos vistos como um bando de lacradores ou fascistas (depende do interesse político da época da análise), mesmo considerando que o cidadão médio realmente não parece defender nenhum dos lados dessa “guerra cultural”, estando mais preocupado com o pagamento do próximo aluguel do que com o cenário político vigente.

Precisamos resumir, precisamos olhar para grandes tendências e confiar que a parcela mais vocal da população realmente deixou os registros corretos sobre a experiência daquele momento na história. Vai ser uma dor de cabeça para os historiadores do futuro filtrar a insana quantidade de informações (confiáveis ou não) e opiniões que a humanidade publica a cada minuto desta era. Mas perto do que nós temos agora para trabalhar, eles vão estar muito bem municiados. Porque se ainda não passou pela sua cabeça: é realmente complicado ter certeza do que aconteceu no nosso passado. Se você começar a se interessar pela história humana e pesquisar independentemente, grandes chances de entrar em choque com a quantidade de dúvidas que começam a pipocar a cada evento antigo.

Costuma-se dizer que a história é contada pelos vencedores. O que tem seu fundo de verdade, mas não resolve todos os problemas. Vejam bem, a história pode ser contada pelos vencedores de guerras porque tiveram o poder de anular os registros dos perdedores e forçar o ensino da sua visão de mundo, mas historicamente, todo vencedor teve seus dias de perdedor. Antes ou depois da tomada do poder. Um povo que teve sua história distorcida depois de uma derrota na guerra pode muito ter ganhado a próxima, restaurado a “sua verdade” e bagunçado a vigente naquele momento. Ou um povo que depois de muitas vitórias acabou derrotado e foi sobrescrito muitos anos depois. Pra piorar, às vezes os povos vencedores de guerra não eram lá muito proficientes nessa coisa de guardar relatos. Grécia e Roma foram destruídas por exércitos rivais, e mesmo com o esforço deles para destruir seus relatos, formam a base da cultura humana moderna.

Se não fosse uma bagunça (como o parágrafo anterior), a história humana não mereceria se tornar uma ciência própria e ocupar tantas mentes no mundo de hoje. Relatos não são confiáveis, muitas vezes restam apenas alegorias e ruínas para entender os acontecimentos vividos por povos antigos. Não se sabe muito bem se o cidadão médio daquela época enxergava as coisas de forma parecida com aqueles que deixaram os registros que estudamos atualmente. Imagine que por alguma catástrofe o único registro que uma civilização alienígena encontrasse na Terra fosse um livro de terraplanistas? Mesmo presumindo que 90% do livro fosse reclamar de uma conspiração da NASA, eles pareceriam uma parcela gigantesca da realidade humana como registro histórico.

Não estou aqui para te dizer que os historiadores não sabem de nada e que está tudo em aberto, evidente que existe muita informação séria e bem estudada ao nosso dispor. Em linhas gerais, dá para ter uma noção do passado baseado no que foi compilado até aqui, mas a dependência de registros e análises de comportamentos médios é um problema fundamental nesse estudo. É um pouco mais difícil que deveria refutar com certeza afirmações de quem diz que povos alienígenas nos visitaram no passado ou que existiu uma civilização de Atlântida. Realmente tem muitos buracos na nossa compreensão do passado. E neles você pode colocar quase tudo o que quiser.

A Era da Informação é muito recente. A parte mais “segura” da nossa história não é mais velha do que a memória de pessoas que morreram depois dos anos 90. E mesmo essa história recente de mais ou menos uns 150 anos é carregada de conspirações e dúvidas sobre modificações de cunho político e ideológico. Não é só sobre a imparcialidade de quem faz o registro histórico, é sobre o de quem compila essas informações também.

Um exemplo caseiro é o viés marxista da história que aprendemos na escola. Não estou dando munição para as loucuras do Ministério da Educação atual, estou dizendo que a noção de luta de classes e divisões claras entre exploradores e explorados fazia parte da visão de mundo de muitos daqueles que compilaram a história brasileira. “Sem querer querendo” acabamos com a noção de que o europeu era só um gênio maligno e que o índio e o negro eram só bons selvagens explorados.

Claro que esses arquétipos existiam, mas é dar muito crédito para português e muito pouco para índios e negros. Na sanha de pintar o burguês como monstro, acabaram diminuindo a capacidade desse proletariado colorido. Vários negros tinham escravos e vários dos bandeirantes eram muito mais índios do que europeus. Quanto mais se pesquisa a história do Brasil, mais se nota o peso da ideologia na consolidação dos fatos apresentados e nos omitidos. Sim, precisamos olhar para a média, e na média com certeza não ajudou ninguém aqui nascer com uma cor mais escura, mas as pessoas ainda eram pessoas, fazendo coisas boas e ruins e dificilmente passando a vida toda só de um desses lados. O viés de esquerda do mundo acadêmico com certeza não é conspiração, e isso influencia sim na história que aprendemos na escola. Se isso é bom ou ruim fica ao seu critério, eu tendo a achar que não é pior dos mundos pela tendência de separação da religião mais pronunciada nessa posição ideológica.

Num outro exemplo: no final das contas da Segunda Guerra Mundial, os judeus perderam muito, mas acabaram rindo por último. Especialmente se considerarmos como essa etnia/religião acabou bem posicionada na poderosa indústria cultural americana. Sim, é muito provável que os nazistas acabassem mal falados pela eternidade depois de quase acabarem com o mundo, mas com certeza ajudou bastante seus maiores inimigos acabarem com o microfone na mão. Se Hitler ganhasse a guerra, a indústria cultural teria se alinhado à direita e muito da história que conhecemos já estaria contaminada, possivelmente com o desaparecimento progressivo das memórias sobre os judeus. Os alemães tinham condição de entregar um mundo muito parecido com o que os americanos entregaram no campo cultural e de hegemonia militar e econômica. Provavelmente a segunda língua de quase todo mundo fosse o alemão, e estaríamos acompanhando as narrativas deles atualmente. Isso é, se Hitler não tivesse explodido o mundo em sua burrice colossal antes (Atacar Inglaterra e União Soviética ao mesmo tempo? O que pode dar errado? Com certeza nunca tentaram isso antes 20 anos atrás e perceberam que era suicídio…), mas estamos nos aprofundando demais em história alternativa aqui.

Agora, comece a imaginar quanta coisa que sabemos sobre a história pode estar simplesmente errada. Ou o relato não é confiável, e depois de mil anos não tem mais como confirmar; ou foi selecionado com interesses políticos ou pessoais no lugar de outras visões conflitantes. Sem contar a enorme quantidade de tempo onde simplesmente não existem relatos, só ruínas para se presumir o que aconteceu. Recentemente fiquei sabendo sobre ruínas no meio da Amazônia que podem ser maiores e mais antigas que as egípcias. Deserto é um lugar bem melhor para se preservar registros do que uma floresta tropical. Existem teorias sobre um meteoro que caiu na Groenlândia uns 12.000 anos atrás e extinguiu civilizações avançadas (não avançadas “disco voador”, avançadas para os padrões que se esperava da época) forçando a humanidade a resetar seu desenvolvimento por milênios. Tem gente até que fala sobre séculos recentes (depois de Cristo) ignorados por falhas nas contas do tempo passado quando se criaram os calendários modernos. Sim, a maioria dessas teorias são consideradas pseudo-científicas no momento, mas assim como qualquer uma que se passa milênios no passado, espaço para acontecer existe. E mesmo mirando em algo errado, pode explicar algo que nem estávamos esperando. Pesquisar coisa diferente só é ruim quando você quer confirmar algo que já acredita.

O que se conhece atualmente sugere que o ser humano moderno de um ponto de vista intelectual surgiu mais ou menos uns 50.000 anos atrás. É muito tempo. Suficiente para existir, desaparecer e não deixar marcas, ou não as deixar em lugares visíveis atualmente. Muito tempo para que a natureza esconda vestígios e para que exista um espaço grande demais para sua história ser passada por via oral. Não é à toa que a divisão entre história e pré-história se baseia na capacidade humana de escrever e deixar qualquer relato que seja. Sem isso, pode ter acontecido basicamente qualquer coisa que não deixa registros físicos permanentes e não ter como ser passado por tradição oral. É bem provável que quase todos os mitos religiosos antigos tenham sido um jogo de “telefone sem fio” entre as gerações humanas pré-históricas. Sabemos o que a primeira pessoa capaz de escrever algo que provavelmente por mais sorte que juízo chegou aos dias modernos, mas não sabemos como a história começou.

Você que está lendo muito provavelmente não é um chinês ou indiano pobre que passa quase todo o seu tempo livre vendo bobagem na rede social, assim como a maioria das pessoas do passado não se encaixavam nas descrições que costumamos dar para elas. Não é má intenção dos historiadores, é apenas uma falha inerente ao processo. A versão que chega até as escolas é ainda mais filtrada e compactada, fazendo com que quase todos nós tenhamos aprendido um monte de informações incompletas. A história é completamente diferente quando você a estuda por vontade própria. Eu pretendo aumentar o número de textos sobre eventos históricos aqui, até por isso essa introdução, mas a mensagem que fica de qualquer modo é essa: você provavelmente não tem ideia de quanto a história do mundo é diferente do que você aprendeu forçado numa sala de aula.

Se ficou curioso(a), siga o Bilu e busque conhecimento. O passado influencia demais em como formamos argumentos no presente. E isso faz diferença.

Para dizer que achou essa história estranha, para dizer que estudar história é tomar o supositório vermelho, ou mesmo para dizer que quer as teorias mais malucas mesmo: somir@desfavor.com

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Comments (14)

  • Nem precisa esperar o futuro, já estão começando a distorcer o que aconteceu no Brasil em 2015, QUATRO anos atrás. Imagina quando este ano ficar mais e mais distante e ninguém que viveu a época pra lembrar estiver mais vivo.

  • Mais um texto bacana, pra fazer pensar. Isso toca exatamente no ponto em que se discute tanto na academia, nos cursos de história: afinal de contas, de que ponto de vista narrar? Dá pra criar uma história a partir da perspectiva dos perdedores, e não dos vencedores, ou mesmo a partir da perspectiva da figura feminina, ao invés da masculina, por aí vai. Mas o ponto maior é: independente da perspectiva, narração de uma história (e mesmo a parte dita mais “científica” da historiografia, catalogação de dados, organização, mensuração etc) é sempre discurso, e todo discurso passa, invariavelmente, por um viés ideológico, que por sua vez é sempre subjetivo e individual.

    Difícil criar uma história “neutra”, e isso, justamente, acarreta na “falha no processo” que o Somir disse no texto, ao tentar esquematizar, resumir e enxugar as coisas.

  • Infelizmente não é novidade, há normalmente um tendencionismo em quase tudo da história, da pré a atual, assim o que conhecemos nem é história, são apenas pontos de vista e muitos bem míopes.
    Gostei de saber que irá continuar.
    No aguardo….
    Tks

    • É ruim, mas é bom: tem tanta gente produzindo conteúdo hoje em dia que talvez no futuro suas tendências se cancelem.

  • se levarmos em conta a cultura dominante atual, capaz de as crianças de 2100 estudarem que a civilização foi criada por uma muçulmana lgbtsndiafaçfne negra e obesa através do seu iphone encantado. ah, e que o maduro era de extrema direita.
    mas será que história vai continuar a ser estudada no futuro? porque não é como se fizesse diferença pro humano médio quem inventou as coisas que ele consome ou quem criou equação tal, mas sim suas aplicações. acho que só vai estudar história quem estiver a mando de algum ditador pra fazer propagandas eficientes e prever comportamentos humanos. ou então quem for absurdamente nerd pra querer estudar tanta coisa.
    também não vejo tanta diferença entre uma pedra entalhada, um livro, um arquivo de computador e uma postagem na internet, todos podem ser facilmente apagados à sua maneira por quem quiser e puder($$$).

    • Tem uma diferença entre informações: a informação do passado era uma ararinha azul, raras e dependentes de muita coisa para continuar existindo. A informação do presente é pior que barata, quando você pensa em esmagar uma, já nasceram mais duas cópias em basicamente qualquer lugar.

    • Lembrei do Ministério da Verdade, de 1984, lendo este comentário. No livro, esse ministério é justamente o responsável pelo revisionismo histórico, tanto reescrevendo artigos de jornais do passado com motivações puramente ideológicas quanto destruindo documentos não adulterados de forma a esconder mentiras do Governo e eliminar questionamentos.

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