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Colunas

O que é uma mulher?

Jo Swinson foi, até dia 13 de Dezembro, líder dos Sociais Democratas, terceiro maior partido político da Grã-Bretanha. Num programa de rádio da BBC, respondia perguntas da população em ligações ao vivo. As coisas seguiam relativamente tranquilas enquanto explicava suas propostas sobre mudar as leis sobre reconhecimento de gênero. Até que uma ouvinte ligou e fez uma simples pergunta: “o que é uma mulher?”.

Uma pessoa normal poderia responder essa pergunta com facilidade. Uma pessoa mais simples simplesmente mencionaria as conhecidas características físicas, alguém mais culto poderia sugerir dois cromossomos X, e até mesmo que quisesse ir além e incluir transexuais teria uma resposta razoável, afinal, algumas pessoas que nascem com o corpo masculino fazem sacrifícios incríveis para realinhar sua imagem com o que sentem que honestamente merecem o título.

Jo, por sua vez, não teve muita desenvoltura na resposta. Parecia nervosa, como se estivesse atravessando um campo minado. Seu primeiro instinto foi desviar e dizer que mulheres sabem quem elas são e fez questão de mencionar todas as combinações possíveis de grupos humanos. O problema é que a mulher que perguntou continuava na linha, e não aceitou a enrolação. Pressionada novamente por uma resposta, a política britânica continuou gaguejando e insistindo que as pessoas sabiam o que era uma mulher. A ouvinte então pergunta se um homem que vai trabalhar de vestido duas vezes por semana é uma mulher. Jo responde que não necessariamente. A ouvinte pergunta se ele poderia ser. Mais enrolação. Tudo para não olhar para o elefante na sala: ela defendia uma legislação onde qualquer pessoa poderia se identificar com qualquer sexo a qualquer momento.

Se você achou uma loucura, sorria: ela perdeu a votação e não é mais uma parlamentar. Aliás, a direita teve uma vitória acachapante no Reino Unido, muito por culpa dos excessos nas propostas da esquerda durante as eleições, afinal, o atual Primeiro Ministro deles é uma piada ambulante. De novo vemos a esquerda perdendo a noção da realidade e deixando o povo “refém” de uma direita que se não é muito brilhante, pelo menos ainda parece ter algum contato com a realidade da maioria da população. Muito se falou na imprensa sobre propostas econômicas sugeridas pela esquerda britânica custando uma eleição que parecia ganha, mas eu vou discordar: o problema não é quanto imposto o governo diz que vai cobrar, e sim a dificuldade de responder à pergunta “o que é uma mulher?”.

O cidadão médio do velho mundo tende a ser mais educado do que o brasileiro médio sim, mas povão é povão aqui e na Noruega: uma considerável maioria da humanidade simplesmente não tem cabeça para entender sobre política, economia, ciência, filosofia… por falta de oportunidade e por falta de interesse mesmo. A vida é complicada, as pessoas têm um problema atrás do outro, falta dinheiro, leva fora, parente fica doente, vizinho faz obra, criança chora… sem tempo para escolher governantes pela sua política econômica, irmão.

Se você não vive numa bolha de gente que se dedica a pensar e aprender sobre as coisas, você pode realmente ficar em dúvida até se a Terra é redonda ou chata. Já disse isso antes quando falava de terraplanistas e repito: o povo que acredita nisso não é muito diferente da maioria das pessoas que você vai encontrar por aí. No segundo que elas acharem o tema importante, seja lá o motivo, é quase como jogar uma moeda a decisão de achar que o mundo é redondo ou plano. A pessoa nunca relacionou a terra ser redonda com mais nada na cabeça, é só uma ideia perdida no fundo da mente completamente indefesa contra qualquer sugestão externa.

Parece uma mudança de tema maluca, mas eu tenho um objetivo: vamos conectar os dois pontos dos últimos parágrafos. Pessoas costumam ter pouco incentivo para se dedicar a aprender qualquer coisa além do estritamente necessário para suas vidas habituais. Especialmente se você é um adulto com contas para pagar e tempo limitado de lazer. E como essas pessoas acabam com um monte de ideias sem muita âncora na cabeça, a diferença entre fatos científicos consolidado e boato de WhatsApp é praticamente nula. Não é como se a pessoa estivesse rejeitando algo que estudou por anos em troca de uma “fake news” irracional, está preenchendo espaço que não estava ocupado, ou trocando seis por meia dúzia: sai a informação que ela não usava e entra outra que ela mal entende no lugar.

Se um médico formado decide mudar o tratamento de uma doença por causa de um post aleatório do Instagram, é caso de internação em clínica psiquiátrica; agora, se uma mãe que acha que se urina pela vagina decide que vacinas causam autismo, não é tão chocante assim. Na verdade, é esperado. Que defesa essa pessoa tinha contra uma informação dessas? Não faz bem para a humanidade, mas é uma resposta esperada para a situação. E é aqui que eu faço o caminho de volta para o começo do texto: a esquerda mundial parece estar numa crise de compreensão sobre o ser humano médio. De uma hora para outra, esqueceram que a média da população mundial é tão ignorante sobre basicamente tudo o que não usam para sobreviver imediatamente que muitas informações podem ser assustadoras. Não tem contexto, não tem com o que conectar dentro da cabeça, são coisas perdidas dentro de um cérebro que simplesmente não está acostumado a trabalhar desse jeito.

Se um político de esquerda diz que vai aumentar os impostos para criar mais programas sociais, ou um político de direita diz que vai cortar impostos para incentivar a economia, a informação não é recebida com gravidade pela maioria. Nem para o bem, nem para o mal. Não tem muita informação estabelecida sobre o tema. Precisa que alguma pessoa que ela confie mastigue aquilo em termos mais simples. E pouco importa se a análise desse influenciador tem relação com a realidade: como a pessoa vai confrontar aquilo? A grande sacada da direita nos últimos anos foi descer até o nível dessa maioria e cortar intermediários: Bolsonaro fala coisas absurdas, mas que tem o tamanho exato para caber na cabeça do povão. Não precisa entender muita coisa, só que o Leonardo DiCaprio pagou para botarem fogo na Amazônia. Que escroto! Paulo Freire ensina crianças a fumar maconha? Prende ele! Querem me proibir de ir na igreja? Meu Deus!

A esquerda – que sempre foi muito hábil para abraçar o povão e falar das coisas do jeito que eles entendiam – acabou sequestrada por um grupo estranhamente elitista. Estranhamente porque presumia-se que a esquerda estava mais alinhada com as necessidades dos cidadãos mais humildes. Se formos analisar as políticas econômicas, são menos predatórios que a direita por larga margem, mas, como eu disse antes… cidadão médio, brasileiro ou britânico, não entende bulhufas disso e não tem o menor interesse de aprender. Quem disser as melhores frases curtas e mexer mais com o emocional deles leva. E como estamos vendo, a direita está levando.

Quando Jo Swinson trava ao ter que responder uma pergunta que até a cabeça mais oca de seu país consegue definir em segundos, demonstra esse problema: para continuar se comunicando com a bolha ideológica que acredita ser sua base de apoio, não pode mais usar o “discurso popular” para não ser acusada homofóbica. Precisa acomodar definições bem complexas desenvolvidas por gente que escreve livros sobre o correto uso de pronomes. E eu posso falar sobre isso sem fazer um julgamento sobre o mérito dessa teoria moderna sobre gêneros, porque o ponto é o grau de complexidade do que se discute. O cidadão médio não tem condições de entender sobre o que diabos essa mulher está falando quando fala que alguém é CIS. A ex-parlamentar britânica não consegue se comunicar com quem não adere à mesma ideologia que ela.

O candidato adversário pode só dizer que “vão deixar um homem barbudo entrar no chuveiro com a sua filha” e explodir essa discussão em meio segundo. De repente, um lado está falando um monte de palavras que não significam nada para o eleitor e o outro está fazendo uma ameaça terrível à segurança de seus filhos. Quem ganha essa eleição? Já escrevi muito sobre o mérito dessa questão de querer quebrar o conceito de gênero que já temos e todos os problemas que fatalmente se seguem, mas dessa vez nem precisamos desse foco. Você pode achar que autodefinição de gênero com as garantias legais relacionadas é o caminho correto para a humanidade e ainda sim concordar comigo que há um problema terrível com a comunicação da esquerda.

É possível defender pautas bem mais progressistas que a cultura do cidadão médio do seu país presume tolerável, desde que você faça um esforço para se comunicar. Não adianta achar que José – pai de quatro filhos que entrega Uber Eats com a moto emprestada do cunhado – vai entender qualquer coisa quando você fala sobre patriarcado. Ele não entende nem por que o aplicativo diz que ele vai ganhar 10 reais e só recebe 6. Não é que ele não quer aceitar que a moça arrumada da TV se preocupe com minorias, é que ele não tem a menor noção do que ela está falando. E quando alguém traduz, diz que tem a ver com estuprar crianças! José invade o Congresso armado antes de deixar alguém fazer isso com suas filhas!

“Mas não é isso que autodefinição de gênero significa!” – diz alguém que acha que conversar com alguém que escreve este texto tem alguma conexão com a opinião pública em geral. Falar comigo é fácil, tenta isso com o José…

Se os capitalistas estão fazendo esse mundo viver uma desigualdade financeira sem precedentes, os socialistas parecem querer fazer o mesmo com o grau de compreensão das pessoas. Uma elite barulhenta no Twitter atacando quem pensa diferente e uma imensa maioria de gente que precisaria nascer de novo para ter uma chance de entender toda essa conversa. Forma-se uma burguesia intelectual que não perde uma chance de pisar nos menos afortunados, criticando-os por não terem as mesmas oportunidades e sentindo-se iluminados em comparação. Pelo menos o elitista de direita ainda fala umas baixarias em público e toma um pingado na padaria da esquina antes da eleição ao invés de ficar berrando na rua que todos são estupradores.

E se perguntar para o Bolsonaro o que é uma mulher, 50% de chance dele dar uma resposta que você entenda (concordando ou não) e 50% dele fazer uma piada excluindo uma mulher feia famosa da lista… em qualquer um dos casos, ele ganha mais votos, porque pelo menos se comunica. Eu realmente não quero ver a esquerda se tornar irrelevante, mas como eu não usei o discurso aprovado, sou inimigo e devo ser ignorado.

É tão cansativo…

Para dizer que mulher é quem te deixar excitado, para dizer que eu não usei o discurso aprovado, ou mesmo para dizer que eu sou inimigo e devo ser ignorado: somir@desfavor.com

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