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Cultura livre.

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| Somir | | 6 comentários em Cultura livre.

Semana passada, o secretário da Cultura do governo brasileiro achou uma excelente ideia lançar um vídeo onde plagiava o discurso do ministro da Propaganda nazista, Joseph Goebbels. Até o visual e a música de fundo evocavam o sentimento. Foi tão na cara que Roberto Alvim estava desempregado no dia seguinte. Nada de valor foi perdido. Mas… alguém realmente prestou atenção no que ele estava dizendo?

O maior resultado disso tudo foi um aumento considerável de pesquisas por Joseph Goebbels, de virtualmente nenhuma nos últimos anos para o assunto mais interessante do Brasil por alguns dias. O tema discutido ficou em segundo plano, o que é razoável considerando com o que estava sendo comparado, mas mesmo assim, a maior parte das críticas estava diretamente relacionada com a origem nazista, quase como se quem dissesse fosse mais importante do que o que foi dito. A turma da polarização enfiou os dentes no assunto, declarando guerra a um suposto protótipo de regime nazista desenvolvido por Bolsonaro e cia. Não faz muito sentido, até porque num regime nazista, 90% do país iria para o forno… mas, gera cliques, então, foi o ângulo mais popular.

Como estou cagando para cliques, vamos pensar no conteúdo do discurso de Alvim, e toda essa mentalidade conservadora/cristã que tentam empurrar goela abaixo do cenário cultural brasileiro. Assim como na Alemanha de Hitler, Alvim queria uma arte nacionalista, com propósito! Foco na família, na religião, moral e bons costumes. Nada dessa baixaria hipersexualizada e apologia ao uso de drogas que define boa parte da produção artística popular tupiniquim! Deveríamos ser melhores que isso!

Não nego que nesse ponto ele, e Goebbels por tabela, estavam certos. Não pode deixar a criança viver só de doce, gratificação instantânea é divertido, mas não faz muito bem para a formação intelectual e até mesmo moral de um povo. Cultura abandonada acaba sendo moldada apenas pelo mercado, com suas expressões se tornando cada vez mais degeneradas por pura e simples demanda popular. É o mesmo conceito das drogas: a dose precisa continuar aumentando para gerar resultados parecidos.

Aliás, muito bonito governo que se diz liberal (economicamente) querer moldar qualquer comportamento popular através de ministérios e secretarias, não? Num mercado livre de verdade, se o povo só quer bunda e música sobre bebedeira, ele vai ter isso. Quem quiser fazer diferente que se prove financeiramente, oras. Mas eu não sou ultra-liberal assim, acho que o governo pode e deve gerar incentivos para apontar o país nas melhores direções, sempre com planos de longo prazo.

Por isso, as entidades governamentais precisam sim ter um plano para lidar com isso e manter um mínimo de pluralidade cultural. Senão no final do dia, vão estar financiando basicamente a mesma coisa do mercado privado, perdendo sua função social e pagando por mais shows da Anitta. Ou desesperados por alguma utilidade ao ponto de oferecer milhões para a Maria Betânia escrever um blog (não, eu nunca vou me esquecer). O Brasil carece sim de uma linha guia cultural gerada pelo governo, o que não quer dizer que arte evangélica é uma boa saída (já ouviu as músicas deles? Se o deus deles tem ouvidos, devem estar sangrando).

Do jeito que a classe artística brasileira se acostumou com a pasta da Cultura, parece que o governo é o papai que decide o que eles podem ou não comprar na loja. Como quase tudo no Brasil, a ideia não é ruim, mas a aplicação sim: o governo brasileiro decidiu que não ia escolher preferidos, distribuindo suas verbas e incentivos da forma mais isonômica possível. O que, repito, não é ruim em tese, mas na prática acaba sendo explorado por gente que não coloca esforço suficiente ou relevância social nos seus projetos. Se o governo não pode ver diferenças entre alguém que quer fazer um projeto para ensinar música clássica para crianças carentes e alguém que quer berrar pelado numa praça pública, temos um problema.

Não que a pessoa berrando pelada em praça pública seja inferior por natureza, e sim que para um projeto de longo prazo para o país, a música clássica para jovens pode ser mais eficiente para melhorar o índice de desenvolvimento humano nacional, por exemplo. Muito difícil querer regular o que pode ser cultura ou não, como o imbecil do Alvim, e por tabela o Goebbels queriam fazer, mas não é tão chocante assim querer dar essa linha guia para a classe artística.

Se o objetivo fosse incentivar projetos que aumentassem o acesso e a capacidade de produção de cultura pelo brasileiro, o governo poderia focar suas verbas em exposições e apresentações que criassem interatividade com o público. Não estaria dizendo que uma música é melhor que a outra, e sim que quanto mais brasileiros começassem a produzir música, melhor.

E nem precisa ser um projeto tão “social” assim. Um excelente exemplo é o projeto da Coreia do Sul, extremamente capitalista. Há algumas décadas, formaram um plano para gerar mais presença cultural ao redor do mundo. Deram muitos incentivos para o desenvolvimento de movimentos culturais próprios e investiram pesado na infraestrutura necessária. O resultado disso você vê hoje em dia, quando legiões de pré-adolescentes histéricas berram pelas boy-bands coreanas. O K-Pop não foi um fenômeno 100% privado, mesmo que os grupos e gravadoras não sejam públicos, eles geram muito valor para o país, e foram ajudados com subsídios e facilidades governamentais esse tempo todo.

O governo sul-coreano queria que isso acontecesse, e botou esse foco claro nas suas políticas. Parece bobagem, mas temos uma nova geração que acaba conhecendo muito da cultura deles, que tem imensa simpatia pelo país e que consome produtos que acabam gerando mais renda e impostos por lá. É o chamado “soft power”, e ele é gerado através da cultura. Boa parte do império americano é baseado nesse poder cultural. Um executivo inglês cuja filha é fã do BTS tem um começo de conversa muito mais leve e amistoso com um executivo sul-coreano… o país pode usar seus símbolos pop para fazer gestos de amizade com outros países. Ou mesmo reduzir tensões: uma fã japonesa de K-Pop tem uma visão do país que simplesmente não era possível anteriormente, dada a relação horrível que os povos tem em sua história.

E falando de rivalidades regionais: por que a Argentina humilha o Brasil em virtualmente todas as vertentes culturais mais eruditas? Tudo bem que o governo deles também é uma zona, mas existem decisões conscientes do que priorizar vindas de tempos melhores. Se fosse só pelo número de pessoas inteligentes, o Brasil tem uma população tão maior que deveria ser no mínimo parelho. Mas como aqui nunca houve um direcionamento, nem para erudição e variação (só música, Brasil?), nem para exposição da nossa “marca” ao redor do mundo, acabamos sem identidade além de alguns estilos musicais, e isso já está ficando no passado. Só fazemos funk e sertanejo em larga escala hoje em dia, e música de bunda e bebida todo país tem, não gera um capital tão valioso.

Ou seja: em tese, eu concordo com a ideia de que o Brasil precisa de alguma linha cultural incentivada pelo governo. A alemã da época do nazismo não é uma boa escolha por ser muito alienígena para o brasileiro médio, e por ser nazista (dã) num país 70% preto ou pardo, a “gospel” carece de qualidade (os americanos são muito melhores nisso), e a nacionalista… bom, essa vai exaltar o quê? Nossa história é bem fraquinha, nossos expoentes culturais raros e… o brasileiro não é lá muito patriota. Verde a amarelo é decoração de Copa do Mundo e protesto contra o PT. De resto, não temos muita unidade nacional para celebrar.

Mas, temos um buraco enorme na variação da nossa produção cultural, no acesso aos meios de produção artística e um gigantesco mercado de exportação que ninguém está explorando. Caguei se é o Los Hermanos ou a Pablo Vittar que deixar encantada a filha do executivo que vier fazer negócios aqui, mas tem que ser alguém. Temos um país de centenas de milhões que batuca até em caixa de fósforo. Deixar a coisa rolar claramente não deu certo, então sim, vale a pena ter um plano, desde que ele seja desenvolvido por alguém com mais de meio neurônio que não esteja mais preocupado em ajudar os colegas do que avançar o país.

Ah, o Bolsonaro chamou a Regina Duarte… esquece.

Para dizer que todo mundo que você não gosta é o Hitler, para dizer que todo mundo que você não gosta é judeu, ou mesmo para dizer que é só lançar uma boy-band de travestis para ganhar o mundo: somir@desfavor.com


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