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Enxaqueca.

Enxaqueca.

| Sally | | 15 comentários em Enxaqueca.

Uma em cada cinco mulheres e um em cada 20 homens sofrem (e muito) com ela. No Brasil, mais de 30 milhões de pessoas são acometidas por este mal e, no mundo, pelo menos um bilhão. Apesar dessa incidência significativa, ainda há muitos mitos e informações desencontradas que merecem ser revistas, para tentar ajudar a melhorar a qualidade de vida dessas pessoas. Desfavor Explica: Enxaqueca.

Para começo de conversa, a enxaqueca não é “uma dor de cabeça muito forte” e, portanto, não deve ser tratada como tal. É essencial que se entenda a diferença: você pode ter apenas uma dor de cabeça muito forte sem ter enxaqueca, pois não é apenas a dor que a define.

A enxaqueca é um problema neurológico, crônico e hereditário. Você nasce “portador de enxaqueca”, ela vem de fábrica, não em função de algo que você comeu ou do seu estilo de vida. Um problema neurológico precisa ser tratado como tal, coisa que nem sempre pacientes e médicos fazem. Sua origem é genética, portanto, se está nos seus genes, você vai ter enxaqueca, seja você um astro do rock, um padre ou um professor, comendo vegetais, carne ou lixo hospitalar. Não é culpa do paciente nem de seus hábitos.

A dor de cabeça comum costuma depender dos hábitos de vida da pessoa: uma noite mal dormida, muitas horas sem comer e outros fatores tendem a ser responsáveis pela dor de cabeça, como um sintoma de que o corpo não está recebendo o que precisa. A enxaqueca não, ela pode acontecer mesmo que você faça tudo da forma mais correta possível, ou seja, ela não é evitável, apenas tratável.

Para ser enxaqueca não basta doer a cabeça. Ela ocorre em surtos, as chamadas “crises”, que costumam ocorrer de forma recorrente e durar entre 4 e 72h, apesar de existirem relatos de crises que se estenderam por mais de duas semanas. Não é algo pontual na vida da pessoa e a dor de cabeça é apenas um dos muitos sintomas.

Durante as crises, o enxaquecoso experimenta não apenas dor de cabeça, mas também náuseas (em casos extremos vômito), sensibilidade extrema a estímulos externos. É muito comum que se acredite que esta sensibilidade extrema é à luz, mas, na verdade, pode ser a qualquer estímulo externo: sons, odores e até mesmo um simples caminhar pode reverberar na cabeça como se a pessoa estivesse recebendo pancadas.

Também é possível que ela se apresente de forma atípica, com dores no rosto, nos olhos, nos ouvidos, nos ombros, na nuca, nas gengivas e outros sintomas menos populares, que fazem com que a pessoa nem imagine que a causa seja enxaqueca. Pode acontecer inclusive da enxaqueca se apresentar sem dor de cabeça, apenas com outros sintomas.

Então, é importante deixar bem claro que enxaqueca não é necessariamente uma dor em um dos lados da cabeça, essa é apenas a sua versão clássica. Mas ela pode se apresentar em muitas outras versões. O que todas tem em comum é um desconforto recorrente, que acontece de tempos em tempos, vinculado a dor ou estímulos sensoriais exacerbados.

Normalmente nosso corpo utiliza a dor como um mecanismo de aviso ou de defesa, indicando que ocorreu um problema ou uma agressão dos quais você tem que se proteger. Por mais desagradável que seja sentir dor, ela serve como um indicativo de algo: tem um osso quebrado que precisa ser reparado, tem um corpo estranho no seu rim que precisa sair, etc. Porém, na enxaqueca isso não se aplica. É um dos poucos casos de dor sem qualquer razão de ser, apenas pelo organismo ter entrado em pane. Por isso se costuma chamar a doença de “O sofrimento inútil”.

A enxaqueca não decorre de nenhum problema de saúde nem indica qualquer problema de saúde, é apenas um “defeito de fábrica” com o qual a pessoa nasce e que desencadeia um alarme falso do cérebro. Sim, é um overeacting cerebral. E aí está uma das principais diferenças da dor de cabeça comum para a enxaqueca: pessoas que têm uma dor de cabeça comum não possuem uma alteração no cérebro, os exaquecosos sim.

O cérebro de quem sofre de enxaqueca é diferente de um cérebro “comum”. Nele, os circuitos cerebrais de comunicação da dor estão desajustados. É como se os neurônios fossem mais sensíveis do que o normal e, durante a crise, pegassem um pequeno estímulo e o interpretassem como algo muito maior do que é. Seria o equivalente a sentir arranhões profundos pelo simples roçar de uma roupa no corpo. Um pequeno estímulo, normalmente tolerado sem problemas, se torna um tormento.

Assim, um leve pulsar de artérias vira uma irritante sensação de latejamento. Movimentos normais do aparelho digestivo podem ser sentidos como cólicas dolorosas. Um abajur discreto pode ofuscar a visão de forma dolorosa. Uma torneira pingando pode virar um desconforto auditivo insuportável. Complicado, sobretudo no mundo atual, onde vivemos em constante excesso de estímulos.

Então, não é que seu corpo esteja experimentando esse nível de dor, na verdade, seu corpo acha que está experimentando esse nível de dor por equívoco. O resultado final é o mesmo: você sente muita dor e desconforto. Porém o fato dela ser apenas um equívoco (e não um sinal de que tem algo de muito errado no seu corpo) permite que se desligue esse alarme sem medo e sem necessidade de maiores investigações. Enxaqueca é apenas uma sirene de incêndio quebrada que toca sem motivo.

Mas, antes de falar sobre tratamentos e uma eventual cura, vamos entender como as crises de enxaqueca funcionam no organismo.

A dor de cabeça em si costuma ser a atração principal do show, mas a enxaqueca começa muito antes da dor de cabeça se manifestar, mesmo que a pessoa não perceba. Podem ser sinais muito sutis, mas eles estão lá, é só observar com cuidado. Perceber que o processo está iniciando é fundamental para a qualidade de vida do paciente, em breve você vai entender o porquê.

Normalmente a enxaqueca começa a dar seus primeiros sinais em uma fase que se inicia cerca de 48h antes da fatídica dor de cabeça se manifestar (papo técnico: pródromo). Podem ser sinais muito sutis, que não são percebidos se você não souber o que procurar, ou que podem ser atribuídos a outros fatores externos.

Por isso, vamos te dizer o que procurar: fome em excesso, desejos alimentares (especialmente por doces), urinar com mais frequência, bocejos em excesso, sensação de sono durante o dia, grande sensibilidade ou aversão à luz (papo técnico: fotofobia), cansaço, dificuldade de concentração, irritabilidade, sentimentos depressivos e até confusão mental.

Existem alguns sintomas atípicos, que são raros, porém possíveis, como formigamento nos braços ou sentir cheiros que não estão lá, ver objetos “pela metade” (apenas metade deles estão nítidos). Cada enxaqueca é uma enxaqueca, você vai precisar conhecer a sua.

O ideal é que se faça um diário, para observar quais são os “sintomas” que estiveram presentes nas 48h antes de cada crise. Chato e trabalhoso, porém melhor do que ser pego de surpresa por sucessivas crises de enxaqueca.

Esses sintomas que antecedem a dor de cabeça acontecem graças a alterações na atividade cerebral que ocorrem nesse período (papo técnico: no hipotálamo, que controla o metabolismo). Nas 48h que precedem a enxaqueca, o hipotálamo vai começar a surtar, se portar de forma estranha e esse comportamento fora do comum já configura o início da crise de enxaqueca.

Em algumas pessoas, ocorre uma outra fase posterior com manifestações neurológicas chamada “Aura”. Podem ser diversas manifestações neurológicas, mas a mais comum (90% dos casos) é a aura visual: ver pontos pretos (papo técnico: escotomas), ver pontos brilhantes (papo técnico: cintilações) ou imagens em ziguezague (papo técnico: espectros de fortificação). Surgem em uma parte do campo visual e, aos poucos, vão se espalhando de forma gradual. Geralmente duram entre 5 minutos a uma hora.

Mas também podem surgir outros sintomas nesse período de Aura, como por exemplo alterações sensitivas: formigamentos ou dormências, que começam em um lado do corpo e gradualmente vão se espalhando. Geralmente começam nos braços, no rosto ou na língua. Outra modalidade são as alterações de fala ou linguagem: dificuldade em pronunciar certas palavras (papo técnico: disatria) ou acreditar que estão falando corretamente mas emitir sons incompreensíveis na hora de falar (papo técnico: afasia de expressão).

Nem todos os enxaquecosos passam por essa fase da Aura, mas, nos que passam, ela geralmente se encerra emendando com o início de outra fase nada agradável: uma dor de cabeça infernal (papo técnico: Cefaléia)

Quando a fase da Cefaléia finalmente se manifesta, o hipotálamo continua surtando: ele manda sinais para outras regiões (papo técnico: tronco encefálico) alarmando o coleguinha, fazendo com que aumente sua sensibilidade, gerando, além da dor, náuseas e reações exacerbadas a estímulos externos, como por exemplo, à luz.

É como se uma pessoa, por um equívoco, achasse que o cinema estava pegando fogo e gritasse “FOGO! INCÊNDIO! VAMOS TODOS MORRER!” fazendo com que todo mundo corra de forma descontrolada – por nada. Certamente o dano será menor se, em um primeiro momento, você conseguir conter essa pessoa antes que ela alarme todas as outras, daí a importância de perceber a enxaqueca ainda no pródromo.

Mesmo quando a dor de cabeça passa, o hipotálamo continua muito louco. O fato da dor de cabeça passar não quer dizer que a enxaqueca passou, ela só está em uma fase diferente (papo técnico: pósdromo). É como uma ressaca após um evento exaustivo no seu cérebro. Alguns sintomas podem ser percebidos graças a essa alteração do hipotálamo, coisas como aversão a comida, sonolência, dificuldade de concentração, cabeça dolorida ou um cansaço extremo, como se a pessoa tivesse sido atropelada.

Muito se fala dos “gatilhos”, fatores externos que seriam capazes de desencadear crises de enxaqueca. Durante muito tempo isso foi visto como uma verdade e enxaquecosos eram compelidos a evitar chocolate, queijos, vinho, embutidos, café, chá preto, fermentados, feijão, sementes em geral, defumados, picles, glutamato monossódico, carnes vermelhas, sorvetes e alimentos gelados no geral, anticoncepcionais, calor excessivo, frio intenso, cheiros fortes, jejum prolongado, poucas horas de sono, horas de sono em excesso, estresse, fim do estresse (por exemplo, primeiro dia de férias)… a lista é enorme. Mas, a dinâmica desses gatilhos vem sendo discutida. Será que são realmente gatilhos?

A questão é: uma pessoa come chocolate e tem enxaqueca. Será que ela teve enxaqueca por ter comido o chocolate? Ou será que a vontade de comer chocolate veio por ela já estar no pródromo e, portanto, já estar na crise de enxaqueca? Será que é gatilho ou será que já é sintoma de que a crise está começando? A tendência, hoje, é deixar de ver como gatilhos e passar a ver como sintomas.

A enxaqueca é uma síndrome neurológica, um problema genético, hereditário. Você tem enxaqueca por ser você, não por comer chocolate. A maior prova disso é que mesmo que você controle todos os aspectos da sua vida da melhor forma possível, não vai ficar “curado” da enxaqueca. Acreditar que são os gatilhos que a desencadeiam é, de certa forma, agradável, pois dá uma falsa sensação de controle, mas, uma corrente mais moderna da medicina diz que não é assim que funciona. Faz sentido, se as crises fossem evitáveis (evitando os gatilhos), não teríamos tanta gente sofrendo horrores com a doença.

Atualmente, o mais indicado é levar uma vida normal e observar os sintomas do pródromo. No que a pessoa percebe que está nessa “pré-enxaqueca”, já deve recorrer a medicação e repouso, para minimizar a parte aguda (geralmente a dor de cabeça mortal), quando ela chegar. É muito mais fácil apagar um incêndio no começo do que no auge, concordam? O grande problema é que a pessoa se dê conta de que tem enxaqueca e perceba quais são seus sinais de pródromo.

Estudos indicam que um paciente com enxaqueca demora cerca de dez anos para procurar ajuda médica, porém, esse tempo aumenta em 50% se a pessoa acredita que pode administrar as crises evitando os “gatilhos”. Então, essa falsa sensação de controle que os gatilhos geram fazem mais mal do que bem. As crises, obviamente virão, pois é genético e não ambiental. A pessoa obviamente vai tomar analgésicos, pois o desconforto é muito grande e, adivinha só? Analgésicos por conta própria podem fazer piorar a condição.

É um ciclo vicioso: a pessoa não vai ao médico pois acha que pode evitar as crises evitando os gatilhos. Como isso é uma lenda urbana, a crise vem mesmo assim, ela toma analgésicos. Os analgésicos podem provocar mais crises. Analgésicos errados ou ingeridos de forma errada podem ativar a predisposição genética para enxaqueca, fazendo com que o problema fique muito mais constante.

O saldo final é péssimo. Esqueçam esse papo de gatilho, você não tem como controlar uma condição neurológica com a qual você nasceu. Gaste sua energia observando os sintomas que indicam o começo da sua enxaqueca que essa é sua melhor chance de qualidade de vida.

Além de sofrer por mais tempo de forma desnecessária, adiar o tratamento de enxaqueca piora a condição do doente. A tendência (salvo raras exceções) é que a frequência das crises aumente. Quanto mais você permite que seu cérebro tenha crises de enxaqueca, mais ele vai fazê-lo, até se tornar um “hábito”. Então, anota aí: nem toda a disciplina do mundo pode evitar uma crise de enxaqueca. Procure ajuda. Não é uma opinião minha, a ciência corrobora com esta afirmativa: estudos indicam que 96% das crises de enxaqueca não tem qualquer relação com as comidas, atividades e estímulos comumente chamados de “gatilho”.

Agora que sabemos que evitar gatilhos não ajuda em nada, muito pelo contrário, atrapalha, por gerar uma falsa sensação de controle no paciente, que adia a procura por um tratamento real, vamos entender o que pode ser feito de realmente eficiente.

Existem tratamentos preventivos eficientes para enxaqueca, feitos com remédios que originalmente foram desenvolvidos para outras doenças como epilepsia, problemas cardíacos e pressão alta. Também começam a chegar ao mercado, ainda de forma tímida, remédios desenvolvidos especificamente para enxaqueca (ano passado a ANVISA aprovou um deles).

Seria irresponsável e até criminoso sugerir qualquer medicamento aqui, isso deve ser conversado com o seu médico, pois varia, caso a caso. O importante é que você saiba que existem diversas opções e que não precisa chegar à dor de cabeça mortal para começar a se tratar. Muito pelo contrário, às vezes aprendendo a se conhecer e se medicando antes, a dor de cabeça mortal nem chega, ou chega bem mais branda.

Para casos mais extremos, também existe uma cirurgia disponível: pequenos cortes em músculos da cabeça aliviariam a pressão e a dor. Mas, novamente, isso é conversa entre você e o seu médico. Nosso papel é só te informar que existe.

Em alguns casos, a enxaqueca pode “desaparecer” sem que se faça nada. Em mulheres, por exemplo, onde a incidência de enxaqueca é muito maior pelo fator hormonal, é possível que com a menopausa as crises sejam atenuadas e até parem de acontecer. Mas isso não quer dizer que você deva cruzar os braços e esperar que ela desapareça. Não vale a pena anos ou décadas de qualidade de vida reduzida quando já existem recursos para tratar ou atenuar a enxaqueca.

E, para finalizar, se você não conseguir controlar as crises, estiver sem qualidade de vida ou estiver tão exausto que aceitou viver em condições não satisfatórias, procure uma segunda opinião. Uma terceira, uma quarta, quantas forem necessárias. Nunca desista de procurar, uma hora você encontra um médico que acerta no diagnóstico e no tratamento. Não desista de você mesmo, por mais cansado que você esteja.

Para dizer que você não sabia nada sobre enxaqueca, para dizer que este texto te deu dor de cabeça ou ainda para dizer que é lamentável o numero de médicos que não se atualizam: sally@desfavor.com


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