Parasita.

O filme sul-coreano fez bastante sucesso no circuito de premiações internacionais até aqui, e pode até conquistar algumas estatuetas no Oscar 2020, sendo a de melhor filme em língua estrangeira o mais provável. Mas, será que é tão bom assim mesmo?

Parasita, numa sinopse de Sessão da Tarde, seria uma família muito louca que apronta altas aventuras para ganhar uns trocados dos patrões. O filme começa estabelecendo uma casa muito pobre nos subúrbios de um cidade sul-coreana, com todos os membros da família desempregados. Depois de conseguir uma oportunidade para trabalhar na casa de uma família rica, o filho começa a tramar para empregar a irmã, e isso desemboca numa série de esquemas e falcatruas para substituir todos os empregados da casa pelos membros da família. Mas, como um filme não sobrevive só pela premissa, isso tem consequências terríveis.

O filme começa mais próximo de uma comédia, mas vai mudando a marcha em direção ao suspense, e finalmente à tragédia. Não dá para categorizar com facilidade o tom, porque ele está a serviço do desenrolar da trama. Quando as coisas são leves, temos humor, quando o clima começa a pesar, vai ficando mais tenso e agressivo. Mas mesmo com toda essa gama de sentimentos, você nunca sente que o filme está indeciso, as coisas estão bem amarradas com o que você vê na tela a cada momento.

Na parte técnica, o filme é um primor. Fotografia, sons, figurino… tudo muito bem feito ao ponto de não te distrair da história. Não é um filme que precisa de cenas grandiosas ou efeitos especiais chamativos, as coisas se resolvem nos diálogos e nos detalhes das atuações e cenários. A câmera fica próxima das pessoas e se afasta apenas para estabelecer (com takes muito bonitos) os cenários. O cinema asiático tende a ser meio exagerado com os movimentos de câmera, mas Parasita é bem estático e fácil de acompanhar. Não tem do que reclamar.

E na hora de falar das atuações, temos algumas peculiaridades do estilo do cinema local. Se você já viu vários filmes japoneses, chineses (ou de Hong Kong se é bagaceiro como eu) e coreanos, sabe que é comum uma certa teatralidade nos atores e atrizes, exagerando algumas expressões faciais e corporais. Em Parasita, isso é mais controlado, mas por vezes você percebe esse hábito, especialmente no contraste entre a estoicidade de cenas banais e a “explosão” em momentos de maior emoção. Pode chamar a atenção de alguém que não está acostumado, mas fiquem tranquilos que não é nem próximo dos exageros de filmes de kung-fu. Novamente, todos muito bons porque seguem o pedido pela história. Nenhuma atuação chama mais atenção do que o roteiro.

A partir daqui, vai ser impossível não entrar em spoilers, então… decida agora se vai querer ver antes de ler.

O filme é vendido como uma crítica à desigualdade, mas talvez seja algo mais pronunciado para quem vive em sociedades menos precárias. Como brasileiro, eu basicamente vi uma família que nem estava tão mal assim se aproveitando de uma que estava melhor que a média. Por aqui, estamos acostumados com pessoas absurdamente pobres convivendo com pessoas absurdamente ricas. E, é claro, a ideia de ter empregados em casa é muito menos alheia à vida cotidiana no Brasil. Não é símbolo de riqueza ter uma empregada, é o que muita família de classe média ainda faz. Então, é importante saber se afastar um pouco da realidade brasileira para perceber os contrastes de Parasita.

E especialmente importante esquecer que é brasileiro na hora de julgar os golpes que a família dá para conseguir trabalhar na casa. Numa cultura de esperteza a qualquer custo, o que eles fazem para demitir o motorista e a governanta nem é tão grave assim. Mas para quem não vive no perrengue brasileiro, há um fator de “prazer proibido” ao ver algo tão errado acontecendo de forma tão eficiente. Por aqui, esse filme poderia ser feito 100% como comédia e provavelmente não seria estranho.

Porque os elementos estão lá: são todos golpistas de uma forma ou de outra. Durante a primeira parte do filme, eles são vistos sob uma ótica mais simpática, com sua esperteza e mentiras gerando resultados positivos e os tirando da miséria. Só que ao invés de seguir uma fórmula mais batida de só gerar uma dificuldade extra na conclusão para um final feliz, Parasita coloca consequência terríveis para tudo isso. Viver na mentira é perigoso, especialmente quando você está por baixo.

E na soma das mentiras da família protagonista e das mentiras da governanta que perdeu o emprego, temos uma situação de vida ou morte que gera excelentes cenas de suspense. Basta uma coisa saindo do script para quem vive na mentira estar em maus lençóis. Descobrimos que na vida real, a competição pela sobras dos mais ricos é o trabalho de muitos. Tantos que os patrões, que soam como completos imbecis no começo por cair nos golpes dos protagonistas, na verdade não se importam o suficiente com o que acontece com esse povo todo para pensar duas vezes.

O marido da ex-governanta morando num bunker secreto dentro da casa é a prova de como os ricos não tem sequer tempo para se preocupar com o que acontece abaixo deles. Eles geram um ecossistema dependente embaixo de suas riquezas, e quanto menos forem incomodados por ele, melhor. O que começa a desvalorizar um pouco todo a sagacidade dos planos dos protagonistas: você é realmente esperto quando engana que não está nem aí para sua existência? Aqui o filme começa a mudar de tom, porque é a realização da “pequenez” dos golpistas.

Não só eles estavam explorando os ricos, a ex-governanta e marido tinham feito disso seu modo de vida. E mesmo com anos e anos de dedicação ao modo de vida, foram trocados como uma fralda suja. O parasita é impotente quando recebe atenção. O filme também começa a introduzir um detalhe que se torna essencial no final: o cheiro do pai da família pobre. Algo que ele não sente, mas os ricos sim. Um cheio característico de sua vida num porão, que não importa quão sagazes sejam seus esquemas, não sai. O pobre tem uma marca. É o filme falando sobre a imensa dificuldade de ascensão social numa sociedade desigual. O homem não percebia seu cheiro, mas quando tem a noção de como os ricos o sentem, não consegue mais ignorar. É quase como se ele começasse a se moldar por essa ideia.

Seguem-se cenas brilhantes de tensão, com a família de golpistas escapando por milímetros de ser exposta, a situação saindo de controle e uma alegoria a isso na enchente que acaba com sua casa. Estão todos presos num porão prestes a ficar submerso. Então, o filme parte para sua conclusão: com a água no pescoço, não há como encontrar mais qualquer tipo de paz. Pressionado pela disputa com outros parasitas, o homem perde a filha e o controle quando nota uma última vez como seu cheiro não pode ser mascarado.

Parasita termina em tragédia. Os ricos pagando um preço muito caro por não conseguirem prestar atenção naqueles abaixo deles, os pobres totalmente perdidos por chacoalhar o status quo. O filme é bem menos “comunista” do que muitos dizem por aí nas análises: não é sobre o coitadismo do pobre, é sobre a relação doentia que surge da desigualdade. Seres humanos são imprevisíveis e estão sempre se adaptando ao ambiente. Mas quanta adaptação é possível num mundo de poderes tão desiguais? Não vi em momento algum no filme um problema inerente à riqueza, não tem nenhuma caracterização vilanesca nos ricos. Cada família tem sua vida, mas o equilíbrio entre rendas tão díspares se torna impossível.

Um roteirista menos sutil teria feito logo uma relação entre senhores e escravos, o fato do filme não te dar nada além de ponto de vista para definir o protagonismo é prova de uma análise mais certeira das questões sociais que se presta a ilustrar. A “revolução” no final do filme não leva a nada. É só a resolução de uma tensão que não gera fatos novos. Tanto que fica implícito que o pai da família continua vivo como parasita de novos ricos. Ambas as famílias perdem para esse conflito.

E no final das contas, a única solução que o filho da família pobre enxerga é ficar rico ele mesmo e comprar a casa para salvar o pai. O sistema vence, mesmo com seu equilíbrio impossível.

Para dizer que vai fazer questão de nem ver, para dizer que é divertido e não essa punhetação toda que eu escrevi, ou mesmo para dizer que tudo é política hoje em dia: somir@desfavor.com

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Comments (7)

  • Geraldo Renato da Silva

    Não assisti, mas quando vejo um filme com um enredo desse naipe, vejo o quanto o nosso “cinema nacional” está há anos luz de distância do resto do mundo.

  • Eu gosto muito do cinema oriental, principalmente os chineses e japoneses. Um que eu assisti recentemente foi She Remembers, He Forgets de 2015, acho que vale uma conferida. Fala sobre escolhas que fazemos e o quanto nos favorecemos ou nos arrependemos delas.

  • Só um adendo ao meu comentário anterior: não se esqueça de dar pelo menos um prato de comida pra Sally no porão.

  • Eu gostei muito! E os atores são ótimos, você sabe que vai dar bosta e você torce para todos do mesmo jeito porque eles são legais demais :P
    A questão é a imobilidade econômica. Não é sobre quem não quer trabalhar, mas quem quer trabalhar mas não tem chance. Não importa o quão esperto seja o indivíduo, será muito difícil pra ele deixar a sua classe social-econômica. Essa tendência de estagnação/retrocesso social será um “teste final” para os Estados modernos e para o próprio sistema democrático no futuro. (por mim já passou da hora de unificar todas as moedas do mundo, mas enfim)

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