Terraformar: Marte.

Demorou, mas voltamos à série: depois de falar sobre Vênus, hoje vamos analisar as possibilidades de transformar Marte num planeta mais parecido com a Terra. O planeta vermelho tem muitas das características básicas para se tornar habitável, bem mais do que o inferno que é a superfície venusiana. O problema é que Marte está… morto.

Só para relembrar: terraformar um planeta não é necessariamente fazê-lo idêntico à Terra, e sim criar condições mínimas para a que a vida humana possa existir por lá. Você pode considerar que só está terraformado o planeta onde uma pessoa pode andar pelada pela superfície até morrer de fome ou sede, mas não tem nada de errado em considerar que a tarefa está realizada se você precisar só de uma máscara de oxigênio simples e não puder ficar muito tempo exposto aos elementos, afinal, tem muito lugar aqui na terra onde isso também acontece. Se a vida em Marte for tão difícil quanto a vida no topo do Everest, já seria um feito gigantesco da humanidade.

Mas como disse no primeiro parágrafo, é como se Marte fosse uma Terra morta. As características que definem a possibilidade da vida aqui parecem já ter acontecido por lá, especialmente nos quesitos de pressão atmosférica, campo magnético e água em estado líquido. Ainda há uma dúvida razoável se já houve ou se ainda há vida simples em Marte. Vamos analisar cada um desses fatores e como eles impactam no processo:

Atmosfera: no planeta Terra, temos uma grande e confortável barreira de gases ao redor da crosta, composta de nitrogênio, oxigênio, argônio e gás carbônico com traços de outros elementos. Por mais que precisemos do oxigênio para viver, no final das contas, o nitrogênio é tão importante quanto, afinal, é o seu volume que compõe a maioria dessa barreira. O elemento certo ajuda, mas esse é um jogo de números. Marte tem uma atmosfera, mas ela é muito mais fraca. Composta basicamente só gás carbônico, não gera pressão suficiente para manter água em estado líquido, regular a temperatura, nem mesmo a tão importante barreira contra raios cósmicos.

Campo Magnético: Marte não tem atividade geológica, o que presume que em seu interior não existem as forças que criam vulcões e terremotos aqui na Terra. Mas como o maior vulcão conhecido no Sistema Solar está justamente por lá, isso já deve ter acontecido em algum momento de sua longa história. Na Terra, é a atividade do centro do planeta que transforma o planeta num “imã gigante” e por sua vez faz com que um campo magnético poderoso se forme ao nosso redor. É esse campo que forma a mais poderosa barreira contra a radiação que vem do espaço a todo momento. E radiação não é mágica: são partículas que vem em alta velocidade e se chocam contra tudo o que está no seu caminho. Campos magnéticos repelem essas partículas antes que elas desfaçam a atmosfera do planeta. Marte ficou sem campo magnético tempo o suficiente para ficar com a atmosfera que tem hoje.

O planeta está bem mais longe do Sol que a Terra, por isso recebe menos luz. Mas não é algo tão terrível assim. As temperaturas de Marte são tão baixas muito mais por não ter uma atmosfera que consiga prender o calor do que exatamente por distância da estrela. Mas mesmo com todos esses defeitos, não tem temperaturas médias de quase 500 graus e chuvas de ácido como em Vênus. Se um dia decidirmos terraformar um planeta, é bem provável que comecemos por Marte.

Mas chega de falar de problemas, vamos pensar em soluções. Existem várias propostas para terraformar o planeta vermelho. Vamos ver algumas delas:

Importação de gases: uma boa estratégia é usar a química ao nosso favor. Amônia é um elemento surpreendentemente abundante no Sistema Solar, e caso inserida na atmosfera marciana, acaba se quebrando em hidrogênio e nitrogênio. Nitrogênio, como sabemos aqui na Terra, é um excelente elemento para sua atmosfera, pois além de ser inerte para nós humanos, ainda pode acabar ajudando a vida vegetal. Claro que sem um campo magnético a atmosfera ainda seria expulsa pelo vento solar, mas estamos falando de milhões e milhões de anos até isso acontecer. Só que estamos falando da atmosfera um planeta que se menor que a Terra, não passa nem perto de ser pequeno. Precisaríamos bombardear Marte com incontáveis asteroides cheios de amônia para sequer começar o processo. Luas e planetas mais distantes no Sistema Solar são ricos na substância, então, desde que tenhamos uma logística bem estabelecida, pode ser só questão de alguns séculos.

Outra possibilidade é o gás metano, que existe em imensa abundância na lua Titã de Saturno. Ele ajudaria com o efeito estufa, prendendo mais calor na superfície, mas não é o mais indicado para um planeta tão próximo do Sol, afinal, é leve demais para ficar mais que alguns anos na atmosfera. Sem contar que parece um desperdício de um gás tão útil para produção de energia, por exemplo.

Além disso, podemos fazer a festa com aqueles gases que foram proibidos aqui na Terra: os clorofluorcarbonetos (CFCs). Eles e outros equivalentes não podem mais ser usados livremente por aqui por serem perigosos para nossa camada de ozônio e aumentar demais o efeito estufa. Dois problemas que não existem em terras vermelhas! Com a utilização em larga escala desses gases, o efeito estufa em Marte seria tão poderoso ao ponto de começar a derreter as calotas polares. O que não queremos aqui, mas com certeza queremos por lá. A água congelada (que esperamos que esteja lá em grandes quantidades) vira oxigênio, precipita em chuva e ajuda a dar mais força para a atmosfera local. O gás carbônico preso como gelo seco nos pólos daria mais força para a atmosfera e reforçaria o efeito estufa. Ainda precisaríamos de um gás inerte para completar o ciclo, mas provavelmente teríamos algo bem mais próximo da Terra no final das contas.

E talvez nem precisemos de tanto gás importado assim, só de aquecer o planeta de seus gélidos -125 graus Celsius no inverno, já ajudaria bastante com o derretimento do gelo que já existe por lá. E aqui, temos ideias mirabolantes para ajudar no processo. O Sol já produz muita energia naturalmente, o problema é que pouca dela realmente acerta a superfície marciana. Podemos resolver isso com gigantescos espelhos na órbita do planeta, concentrando energia solar no solo e esquentando Marte na força bruta. Como planetas tem pontos estáveis em suas órbitas, esses espelhos poderiam ficar sempre focados nos mesmos lugares, preferencialmente perto dos polos. Outra estratégia é fazer uma espécie de “black planet” em Marte: pintando seu solo de cores bem escuras para absorver mais do calor vindo do Sol. Nas luas marcianas há muita poeira escura que poderia ser transportada para a superfície planetária. É um processo um pouco mais lento, mas também gera o calor necessário.

E não podemos esquecer o poder da vida: desde que protegidas por alguma construção especial, algas e bactérias produtoras de oxigênio (que já criaram a atmosfera terrestre) podem ser enviadas para lá com o objetivo de transformar a atmosfera em algo muito mais respirável. Ainda precisaríamos de outras formas de importação de gases para dar volume ao ar marciano, mas é uma alternativa que permite que o planeta tenha menos água do que esperamos sem inviabilizar o projeto. E, querendo ou não, é o único processo que temos certeza que funciona: a Terra não tinha uma fração do oxigênio que tem hoje antes desses minúsculos seres vivos os disponibilizarem para a vida mais complexa.

Depois que a atmosfera marciana se tornar mais densa, o ponto de ebulição da água volta para padrões mais aceitáveis. Porque depois do óbvio problema do oxigênio, a segunda preocupação de uma atmosfera tão leve é que qualquer líquido que entrar em contato com ela começa a se transformar em gás. O que não é nada agradável para seres que são 70% água, como nós. Seja pela importação de amônia ou diretamente nitrogênio em largas quantidades, Marte se tornaria quase tão tolerável quanto o topo de uma montanha. A temperatura seria baixíssima, mas já possível de ser combatida com roupas quentes (não pressurizadas) e uma máscara provendo o oxigênio.

Péssimo para piqueniques, mas dentro do razoável para trabalhar com ajuda de máquinas. A radiação ainda seria um problema, contanto. Mesmo com uma atmosfera mais densa, não podemos esquecer que é o campo magnético que faz o grosso da proteção contra as partículas que vem do Sol. Não adianta muito morrer de câncer um mês depois. E a partir daqui, as coisas ficam mais ambiciosas: embora seja possível viver em Marte com uma atmosfera mais densa e passar boa parte do dia protegido da radiação, para tirar nota 10 mesmo, só se der para viver tempo suficiente para ter filhos no planeta vermelho.

Por isso, precisamos dar um jeito nesse campo magnético. E existem algumas alternativas. A mais hardcore é mandar todo tipo de cometa, asteroide e até mesmo algumas luas em rota de colisão com Marte. Não vai ser agradável para quem estiver por lá, vai demorar milênios para esfriar de novo, mas estima-se que a atividade geológica da Terra seja resultado de uma infância pra lá de turbulenta do nosso planeta. Inclusive com o impacto de um planeta nem tão menor que Marte, cujos detritos formaram a Lua. Muita pancadaria solta gases na atmosfera, adiciona água no planeta, derrete a superfície para que os metais afundem no centro, e até mesmo geram o momento necessário para que ele comece a girar em alta velocidade, começando um novo campo magnético.

Mas transformar Marte numa bola de fogo não é único caminho: com a criação de longos anéis magnéticos (feitos de metal) ao redor do planeta, podemos gerar um campo magnético artificial que ajudaria muito a protege-lo da radiação estelar. Seria uma obra de engenharia gigantesca, maior que todas as que realizamos até hoje (combinadas), mas tecnicamente, não exige inventar nada de novo, apenas coletar a matéria prima e colocar a mão na massa. O campo magnético protegeria a atmosfera e tornaria a superfície tolerável para a vida. Se isso for complicado demais, é possível também construir uma enorme estação espacial entre o Sol e Marte com o mesmo objetivo. Não seria tão perfeita para a produção do campo magnético, mas com certeza exigiria menos material que fazer uma estrutura que dá a volta num planeta.

Seria possível já ir construindo alguma infraestrutura no planeta ao mesmo tempo que muitos desses processos, com abrigos subterrâneos dotados de atmosfera e temperatura reguladas artificialmente. Se Marte tiver mesmo tanta água guardada sob a superfície quanto esperamos, não vai faltar material. Terraformar um planeta é um trabalho de gerações, não existem truques ou atalhos. A ideia de jogar bombas atômicas em Marte é bizarra, por exemplo: primeiro que para gerar a energia necessária precisaríamos de todas as bombas atômicas do mundo por dia por algumas décadas para começar a fazer alguma diferença. E mesmo assim, sem outras técnicas para continuar o processo, seria apenas um desperdício de elementos raríssimos como o Urânio.

É difícil, e é demorado. O planeta Terra demorou bilhões de anos para ficar pronto, não é como se desse para resolver o problema em poucos anos. Nós provavelmente vamos estar no lucro se virmos alguém pisar em Marte antes de morrer. Mas não deixa de ser uma ideia divertida. E, francamente, alguém tem que começar. Porque um dia desses a Terra pode não ser mais segura, e espécie sem plano B é espécie extinta…

Para dizer que foi bombardeado com informações, para dizer que não conseguimos terraformar nem o Rio de Janeiro, ou mesmo para dizer que quer um texto sobre peidos ou algo mais leve: somir@desfavor.com

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Comments (12)

  • Olha o ponto ao qual chegamos: em lugar de reduzir a população terrestre para níveis aceitáveis, encontrar formas mais limpas de perambular pelo mundo, queremos transformar outro planeta em algo palatável. Não vejo vantagem; quem não sabe cuidar de um, não saberá cuidar de dois.

    • Em 100.000 anos de história humana, a gente nunca foi bom nisso de cuidar de um lugar. Mas somos excelentes em ir cagar outros. O Universo é gigantesco, pra mim o único caminho viável para a humanidade é ir poluir outros planetas. Com uma ajudinha na tecnologia de propulsão, podemos fazer o que fazemos melhor por bilhões de anos.

    • Eu gostaria de fazer um experimento: montar uma grande estrutura por lá e mandar os norte-coreanos. Eles resistem a tudo.

  • Só eu que sou meio pessismista com o sucesso da colonização de Marte? Melhor fazer o possível pra cuidar desta terrinha aqui e não pôr todos os ovos na mesma cesta.

    • Mas terraformar Marte é não colocar todos os ovos na mesma cesta. E seja como for, vai ser feito assim que for economicamente atraente. Ninguém faz nada pelo “futuro da humanidade”…

  • Me perguntando aqui o quanto Somir teve que estudar sobre geofísica, química, biologia, físico-química, termodinâmica, entre tantas outras coisas, pra construir esse texto…

    • Eu detesto estudar. A minha “sorte” (entre aspas por morar no Brasil) é que eu acho todos esses temas divertidos, e consumo conteúdo relacionado como lazer mesmo. Na hora de escrever, basta fazer uma pesquisa rápida para relembrar os detalhes. Tema que eu preciso pesquisar muito para escrever eu nem me arrisco…

    • Bem lembrado: a gravidade marciana é um terço da terrestre. Não é lá muito saudável, mas nada que não possamos nos adaptar. Adicionar gravidade no planeta seria uma ação muito complexa, pois não tem atalho: ou adiciona massa, ou simula com aceleração. Como triplicar a massa marciana ou acelerar o planeta consideravelmente não são ideias muito práticas, teríamos que aceitar mesmo a gravidade reduzida. Até onde sei, é possível, por isso não costuma aparecer nessas listas de como terraformar Marte.

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