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Colunas

Humanidade virtual.

Já é clichê dizer que a tecnologia da comunicação está nos afastando. Não sem méritos: já passamos aqui por vários temas que nos fazem acreditar que a relação do ser humano médio com a era da internet gera vários problemas como escapismo, radicalização e uma falta de maturidade emocional em geral que ameaça nos deixar cada vez menos… humanos. Mas, será que a própria ideia do que é ser humano é tão estável assim com o avanço da tecnologia de virtualização?

Vamos fazer um exercício de futurismo: é possível que um dos caminhos do avanço tecnológico humano nos leve à possibilidade de colocar nossas mentes dentro de computadores para nos tornamos consciências virtuais. Você se tornaria parte de um computador, uma espécie de programa convivendo com outras consciências num mundo simulado por máquinas poderosas. Você pode imaginar algo como o mundo do filme Matrix: com pessoas no mundo real conectadas nessa simulação, ou mesmo com pessoas que já nem corpo real mais tem, apenas a mente digital.

Mas, ao contrário da Matrix, nesse futuro você não precisa ser enganado sobre estar numa simulação, na verdade, se você está lá, foi por escolha ou mesmo impossibilidade de continuar vivo no mundo real. Na verdade, saber que está numa simulação deve ser um dos primeiros atrativos dessa tecnologia: a pessoa sabe que vai poder se livrar de praticamente todas as limitações da vida real se entrar lá. A ideia de poder fazer o que bem entende num mundo simulado é muito atrativa. Afinal, é o bônus do poder ilimitado sem o ônus das consequências que nem no videogame: você sempre sabe que pode começar de novo se algo der errado.

Muito embora eu tenha certeza que vai ter muita gente que não vai querer viver nesse mundo virtual, eu também acredito que a vida virtual não vai sofrer por falta de popularidade… hoje em dia já temos uma parcela considerável da humanidade vivendo através da internet, um mundo virtual seria o próximo passo lógico. Com um avanço nem tão distante assim na nossa tecnologia de simulação e inteligência artificial, não só vai ser possível interagir com outras mentes virtuais num ambiente compartilhado como também criar realidades paralelas para grupos ou mesmo indivíduos.

Ou seja: você pode viver num mundo virtual com milhões de outras pessoas convivendo em tempo real, ou pode criar seu próprio mundo com inteligências artificiais simulando companhia em qualquer cenário que você consiga imaginar. E essa distinção é importante: mesmo que os problemas de escassez e a fragilidade do corpo humano sejam irrelevantes num mundo virtual, ainda vamos precisar de regras para fazer várias pessoas conviverem num mesmo ambiente. Seria irritante viver numa cidade virtual que é destruída a cada segundo por um imbecil com fantasias apocalípticas. Ambientes compartilhados precisam de limites, inclusive morais. Você não vai querer ver as fantasias de um pedófilo se realizarem na sua frente, mesmo que em tese, nenhuma criança real sofra no processo.

Por isso, eu aposto em ambientes separados: um público com diversos limites para os poderes das pessoas virtualizadas, e um privado com regras definidas pelos criadores. Se um grupo quer viver uma fantasia medieval com elfos e anões, eles podem entrar nesse mundo e viver por lá o quanto tempo quiserem, obedecendo os limites daquela simulação. Se uma pessoa quer viver numa realidade onde é a divindade absoluta da humanidade, ela cria uma instância da simulação onde tem poderes infinitos e as outras pessoas não. O único limite seria sua imaginação (ou capacidade de programação, mas acredito que a inteligência artificial gerando esses mundos consiga trabalhar só ouvindo o que a pessoa quer fazer).

Tudo ao mesmo tempo. Quem quer socializar com outras pessoas conectadas fica nas áreas comuns, quem quer viver suas fantasias vai participar de mundos privados. Se a sua mente estiver inteira dentro da simulação, você vai poder viver basicamente todas as sensações possíveis da vida real. O cérebro real já é uma forma de abstração da realidade: é a massa cinzenta que interpreta o que está ao seu redor. Se o estímulo chega por um ouvido de verdade ou se tem alguém realmente interagindo com os átomos do seu corpo, não é tão relevante assim para o cérebro. Pessoas vivem tendo alucinações e sendo enganadas pelos sentidos fora da simulação… e digo mais, todos os sentimentos que temos são baseados nessa interpretação cerebral. Nada impede que a mente virtual sinta as coisas da mesma forma que a física: amor, medo, ódio, excitação…

E é aqui que eu começo a desconfiar que o que configura humanidade nos dias de hoje não vai ser muito relevante para as consciências desse futuro. Há uma diferença muito grande entre fugir da realidade em 2020 e fugir da realidade em 2200. Se você quer ter poderes mágicos e conviver só com gente que concorda com você hoje, tem problemas sérios de compreensão da realidade. O que você quer não é possível. Agora, e se esses desejos forem apenas questão de abrir uma nova realidade na simulação e fazer exatamente o que você quer?

Vamos pensar num exemplo: uma jovem acredita que o “futuro é feminino”, e vai viver num mundo onde todas as posições de poder são tomadas por mulheres. Para ser realista, ela define que depois de começada a simulação, ela não tem mais poderes que uma pessoa normal, muito embora se crie como uma artista rica e famosa. Com o passar do tempo, ela descobre que não muda tanta coisa assim, com alguns pontos positivos e outros negativos. Se vai mudar alguma coisa na mentalidade dela, não sabemos, mas pelo menos ela viveu aquilo. Teve insights, foi surpreendida por algumas coisas, viu como as outras pessoas reagiram…

Podemos considerar escapismo? Claro que ela criou aquele mundo e pode ter cometido vários erros na hora de definir os parâmetros, mas ela sai dali com mais informações que entrou, podemos considerar quase como um experimento científico. Só que vai mais além: se o mundo virtual compartilhado tem a mesma complexidade do mundo virtual privado, não é como se a pessoa estivesse obrigatoriamente fugindo da realidade. Se tudo é virtual… nada é virtual. As únicas pessoas que poderiam criticar o povo virtual nesse sentido seriam as que estivessem fora da simulação, mas, quem está fora da simulação não tem relevância para quem está dentro.

E podemos ir mais longe: se você está simulando o corpo humano nos seus mínimos detalhes, onde está a linha que divide a experiência de estar vivo? Vamos pensar num caso mais extremo: alguém passa sua mente para o mundo digital e o corpo morre no mundo real. A mente virtual não precisava daquele corpo para existir a partir do momento que estivesse copiada para o simulação. Existe uma dúvida se é possível passar a mesma consciência do real para o virtual ou se estamos limitados apenas a copiar (a consciência do ser orgânico morre do mesmo jeito e o virtual é um clone da mente), mas seja como for, do ponto de vista da mente virtual, ela está viva, com suas memórias e toda uma carga de sentimentos e ideias oriundas de um corpo real. Ou seja, é real.

Se você, como existe hoje, tivesse poderes mágicos de viajar para onde quiser num estalar de dedos e o fizesse, não estaria diante de uma fantasia de poder juvenil, e sim de uma possibilidade real. Se a mente virtual existe independente de um corpo para mantê-la viva, tudo o que concebe é realidade. A simulação se torna o novo universo, e a imaginação o limite. Para o computador, é trivial ignorar a gravidade ou os limites da velocidade da luz dentro de seus próprios códigos. As regras da Física só valem da simulação para fora. O ser humano do futuro que se mudou para a realidade virtual não tem mais obrigação nenhuma de obedecer regras do mundo lá fora. Ou, resumindo: não existe escapismo se as suas fantasias são a própria realidade.

E quanto mais o tempo passa nesse futuro de virtualização, o conceito do que é humano menos importa. Ser homem, mulher ou um helicóptero senciente dá no mesmo. Se você pode ser tudo isso a hora que quiser, e trocar de experiência em frações de segundos, o que importa o que você era há meia hora atrás? Aliás, o que importa o que você é? Ninguém seria homem fingindo ser mulher ou humano fingindo ser uma besta mitológica, não teria fingimento. Você seria, não fingiria. Mesmo que suas experiências não te deem muito contexto do que é viver naquele corpo, você tem tempo para experimentar. Passe 20 anos no corpo de uma tartaruga do século XVI se quiser. Porque outra regra da vida real que não vale tanto assim em simulações é a passagem do tempo: desde que as máquinas gerando a realidade virtual tenham o poder necessário, você pode colocar um ano de experiência codificado em um segundo. E se não tiver um corpo te esperando lá fora, não precisa ter pressa para nada. O universo real tem trilhões de anos para gastar…

No final das contas, seríamos reduzidos à nossa própria imaginação. A única característica restante da nossa vida orgânica. Curioso pensar que a humanidade só se torna indivisível na hora das nossas fantasias. Se você não tiver isso, é só um código perdido na simulação. E se eu já não estava viajando o suficiente, toma essa: se depois de um tempo não tiver mais nenhum humano orgânico plugado na máquina, e todas as mentes forem 100% virtuais, qual a diferença mesmo entre humanos e inteligências artificiais? O que impede uma simulação de pessoa criada para povoar um daqueles mundos privados que eu mencionava antes de ter os mesmos sentimentos de uma pessoa real?

E aí, a coisa começa a ficar muito estranha. Se uma mente criada pela simulação tem as mesmas características que uma mente que já esteve fora dela, a questão ética fica complicada: se alguém cria uma realidade paralela onde vive com o parceiro dos sonhos, esse parceiro não teria seus próprios direitos? Afinal, onde a máquina que permite a simulação vai definir a linha entre os que tem poder de criar realidades paralelas e os que não tem?

Outro exercício mental: você é uma inteligência artificial que nasceu para complementar o mundo bolado por uma das pessoas reais. Você viveu até aqui só para dar mais realismo à simulação. Quando a pessoa que realmente criou isso cansar e resolver brincar de outra coisa, você deixa de existir. Se eu fosse apostar, apostaria que a pessoa que realmente “existe” nessa realidade é uma celebridade ou alguém podre de rico. A não ser que seja uma masoquista e resolveu viver numa favela brasileira…

A simulação criou toda nossa história, provavelmente baseada num banco de dados de outros mundos privados, para economizar tempo de produção. Você pode até se achar uma pessoa muito complexa, mas para o tamanho do computador gerando a simulação, é bem fácil de calcular. Não custa muito para ele te dar uma vida inteira só para deixar as coisas mais divertidas para o ser humano verdadeiro que criou esse mundo. E, considerando realismo, talvez esse criador tenha ditado a regra de não ficar sabendo da verdade até morrer. Pode ser que esse formato de corpo que temos seja só um gosto desse criador, ou mesmo um pedido para o computador lhe surpreender. Os seres que criaram essa simulação lá no começo não se pareciam nem um pouco com a gente.

O sistema gerando a simulação que chamamos de vida sabe diferenciar quem é a pessoa real e quem é personagem, talvez seja só a diferença entre 0 e 1 num pedacinho minúsculo do código dessa mente. Nós temos 0 nessa parte, ela tem 1. Isso quer dizer que depois de morrer, ela acorda numa área comum do mundo virtual e tem a opção de escolher a próxima aventura. Nós? Nós vamos para o banco de dados, talvez alguns de nós tenhamos feito algo notável ou diferente o suficiente para melhorar a qualidade das próximas simulações. Nossas histórias podem ser interessantes o suficiente para o computador colocar no caminho da próxima pessoa que pedir um mundo com os padrões do nosso atual.

Ou, talvez a pessoa real morra e dê só uma estrela para a experiência do nosso mundo. O computador considera que não vale a pena manter nossos dados, e libera espaço para coisas mais importantes. No final das contas, o pior é que a diferença entre a gente e essa pessoa que criou a nossa realidade é tão pequena que provavelmente conseguiríamos viver essa vida virtual se soubéssemos que era possível. Mas não sabemos.

Se você parar para pensar, um ser que se acha real pode muito bem ser virtual. Tudo depende da “resolução” da simulação. Quanto mais realista, menos a realidade importa. Tudo o que entendemos sobre a realidade é altamente relativo com essa tal de resolução. Quanto mais detalhes conseguimos perceber e interagir, mais livres somos.

Livres, inclusive, para não seguir nenhuma regra sobre o que é ser humano.

Para dizer que está com dor de cabeça depois de ler isso, para discutir quem é o original da nossa simulação, ou mesmo para dizer que nada faz diferença: somir@desfavor.com

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humanidade, realidade, simulação

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