O dilema da cura.

Uma epidemia assola o mundo. Ela vai matar todos os seres humanos se nada for feito. Há duas opções de tratamento e você deve escolher aquela que acredita ser melhor para a humanidade:

Tratamento 1: tem 50% de chances de dar certo e salvar a todos, mas se der errado mata 70% da população

Tratamento 2: tem 35% de chances de dar certo e salvar a todos, mas se der errado mata apenas 10% da população.

Tema de hoje: qual você escolhe, Tratamento 1 ou 2?

SOMIR

Situações desesperadoras exigem medidas desesperadas: eu escolheria o Tratamento 1. Não estamos falando sobre uma doença com a qual podemos conviver, se nada for feito, ela vai acabar com a humanidade. E isso faz muita diferença na hora de tomar essa decisão.

Por isso, é importante considerar a seguinte conta: é melhor uma chance de 50% de todo mundo morrer ou uma chance de 65% de todo mundo morrer? Não dá para contar com uma próxima chance de tratamento, quando a sociedade começa a colapsar por causa de uma doença (ou qualquer outro motivo como guerra ou fome), há uma redução exponencial nas chances de alguém bolar uma solução.

Boas ideias existem em qualquer lugar, mas a capacidade de aplicá-las é um luxo de sociedades estáveis. Se não fosse assim, povos perseguidos ou abandonados conseguiriam lutar de volta mesmo depois de vários anos, mas como o histórico bélico da humanidade nos ensina, povos vão definhando numa velocidade cada vez maior à medida que seus números diminuem. A ciência só floresceu de verdade com a relativa estabilidade humana nos últimos dois séculos. Antes disso, eram só esforços muito concentrados com pouca capacidade de aplicação global, o que também explica a imensa desigualdade de desenvolvimento humano atual.

O que eu quero estabelecer aqui é o seguinte: não sabemos se vai ter uma segunda chance depois de tentar qualquer um dos tratamentos. Cada dia que se passa com algo reduzindo os números e o senso de organização de uma população reduz demais as chances de recuperação. Como ambos custam caro em vidas humanas e não param o problema original (a epidemia mortal) no caso de darem errado, faz muito sentido considerar que esse é o último tiro da humanidade contra o que a está destruindo.

Sem contar que um tratamento em escala global exige um esforço imenso de uma população já enfraquecida pela epidemia. Pesadelo logístico dos mais assustadores: é um grau de coordenação extremo e cansativo, para bilhões. Se o tratamento não der certo, perdemos números consideráveis de pessoas e talvez até pior, damos uma pancada tão forte na “moral da tropa” que vai ser muito difícil coordenar tudo de novo. Vocês realmente acham que vamos ter muitos voluntários e/ou cooperação governamental depois de um fracasso?

O ser humano confia na sociedade até certo ponto, eventualmente o instinto de sobrevivência assume o controle e é cada um por si. Mesmo que alguém descubra uma cura depois, se a chave virar para uma humanidade egoísta, ela vai ter cobertura muito limitada, pois vai ser impossível produzir e distribuir em larga escala. Qualquer esforço global nessa situação de epidemia mortal é provavelmente o último.

Na escala maior das coisas, é pouco relevante quantas pessoas sobrem logo após o tratamento. Sejam 30% ou 90%, estamos falando de uma humanidade desesperada e desconfiada. Péssimo ambiente para trabalhar em pesquisas científicas de altíssima complexidade. Mesmo no “melhor” dos casos após uma falha do tratamento, uma a cada dez pessoas vai ter morrido. É fácil substituir uma pessoa aleatória, mas não cientistas de ponta: qualquer morte nessa classe de pessoas é um risco enorme de travar qualquer projeto em andamento. Então, é bagunça social e falta de cabeças pensantes em ambos os casos. Você não quer falhar no tratamento…

E nesse contexto, eu faço questão desses 15% a mais de chance de acerto. Se você tivesse que tomar uma decisão de vida ou morte, não gostaria de ter qualquer vantagem no potencial de sucesso? Cada ponto conta, é uma corrida contra o fim da humanidade. E sim, eu sei que a quantidade de pessoas que morrem caso as coisas deem errado são muito diferentes, mas é hora de tomar decisões difíceis. E não se enganem, a diferença real entre a minha opção e a da Sally é a presunção de quantos vão morrer caso o tratamento dê errado, como eu disse anteriormente, tenho fortes motivos para acreditar que estamos lidando com um evento de extinção da humanidade caso as coisas não saiam como o esperado. Então, estamos comparando 50% ou 35% de chances de salvar todo mundo contra 99% de chances de todos morrerem.

E vamos falar sobre o elefante na sala: você está fazendo essa escolha. Vai ficar nas suas costas o resultado dessa história toda. Vamos falar da chance de sucesso primeiro: se você fez uma escolha com menos chances de sucesso e menor risco, as pessoas vão te admirar caso dê certo, mas não vai ser uma história tão saborosa. “Pessoa assume um pequeno risco de fracasso e salva a humanidade”. Bacana, eu acho. Mas vão saber que você deu sorte com a cura, e sorte não é algo tão heroico assim. É psicológico: se a pessoa sabe que você tinha 35% de acertar, ela acha que você chutou e acertou. Se ela sabe que você tinha 50%, parece que você sabia o que estava fazendo.

Agora, se você deu All-In e preferiu olhar para as chances de sucesso, vai ser o rockstar/rei das gerações futuras. “Contra todas as chances, pessoa salva a humanidade”. Povo gosta de decisões emocionantes, mesmo que você tenha feito a escolha mais lógica e racional (lembre-se, não tem essa de matar um décimo das pessoas e ter uma segunda chance de cura numa população que já está morrendo aos montes pela epidemia). Vai ter um legado eterno de glórias: estátuas, músicas e homenagens em geral. Seu nome vai ser o mais escolhido para recém-nascidos. Talvez não seja o seu desejo com essa escolha, não é necessariamente o meu, mas ser paparicado por toda a humanidade até o fim da sua vida é um bom destino, não?

E, cá entre nós… se tudo der errado, é melhor ter 30% da humanidade querendo te matar do que 90%. Não estou dizendo que você deve fazer a escolha para reduzir a sua chance de se ferrar depois, mas que é um bom complemento para o argumento original. Se 70% da humanidade morrer, ninguém vai conseguir sequer te achar, sem contar que estatisticamente, você já vai ter morrido mesmo.

Para me chamar de egoísta, para dizer que a gente tem muito tempo livre (quem me dera), ou mesmo para dizer que escolheria a 1 para ter mais chance de matar todo mundo mesmo: somir@desfavor.com

SALLY

Tratamento 2, pois, se der errado, é o que vai matar menos gente. Se derem certo ambos salvam toda a humanidade, mas, se derem errado, o 1 dizima 70% da população, enquanto o 2 mata apenas 10% da população.

O impacto para a humanidade é menor, perder 10% da população permite que o ser humano continue seguindo seu curso, ainda que possa gerar muita dor e sofrimento para muitos. Porém, se 70% da população for dizimada, eu sinceramente duvido que a gente consiga manter a roda girando. Desde instituições financeiras até serviços básicos como luz elétrica e água encanada, acho que tudo colapsaria no mundo.

Se eu tivesse que fazer essa escolha eu focaria no caminho que proporciona as melhores chances de manter uma humanidade funcional. Acho ganância arriscar a matar mais da metade das pessoas do mundo em troca de mera probabilidade: só pelas chances de sucesso serem maiores. As chances de sucesso do Tratamento 1 são de 50%, ou seja, nem ao menos são favoráveis, tudo pode acontecer. Não vou arriscar a vida da maioria dos habitantes do planeta por uma chance tão pouco promissora. O custo-benefício não compensa, do meu ponto de vista.

“Mas Sally, não é você quem sempre diz que o planeta ficaria melhor sem o ser humano?”. Sim. E ficaria mesmo. Mas no exemplo a minha escolha deve ser pautada no que é melhor para a humanidade. O que eu acho melhor para a humanidade é reduzir ao mínimo a perda de vidas. Não dou 60% de mortes a mais por apenas mais 15% de chances do tratamento dar certo. Não é uma partida de poker, estamos falando de vidas humanas.

Não sei se eu e a maior parte da humanidade queremos viver em um mundo onde não há mais internet, carros funcionais, água encanada, sistema de esgoto ou luz elétrica. Ao eliminar 70% da população mundial certamente eliminaríamos mão de obra essencial para manter esse sistema global funcionando e, ao menos por um tempo, até solucionar o problema, voltaríamos a viver de forma bem precária e rudimentar. Já está ruim como está, se piorar a infraestrutura vai ficar difícil.

Minha escolha é, basicamente, sacrificar 10% da humanidade para tentar manter todos vivos. A outra escolha é sacrificar 70% da humanidade para tentar manter todos vivos com 15% de chances a mais. O benefício é muito pouco perto da perda que teremos se tudo der errado. E sim, as coisas às vezes dão errado, principalmente quando as chances são meio a meio, tudo pode acontecer. Fazer uma escolha dessas apenas torcendo para o melhor é ser irresponsável, tem que pensar em todos os cenários.

Não gostaria de viver a minha vida sabendo que eu fui responsável pela morte de 70% da humanidade. Não seria agradável viver sabendo que matei 10% da humanidade, mas seria menos devastador. Acredito que a própria humanidade ficaria muito menos revoltada comigo se apenas 10% das pessoas morressem. Uma perda de 70% poderia gerar uma grande barbárie. Por mais que 30% da população restante seja pouca gente quando pensamos em uma humanidade, pense em 30% de dois bilhões de pessoas, todos putos com você. É bastante gente.

É o tipo de decisão ingrata: se você acerta e salva todos, foi pura sorte (50 a 50% se define por mera sorte). Mas se você erra, há responsabilidade, pois você escolheu a quantidade de pessoas que iriam morrer. Então, o grande peso dessa escolhe vem quando ela dá errado. É na hora do erro que a humanidade vai te cobrar. Boa sorte aí para quem acha que 30% da humanidade putaça é pouca gente, principalmente quando tiverem que encarar essa putez na maior precariedade.

Isso sem contar os motivos egoísticos. A probabilidade de você matar mais pessoas amadas cresce quando você arrisca a vida de 70% da humanidade. Se morrer 10%, pode ser que não morra ninguém do seu círculo de pessoas queridas, mas se morrerem 70%, as chances de perder uma pessoa querida aumentam bastante. Pensa aí no peso de perder uma mãe, um marido, um filho e me diz qual seria a melhor opção.

Acho que a grande premissa deste problema é: o quanto de vidas humanas você está disposto a arriscar para tentar conseguir um resultado mais favorável? Minha visão: o mínimo possível. Não é sobre vencer uma aposta sobre o que vai dar certo, é sobre escolher quais são as opções menos trágicas para a humanidade a curto e longo prazo.

Esse é o grande problema de decidir algo que não afeta só você: ao se apropriar do poder de decisão dos outros, é preciso deixar de lado suas convicções pessoais, suas crenças e critérios. É uma decisão global, não pode ser tomada com o seu umbigo. Você tem que tentar pensar como coletividade, pelo bem comum. Qual é a melhor decisão para a humanidade, como coletividade?

Eu acredito que para a sobrevivência da humanidade, o Tratamento 2 seja mais adequado, uma vez que nenhum dos dois tem boas chances de sucesso, mas um deles tem resultados catastróficos em caso de insucesso.

Para dizer que você optaria por tratamento nenhum para que toda a humanidade morra, para dizer que ainda está confuso com a matemática ou ainda para dizer que Somir nunca foi muito bom em calcular riscos: sally@desfavor.com

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Comments (5)

  • Innen Wahrheit

    A opção 2 me pareceu tão óbvia (sem ler nenhum dos argumentos)… Será que é porque vejo números o dia inteiro (não, não sou de exatas), ou tem algo que deixei de observar?

  • Se no início do texto tem que a epidemia VAI MATAR TODOS, então a única resposta viável seria a 1! De que adianta poupar mais gente, se todos vão morrer? Será a morte de 70% X a morte de 100%, temos 50% de chance de ninguém morrer X 35% de chance de ninguém morrer.

    • Lamentável ter que ensinar a interpretar texto: vai matar a todos se nada for feito.
      Caso os tratamentos sejam aplicados, os respectivos efeitos determinarão as mortes.

  • Não estou disposto a limpar latrina, cultivar vegetais, trabalhar em fábrica ou coisas assim, que morra menos gente possível. Os países (ou bolhas sociais) mais confortáveis e automatizados/robotizados de atualmente só existem graças ao suor de centenas de Severinos e Chang Chengs.

    Off-topic, mas nem tanto: Realmente, não consigo me preocupar com Corona Vírus. E olha que já tentei.

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