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Conteúdo vazio.

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Nesta semana, a hashtag #SalvemBelParaMeninas apareceu com força nas redes sociais. Era sobre a história de um canal de YouTube de uma jovem chamada Bel, que segundo as denúncias, estava sofrendo abusos dos pais em nome da popularidade na plataforma de vídeos. Os exemplos apresentados vão desde a mãe fazendo a filha vomitar na frente das câmeras até sugestões de ameaças por trás delas. Algo realmente parece errado ali, mas em tempos de “novo normal”, talvez valha a pena pensar nessa cultura de celebridades de rede social como um todo…

Prender a atenção alheia exige algum esforço. Via de regra todo mundo tem um tempo limitado para explorar seus interesses, e a concorrência é imensa. Por isso, se você quer se destacar, você vai ter que pagar algum preço. E, quando menos habilidades físicas e mentais você tem, maior a chance de precisar passar por alguma forma de abuso para competir.

No YouTube, por exemplo, isso se manifesta nos tipos de canais de maior sucesso. Existem dois arquétipos principais aqui, e eles se diferenciam justamente pelo preço que pagam pela atenção recebida:

Algumas pessoas podem apenas falar na frente de uma webcam, e sua habilidade de articular ideias ou foco numa área específica de conhecimento já garante uma audiência. Se a pessoa ainda souber fazer uma produção interessante desse vídeo, pode se dar bem só usando gráficos na tela. Embora canais que tratam de temas mais complexos como filosofia, história, física, química ou tecnologia sejam bons exemplos disso, não é nem uma questão de erudição.

Um canal que fala sobre maquiagem ou sobre celebridades também entra nessa categoria de foco em conteúdo: por mais que eu pessoalmente não saiba diferenciar uma pessoa falando sobre maquiagem muito bem ou muito mal, para quem entende a diferença costuma ser clara. E por mais que carisma tenha seu papel na construção da marca desses canais, eles existem baseados no conteúdo que desenvolvem. Mesmo um canal de fofocas sobre subcelebridades ainda depende do material que produz para fazer sucesso.

Só que nem todo mundo tem capacidade de produzir conteúdo dessa forma. E por capacidade eu não quero dizer necessariamente inteligência, é um misto de conhecimento sobre alguma área e a dedicação necessária para pesquisar e criar material de forma consistente. A maioria da humanidade costuma estar nesse grupo, o de consumidores de conteúdo. Só que havia uma internet no meio do caminho: a democratização do acesso à atenção humana mudou o mundo rapidamente. Hoje em dia, uma boa parcela das pessoas capazes de produzir conteúdo finalmente conseguiu algum espaço para aparecer, mas… os que não são capazes também.

O que nos leva a esse segundo grupo: o das pessoas que pagam outro preço pela atenção. O preço do abuso. E como eu já tinha dito, quem não consegue produzir conteúdo é maioria, tão maioria que a concorrência pela atenção alcança níveis estratosféricos. Se a pessoa não consegue entregar algo diferenciado no campo intelectual ou físico, sobram poucas alternativas senão os menores denominadores comuns do interesse humano como sofrimento e sexualidade. Desgraça e sexo vendem. E basta estar vivo para explorar esses dois mercados. Eu vou chamar esse grupo de “foco em abuso” em contraste com o de “foco em conteúdo”, mesmo considerando que nessa categoria entram pessoas que vivem de ostentar: porque mesmo esse povo que fica falando que tem uma vida perfeita na rede social costuma estar sofrendo para manter a ilusão e pagando a atenção com a própria sanidade.

Se você realmente prestar atenção, vai perceber como é fácil categorizar as pessoas que tem foco em conteúdo e as que tem foco em abuso dentre os canais e contas mais populares das redes sociais. E é aqui que voltamos ao caso de Bel: fica evidente que não existe produção de conteúdo ali. Tudo é relacionado com reações a situações incômodas sem gerar novidades. Com raríssimas exceções, uma garota de 13 anos não tem capacidade de fazer diferente, é tudo uma questão do que os adultos ao seu redor são capazes de produzir. E fica evidente que os pais de Bel não são tem foco em conteúdo. Provavelmente são incapazes mesmo.

A única alternativa então é o foco no abuso. Porque esse é o preço que sua plateia cobra na ausência de qualquer outro material. A cultura dos desafios de rede social não é uma anomalia, é justamente o que a maioria das pessoas é capaz de produzir. Comer alguma coisa estranha, pular numa piscina gelada, subir num lugar alto… todas coisas que basta ter um corpo minimamente funcional para conseguir. E, é claro, um desejo considerável por atenção. A internet tornou carência numa profissão viável para milhares de pessoas que jamais teriam essa chance em tempos de mídia tradicional.

Então, eu concordo com a turba enfurecida exigindo a liberação de Bel das garras de sua mãe exploradora? Sim, e não. Vejam bem: embora punição tenha sua função na sociedade, ela normalmente precisa tornar claro qual é o crime e porque ele é um crime. O que é evidente para a maioria de nós no caso de violência e roubo, mas muito mais nebuloso em casos como abuso. Tirar o canal da família vai nos ensinar exatamente o quê? Não chamar atenção demais? Não deixar crianças fazerem parte da mídia? A pessoa vai ver outros cinquenta canais baseados em exploração e abuso continuarem populares, vai continuar vendo criança passando por situações vexatórias em todos os lugares…

O problema aqui é que não se chega ao cerne da questão: a internet só explicita algo que sempre esteve conosco. Prostituição é a profissão mais antiga do mundo, já diz a sabedoria popular. E essa categoria de “foco em abuso” nada mais é do que prostituição, com ou sem sexo. Eu nem preciso falar sobre o imenso mercado de mulheres vendendo fotos, vídeos e sessões virtuais de sexo para um público cada vez maior, podemos só olhar para outros canais de YouTube que tem públicos enormes. Você sabia que algumas pessoas só precisam fazer faxina em casa na frente de uma webcam com roupas mais reveladoras para ter tanto ou mais sucesso que Bel?

Tem canal de mulher que frita ovo e varre chão usando um decote enorme que funciona muito bem, obrigado. Tem canal de mulher que fala de ser mãe sempre com um bebê no colo mamando, e de tempos em tempos, troca a criança de peito. Tem canal de crianças que obviamente estão sendo filmadas pelos pais com pouca roupa brincando no quintal de casa. Quem me dera só canais de abuso com desafios nojentos ou meio violentos fosse todo o problema.

O problema é que a maioria das pessoas parece bem disposta a aceitar o pagamento do abuso como moeda de troca pela sua atenção. E nem consegue perceber que não tem nada de conteúdo ali. As redes sociais acabaram com o funil que a mídia de massa tradicional tinha: embora o que víssemos na TV ainda fosse bem apelativo e vazio em média, tinha menos gente produzindo esse material. As porteiras se abriram, e com elas, uma manada de gente que só sabe mostrar o corpo, ostentar ou sofrer diante das câmeras ocupou o ambiente cultural humano.

Bel e provavelmente a sua mãe devem compartilhar o mesmo sonho de fama, sem saber exatamente o que fazer para receber a atenção. Hoje em dia qualquer criança que fica diante de uma câmera pede para quem está vendo se inscrever e deixar like. O desejo por atenção é algo natural nosso, todo mundo demonstra de alguma forma. O que deveríamos aprender com o passar do tempo é que atenção não dá em árvores e você precisa merecer. Nada contra uma criança que acha que o mundo tem que parar para ver ela falando coisas incoerentes por alguns minutos, porque criança é assim mesmo. É saudável que ela queira atenção, afinal, é um característica que se provou eficiente durante a nossa evolução: criança que é observada de perto é criança mais segura.

Mas as redes sociais colocam uma armadilha no caminho: o tempo passa e essa criança não vai percebendo que existe um preço pela atenção, atenção que sempre foi grátis até então. Papai, mamãe e tia da escola tem o trabalho de dar atenção, o resto do mundo não. Quem cresce vendo completos inúteis fazendo sucesso ao realizar desafios e ao mostrar a bunda não consegue entender muito bem que atenção começa a ter custo na vida adulta. Mostrar bunda? Criança tem bunda! Fácil. Comer algo nojento? Criança tem boca. Vamos nessa! Chorar e fazer drama dá muitos likes? Opa! Chorar é especialidade da casa!

Percebem o problema? Ganhar atenção começa a parecer tão fácil que é até bizarro para essa geração saindo da infância agora entender que não é um direito universal de graça para todo mundo. A proporção de gente capaz de produzir conteúdo e a de pessoas que precisam de abuso para gerar atenção não muda, mas a mentalidade desse grupo maior muda. Eles não conseguem mais ver a diferença entre aparecer de biquíni no Instagram e dedicar horas e horas para pesquisar e desenvolver um conteúdo que desperte curiosidade na mente alheia.

E digo mais, vão perdendo a noção até do trabalho que dá aparecer de biquíni no Instagram: precisa de dieta, exercícios e muito cuidado com a aparência. Não é conteúdo que me interesse, mas palmas para o cidadão que malhou por anos e fez uma dieta terrível para mostrar os músculos na rede social! E nem estou ostentando heterossexualidade: também tenho pouco interesse na mulher seminua genérica do Instagram nº 892.326. Mas, não se pode negar que ela merece mais atenção que uma pessoa aleatória que nem se esforçou para ficar com aquele corpo. Pagou um preço por aquilo. Justo.

Mas, se acham que é mágica… podemos ter uma geração de pessoas flácidas e mal cuidadas entrando em choque com a falta de likes na sua postagem sensual. E aí, precisam apelar: polêmica, drama, cancelamento, machismo, opressão… porque se a atenção por não fazer nada demais não vier por mágica, vai vir se a pessoa cometer um abuso contra si mesma e destruir sua sanidade. Já é “moda” fazer vídeos em situação de vulnerabilidade emocional, e eu duvido mais deles a cada dia que passa.

Eu acredito sim que o canal de Bel seja parte de um problema, mas não é o problema daquele canal específico ir além do “aceitável” na exploração de uma criança, é sobre a base daquilo tudo. Meu coração libertário não me permite dizer que deveríamos proibir tudo e só permitir “conteúdo de verdade” nas redes sociais, afinal, ainda é direito humano ser só uma bunda se a pessoa quiser. Mas o quando damos atenção para quem está querendo pagar por ela com abusos pode ser corrigido.

E honestamente, crianças não são de cristal: é até saudável expor crianças a situações progressivamente mais incômodas para que elas aprendam a lidar com a vida adulta aos poucos. Uma mãe sem noção que ameaça bater na filha é a realidade de boa parte da população mundial. Monetizar isso parece meio escroto, até porque incentiva o exagero para continuar fazendo o negócio funcionar, mas se você tirar o componente midiático disso, boa parte das pessoas que estão ofendidas com o caso de Bel tratam os filhos mais ou menos do mesmo jeito, mas não ganham dinheiro com isso.

A discussão que se tornou pública passou muito por uma análise sobre aquelas pessoas e ideologia (rasa) e não sobre essa explosão do mercado do abuso e a noção cada vez mais difundida que atenção é algo que se merece e pronto. Se você consegue atenção, está pagando um preço por ela, queira ou não. Não existem discussões suficientes sobre qual é esse preço, o que fazer quando uma criança quer ser YouTuber, o que fazer quando seus filhos começam a fazer vídeos rebolando no TikTok… eu prevejo gerações de cegos guiando cegos nesses assuntos. Muita gente vai descobrir da pior forma possível que exploração da própria imagem sem ter conteúdo custa muito caro, e não vai saber como escapar disso.

E se alguém banir o canal da Bel, não vamos ter avançado nada nessa conversa, mas vai parecer que sim. Esse é o perigo.

Para dizer que provar roupas apertadas é tão conteúdo quanto dar aulas de história, para dizer que não resiste a ver gente passando vergonha, ou mesmo para dizer que algumas pessoas só tem isso mesmo para oferecer: somir@desfavor.com


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