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Crise calculada.

Crise calculada.

| Somir | | 16 comentários em Crise calculada.

Como o assunto já vai estar caduco no final de semana, vamos falar sobre o decreto presidencial adicionando cabelereiros, barbeiros, manicures e academias nos serviços essenciais? O que parece só mais uma das teimosias de Bolsonaro na sua sanha de combater a pandemia fingindo que ela não existe na verdade esconde um grau de inteligência preocupante…

Oras, mas o STF já decidiu que os estados podem tomar suas próprias decisões sobre a quarentena, não? O decreto já nasceu defeituoso, podendo ser ignorado pelos governadores. Sim, mas esse aparentemente não é o objetivo final dessa canetada. Ao adicionar essas categorias aos serviços essenciais, nota-se uma provocação clara a quem considera a pandemia um problema grave. Não são categorias que geram confusão na mente das pessoas, a maioria de nós entende que são supérfluas em caso de doença.

E como sempre, o presidente tem uma resposta na ponta da língua, meio séria, meio deboche: higiene pessoal e exercícios são questão de saúde. No limiar entre o que a maioria de nós não vai conseguir saber se é uma piada ou se a pessoa realmente acredita naquilo. Se você conseguir abstrair toda a história de um presidente querendo que uma doença contamine logo boa parte da população contra praticamente todas as recomendações científicas, pode até se divertir com a ideia que estamos sendo governados na base da trollada.

Mas não podemos nos distrair da ideia de que tem algo mais racional por trás da estratégia. Bolsonaro deve se divertir muito emputecendo jornalistas e opositores políticos com essas provocações, o que com certeza pesa bastante nas decisões que toma; só que há uma lógica por trás disso tudo, e nesse caso das manicures e academias, a estratégia é mais fácil de perceber.

Ele sabia que governadores e prefeitos se recusariam a obedecer esse decreto. Fez isso para gerar pressão nos seus desafetos, pois sabe que o Brasil é um dos países mais vaidosos do mundo. Estamos num dos países com a maior taxa de cirurgias plásticas, não podemos esquecer. É uma população com baixa estima num país quente, com hormônios à flor da pele e pouca roupa para cobri-los. Some-se a isso uma enorme desigualdade social que faz com que o preço da hora de trabalho seja baixo o suficiente para que a maioria de nós tenha acesso a serviços do tipo.

Tem muita gente dependendo do mercado da aparência. A maioria trabalhando por conta própria. A demanda é enorme, muita gente só não furou a quarentena para pintar as unhas porque os salões de beleza estavam fechados, pois ignorariam os riscos num piscar de olhos caso tivessem a escolha.

Essa combinação cria uma bomba que cai no colo de quem estava fazendo a obrigação na pandemia: governadores e prefeitos de regiões muito afetadas. O decreto coloca uma parcela considerável da população brasileira em choque contra as figuras públicas que enfrentavam Bolsonaro. Como a Sally bem disse ontem, quem entende os riscos da pandemia (a informação chegou sim, disso não podemos reclamar) e pode ficar em casa é 100% culpado por fazer a coisa errada, mas essa não é toda a população brasileira: existe um grupo considerável de pessoas que acabam obrigadas a trabalhar mesmo contra todo o bom senso caso seus chefes tenham a possibilidade de reabrir empresas obviamente não-essenciais. A madame que vai até a manicure é tão criminosa quanto Bolsonaro, mas a trabalhadora que foi obrigada a ir trabalhar em suas unhas foi vitimada por uma estratégia política.

Parece bizarro colocar Bolsonaro e estratégia política na mesma frase, mas não podemos confundir desequilíbrio emocional com ignorância. O presidente tem um plano: ele quer pagar o preço em vidas para não entrar numa recessão econômica. O que como já escrevemos aqui, é de uma burrice galopante, porque povo com medo é povo que não consome, mas não deixa de ser uma construção lógica possível. Existem erros fundamentais na forma como ele decidiu lidar com isso, mas a partir daí, ele se mostrou extremamente consistente na estratégia.

É um erro achar que Bolsonaro é burro em tudo o que faz. Ele se trai constantemente por questões emocionais (necessidade de aprovação, teimosia por insegurança, falta de filtros), mas dentro da racionalização que faz do mundo, ele dificilmente se perde do caminho. A oposição está mordendo uma isca óbvia ao tratar o presidente como um imbecil completo: isso tira a responsabilidade dele sobre o que está fazendo. Bolsonaro pode ser burro demais para entender como medicina e economia funcionam de verdade, mas não é burro ao ponto de não ter um plano.

Ele tem um. Incrivelmente insensível com as vidas que se perdem pela bagunça institucional na resposta à crise de saúde. Ele não vai parar, ele tem certeza absoluta que tem que deixar todo mundo pegar a doença o mais rápido possível e deixar morrer logo quem vai morrer. Se os hospitais entrarem em colapso, logo logo morrem as pessoas que estavam ocupando os leitos e as coisas voltam ao normal. Isso é, o normal brasileiro. Ele quer que a pancada venha logo, e se morrer 50 vezes mais gente do que morreria caso levássemos a doença mais a sério, que morra. O Brasil tem gente o suficiente para perder um milhão e continuar funcionando. E se desse um milhão a maioria for de idosos, até tira pressão da previdência e do SUS, economizando o dinheiro que o Paulo Guedes vive pedindo para economizar.

Você pode achar esse plano horrível de um ponto de vista humanitário, você pode achar isso e entender que não adianta pagar esse preço para recuperar a economia porque a economia vai sofrer de qualquer jeito, e talvez até pior se não cuidarmos da saúde da população, como nós acreditamos aqui. Agora, o que eu não quero que você faça é esquecer que Bolsonaro tem um plano. Estava decidido desde o primeiro caso brasileiro.

Falar que é só burrice e teimosia é uma armadilha. Gera uma disputa no campo da passionalidade que só beneficia a narrativa dos extremistas. Esse senhor sabe o que está fazendo, está fazendo de propósito e deve ser julgado de acordo. Quem acha que ele está quase caindo vai ficar decepcionado: são pequenos detalhes como esse decreto das academias e manicures que demonstram que existe um método nesse caos bolsonarista.

Não estamos vendo todas as ações realizadas por sua equipe nos bastidores, é bem provável que ele já esteja próximo de ter comprado todos os votos necessários para escapar de qualquer tentativa de impeachment. E por mais que o Centrão e outros aliados de aluguel cobrem caro e não tenham fidelidade alguma, o presidente não se esquece de dar atenção para sua base (cada vez menor, mas cada vez mais radicalizada) e ter uma válvula de escape para influenciar o país.

Temer também precisou subornar o Legislativo para se manter no poder, mas não tinha nenhuma outra forma de projetar poder. Por isso, passou boa parte do tempo escondido dentro do Palácio da Alvorada, torcendo para o dinheiro distribuído ser suficiente. O presidente atual cria inimigos diariamente, mas sai às ruas (contra todas as recomendações) para mostrar a cara. Isso galvaniza o apoio de milhões de brasileiros que não sabem nada sobre como lidar com pandemias ou manter uma economia viável. Isso o protege de se tornar irrelevante, o verdadeiro motivo que acabou com o governo de Dilma e fez de Temer uma piada.

E não podemos ignorar o que faz enchendo o poder executivo de militares, fazendo-os se acostumar com poder novamente. O ritmo de nomeações de militares para cargos de alta e principalmente baixa visibilidade aumentou muito nos últimos meses. O exército que não tem munição para um dia de guerra não tem interesse em tomar o poder à força, mas se cair no colo deles… os melhores golpes de Estado são feitos dentro da democracia. Basta uma figura forte no comando que consiga angariar os votos e o resto é feito na base da troca de favores. Estão trocando civis por militares, mas de resto, quase não dá para ver a diferença. Tenho certeza que ele adoraria ter poderes ditatoriais plenos, mas provavelmente já fez as contas da chance de sucesso de um auto-golpe oficial e deixou pra lá.

Bolsonaro não quer confusão dentro da sua estrutura de poder, por isso foi expulsando todo mundo que tinha alguma voz lá dentro. Mandetta ficou popular e foi derrubado, colocou Teich no lugar, que tem o carisma de uma coluna de concreto e aparentemente a mesma capacidade de gerenciar o ministério da Saúde… forçou a saída de Moro mesmo sabendo de tudo que iria cair na sua cabeça depois… ele não é só um maluco que tem ciúmes de pessoas populares ao seu redor, é alguém que sabe que expurgos funcionam para consolidar poder e vai afastar qualquer voz dissidente de perto na primeira oportunidade.

Quer dizer que na verdade Bolsonaro é um gênio? Claro que não. Ele ainda corre risco de se afundar pelas suas burrices e teimosias, mas não é o ser inepto que a oposição tanto se esforça para estabelecer. Ele tem noção do que está fazendo, tem um projeto de poder e já está começando a negociar por ele. É muito por isso que a gente fala tanto de tomar conta da própria vida, não porque queremos que deixem ele em paz, e sim porque é uma ilusão achar que existe um “vácuo de poder” em Brasília. Não precisa esperar a resolução da situação para poder confiar no governo, porque o poder por lá já está fazendo o que quer.

As coisas não devem mudar tão cedo: Bolsonaro vai continuar firme na ideia de deixar o coronavírus correr solto e vai continuar montando uma base cada vez mais forte para se sustentar no cargo. É mais provável que ele ganhe a batalha e termine o mandato do que algum dos escândalos atuais renda um impeachment. Ele vai continuar numa guerra de atrição com os governadores e prefeitos pró-quarentena até o final. Você está por conta própria, não vai aparecer a cavalaria no cena final de batalha desse filme. A bagunça brasileira atual foi planejada e está sendo executada.

Eu realmente preferia que a realização de que governo se faz de baixo para cima não viesse com tantas mortes por causa de doença, mas essas são as cartas que o universo nos deu. Se cuide.

Para me chamar de comunista bolsominion gayzista fascista, para dizer que é por essa dose de realidade cinza que ninguém gosta de centrista, ou mesmo para dizer que ainda pode ser só coincidência: somir@desfavor.com

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