Crise calculada.

Como o assunto já vai estar caduco no final de semana, vamos falar sobre o decreto presidencial adicionando cabelereiros, barbeiros, manicures e academias nos serviços essenciais? O que parece só mais uma das teimosias de Bolsonaro na sua sanha de combater a pandemia fingindo que ela não existe na verdade esconde um grau de inteligência preocupante…

Oras, mas o STF já decidiu que os estados podem tomar suas próprias decisões sobre a quarentena, não? O decreto já nasceu defeituoso, podendo ser ignorado pelos governadores. Sim, mas esse aparentemente não é o objetivo final dessa canetada. Ao adicionar essas categorias aos serviços essenciais, nota-se uma provocação clara a quem considera a pandemia um problema grave. Não são categorias que geram confusão na mente das pessoas, a maioria de nós entende que são supérfluas em caso de doença.

E como sempre, o presidente tem uma resposta na ponta da língua, meio séria, meio deboche: higiene pessoal e exercícios são questão de saúde. No limiar entre o que a maioria de nós não vai conseguir saber se é uma piada ou se a pessoa realmente acredita naquilo. Se você conseguir abstrair toda a história de um presidente querendo que uma doença contamine logo boa parte da população contra praticamente todas as recomendações científicas, pode até se divertir com a ideia que estamos sendo governados na base da trollada.

Mas não podemos nos distrair da ideia de que tem algo mais racional por trás da estratégia. Bolsonaro deve se divertir muito emputecendo jornalistas e opositores políticos com essas provocações, o que com certeza pesa bastante nas decisões que toma; só que há uma lógica por trás disso tudo, e nesse caso das manicures e academias, a estratégia é mais fácil de perceber.

Ele sabia que governadores e prefeitos se recusariam a obedecer esse decreto. Fez isso para gerar pressão nos seus desafetos, pois sabe que o Brasil é um dos países mais vaidosos do mundo. Estamos num dos países com a maior taxa de cirurgias plásticas, não podemos esquecer. É uma população com baixa estima num país quente, com hormônios à flor da pele e pouca roupa para cobri-los. Some-se a isso uma enorme desigualdade social que faz com que o preço da hora de trabalho seja baixo o suficiente para que a maioria de nós tenha acesso a serviços do tipo.

Tem muita gente dependendo do mercado da aparência. A maioria trabalhando por conta própria. A demanda é enorme, muita gente só não furou a quarentena para pintar as unhas porque os salões de beleza estavam fechados, pois ignorariam os riscos num piscar de olhos caso tivessem a escolha.

Essa combinação cria uma bomba que cai no colo de quem estava fazendo a obrigação na pandemia: governadores e prefeitos de regiões muito afetadas. O decreto coloca uma parcela considerável da população brasileira em choque contra as figuras públicas que enfrentavam Bolsonaro. Como a Sally bem disse ontem, quem entende os riscos da pandemia (a informação chegou sim, disso não podemos reclamar) e pode ficar em casa é 100% culpado por fazer a coisa errada, mas essa não é toda a população brasileira: existe um grupo considerável de pessoas que acabam obrigadas a trabalhar mesmo contra todo o bom senso caso seus chefes tenham a possibilidade de reabrir empresas obviamente não-essenciais. A madame que vai até a manicure é tão criminosa quanto Bolsonaro, mas a trabalhadora que foi obrigada a ir trabalhar em suas unhas foi vitimada por uma estratégia política.

Parece bizarro colocar Bolsonaro e estratégia política na mesma frase, mas não podemos confundir desequilíbrio emocional com ignorância. O presidente tem um plano: ele quer pagar o preço em vidas para não entrar numa recessão econômica. O que como já escrevemos aqui, é de uma burrice galopante, porque povo com medo é povo que não consome, mas não deixa de ser uma construção lógica possível. Existem erros fundamentais na forma como ele decidiu lidar com isso, mas a partir daí, ele se mostrou extremamente consistente na estratégia.

É um erro achar que Bolsonaro é burro em tudo o que faz. Ele se trai constantemente por questões emocionais (necessidade de aprovação, teimosia por insegurança, falta de filtros), mas dentro da racionalização que faz do mundo, ele dificilmente se perde do caminho. A oposição está mordendo uma isca óbvia ao tratar o presidente como um imbecil completo: isso tira a responsabilidade dele sobre o que está fazendo. Bolsonaro pode ser burro demais para entender como medicina e economia funcionam de verdade, mas não é burro ao ponto de não ter um plano.

Ele tem um. Incrivelmente insensível com as vidas que se perdem pela bagunça institucional na resposta à crise de saúde. Ele não vai parar, ele tem certeza absoluta que tem que deixar todo mundo pegar a doença o mais rápido possível e deixar morrer logo quem vai morrer. Se os hospitais entrarem em colapso, logo logo morrem as pessoas que estavam ocupando os leitos e as coisas voltam ao normal. Isso é, o normal brasileiro. Ele quer que a pancada venha logo, e se morrer 50 vezes mais gente do que morreria caso levássemos a doença mais a sério, que morra. O Brasil tem gente o suficiente para perder um milhão e continuar funcionando. E se desse um milhão a maioria for de idosos, até tira pressão da previdência e do SUS, economizando o dinheiro que o Paulo Guedes vive pedindo para economizar.

Você pode achar esse plano horrível de um ponto de vista humanitário, você pode achar isso e entender que não adianta pagar esse preço para recuperar a economia porque a economia vai sofrer de qualquer jeito, e talvez até pior se não cuidarmos da saúde da população, como nós acreditamos aqui. Agora, o que eu não quero que você faça é esquecer que Bolsonaro tem um plano. Estava decidido desde o primeiro caso brasileiro.

Falar que é só burrice e teimosia é uma armadilha. Gera uma disputa no campo da passionalidade que só beneficia a narrativa dos extremistas. Esse senhor sabe o que está fazendo, está fazendo de propósito e deve ser julgado de acordo. Quem acha que ele está quase caindo vai ficar decepcionado: são pequenos detalhes como esse decreto das academias e manicures que demonstram que existe um método nesse caos bolsonarista.

Não estamos vendo todas as ações realizadas por sua equipe nos bastidores, é bem provável que ele já esteja próximo de ter comprado todos os votos necessários para escapar de qualquer tentativa de impeachment. E por mais que o Centrão e outros aliados de aluguel cobrem caro e não tenham fidelidade alguma, o presidente não se esquece de dar atenção para sua base (cada vez menor, mas cada vez mais radicalizada) e ter uma válvula de escape para influenciar o país.

Temer também precisou subornar o Legislativo para se manter no poder, mas não tinha nenhuma outra forma de projetar poder. Por isso, passou boa parte do tempo escondido dentro do Palácio da Alvorada, torcendo para o dinheiro distribuído ser suficiente. O presidente atual cria inimigos diariamente, mas sai às ruas (contra todas as recomendações) para mostrar a cara. Isso galvaniza o apoio de milhões de brasileiros que não sabem nada sobre como lidar com pandemias ou manter uma economia viável. Isso o protege de se tornar irrelevante, o verdadeiro motivo que acabou com o governo de Dilma e fez de Temer uma piada.

E não podemos ignorar o que faz enchendo o poder executivo de militares, fazendo-os se acostumar com poder novamente. O ritmo de nomeações de militares para cargos de alta e principalmente baixa visibilidade aumentou muito nos últimos meses. O exército que não tem munição para um dia de guerra não tem interesse em tomar o poder à força, mas se cair no colo deles… os melhores golpes de Estado são feitos dentro da democracia. Basta uma figura forte no comando que consiga angariar os votos e o resto é feito na base da troca de favores. Estão trocando civis por militares, mas de resto, quase não dá para ver a diferença. Tenho certeza que ele adoraria ter poderes ditatoriais plenos, mas provavelmente já fez as contas da chance de sucesso de um auto-golpe oficial e deixou pra lá.

Bolsonaro não quer confusão dentro da sua estrutura de poder, por isso foi expulsando todo mundo que tinha alguma voz lá dentro. Mandetta ficou popular e foi derrubado, colocou Teich no lugar, que tem o carisma de uma coluna de concreto e aparentemente a mesma capacidade de gerenciar o ministério da Saúde… forçou a saída de Moro mesmo sabendo de tudo que iria cair na sua cabeça depois… ele não é só um maluco que tem ciúmes de pessoas populares ao seu redor, é alguém que sabe que expurgos funcionam para consolidar poder e vai afastar qualquer voz dissidente de perto na primeira oportunidade.

Quer dizer que na verdade Bolsonaro é um gênio? Claro que não. Ele ainda corre risco de se afundar pelas suas burrices e teimosias, mas não é o ser inepto que a oposição tanto se esforça para estabelecer. Ele tem noção do que está fazendo, tem um projeto de poder e já está começando a negociar por ele. É muito por isso que a gente fala tanto de tomar conta da própria vida, não porque queremos que deixem ele em paz, e sim porque é uma ilusão achar que existe um “vácuo de poder” em Brasília. Não precisa esperar a resolução da situação para poder confiar no governo, porque o poder por lá já está fazendo o que quer.

As coisas não devem mudar tão cedo: Bolsonaro vai continuar firme na ideia de deixar o coronavírus correr solto e vai continuar montando uma base cada vez mais forte para se sustentar no cargo. É mais provável que ele ganhe a batalha e termine o mandato do que algum dos escândalos atuais renda um impeachment. Ele vai continuar numa guerra de atrição com os governadores e prefeitos pró-quarentena até o final. Você está por conta própria, não vai aparecer a cavalaria no cena final de batalha desse filme. A bagunça brasileira atual foi planejada e está sendo executada.

Eu realmente preferia que a realização de que governo se faz de baixo para cima não viesse com tantas mortes por causa de doença, mas essas são as cartas que o universo nos deu. Se cuide.

Para me chamar de comunista bolsominion gayzista fascista, para dizer que é por essa dose de realidade cinza que ninguém gosta de centrista, ou mesmo para dizer que ainda pode ser só coincidência: somir@desfavor.com

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Comments (16)

  • Bolsonaro é burro sim, mas como é um estúpido preconceituoso grosseiro tem público garantido por si só. Em relação às sutilezas com efeito político favorável, como o apoio ao culto à futilidade mediante a abertura de estabelecimentos de beleza, creio que sejam ações pensadas por assessores. Nesse sentido, o imbecil é suportado como Bush II era por Cheney, Rumsfeld e Ashcroft.

  • A frase agora é nossa, foi tombada como Patrimônio Nacional pela =FUNESCO=.
    ….ok, acho que foi Tom Jobim quem proferiu ou profetizou ou popularizou: “o Brasil não é para principiantes”

  • Tomara que o povo agora perceba a importância dos governos locais e fique mais de olho neles, em vez de focar só no presidente.

    • É uma das únicas soluções verdadeiras para o país sem explodir de vez o sistema que já existe. Voto em vereador vale 10 vezes mais que voto em presidente…

  • Eu hoje li uma frase que é a seguinte: O vírus nasceu na China, cresceu na Itália, estudou nos Estados Unidos e virou político no Brasil!

  • Wellington Alves

    É muito difícil entenderem que Bolsonaro é apenas um presidente sensível as necessidades do povo. ninguém pensa nas milhares de mulheres que sustentam suas casas trabalhando de cabeleireira e manicure nas periferias, é com essas pessoas que Bolsonaro está falando.
    Por incrível que pareça temos um presidente preocupado com o pós crise e isso não está sendo valorizado. Todos estão pensando apenas em parar tudo e foda-se o amanhã. Bolsonaro está dando condições para que possamos sair o mais rápido possível dessa recessão lá na frente.
    O fato é que Bolsonaro não é um político padrão. Ele fala a verdade mas as pessoas acham que é jogo. Por exemplo no caso dos exames… Embora tenha dito que deu negativo, a imprensa não se conformou e queria ver. Só de birra ele não mostrou pois era para acreditar na palavra dele. O MBL, ridículos, já estava em êxtase festejando um impeachment com base no resultado positivo do teste. Eu, Particularmente, achava muito difícil que ele estivesse blefando pois os sintomas poderiam aparecer na sequência. pois bem, foi lá agora e mandou os laudos, inclusive um 3º que ninguém sabia, mostrando que o teste realmente deu negativo. O MBL simplesmente colocou o rabo entre as pernas e desconversou. Agora ele pode crescer pra cima da imprensa e dizer que teve seu direito à privacidade violado e mostrar para os eleitores que podem confiar na palavra dele.
    mesma coisa nesse caso do vídeo da reunião… Até parece que ele seria idiota para pedir que Sérgio Moro cometesse um crime, ainda por cima diante de várias testemunhas. Mas o desespero para derrubá-lo é tanto que estão passando por cima de qualquer bom senso.
    Acreditem, Bolsonaro é dotado do efeito Mr. Magoo!

    • A coisa é bem mais complicada do que sensibilidade às necessidades dos menos afortunados. Coração até o Hitler tinha. O Stálin tinha certeza que estava fazendo o melhor para o povo. E nem precisa falar de ditador sanguinário: Lula vai morrer acreditando que toda a corrupção que gerenciou e/ou proporcionou eram preços aceitáveis para melhorar a qualidade de vida dos mais pobres, o que de fato, por um tempo aconteceu.

      Mas o preço que Lula aceitou pagar naquele momento custou muito caro depois. Quase duas décadas desse jogo praticamente faliram o país.

      Bolsonaro acha válido pagar o preço de mais mortes por coronavírus para evitar uma grande depressão econômica, e se você quiser olhar isso pelo lado positivo, ele não parece tão ruim. Afinal, líderes precisam tomar decisões difíceis, certo? Mas esse preço é só a entrada, ainda tem várias prestações. Assim como Lula podia ter uma racionalização para a corrupção usando o “bem do povo”, Bolsonaro está indo pelo mesmo caminho ao rejeitar a lógica do isolamento como medida de prevenção de mortes e de prevenção de colapso econômico que todos os outros líderes mundiais ficaram sem escolha senão aceitar.

      Ninguém precisa achar que ele é um vilão de gibi para criticar essas decisões. De boas intenções o inferno está cheio, já dizia o ditado.

  • O ponto-chave de preocupação é que 2020 tem eleições municipais e se elas ocorrerem como previsto, além de aumentarem o número de pessoas nas ruas (o voto é obrigatório e se você não vota tem que justificar ou pagar uma multa que ainda que irrisória é uma burocracia a resolver depois), ainda tornam a situação do controle mais problemática do que deveria ser, sendo que a troca de comando tende a causar problemas claros no controle da situação. Lideranças populistas de oposição a nível local podem aproveitar da situação problemática para derrotar os políticos de situação.
    Bolsonaro poderia optar por partir diretamente pro enfrentamento, mas preferiu COMER PELAS BEIRADAS aproveitando do fato de as medidas serem ALTAMENTE IMPOPULARES nesse ambiente PÓS-INDUSTRIAL onde os GRANDES EMPREGADORES são as áreas de COMÉRCIO e SERVIÇOS. Ele vai ESVAZIANDO AOS POUCOS os poderes de GOVERNADORES e PREFEITOS, REDUZ O ÔNUS FINANCEIRO das MEDIDAS PALIATIVAS no campo da ASSISTÊNCIA SOCIAL e de quebra ainda forma um BLOCO DE OPOSIÇÃO FORTE com vistas a faturar em cima da oposição as medidas de isolamento social e lockdown nas próximas eleições.
    Ele não percebeu isso de imediato. Precisou que o VELHO DA HAVAN e outras figuras do ALTO EMPRESARIADO se movessem para que se acendesse a fagulha e ele percebesse tal oportunidade.
    Os blocos da “oposição bolsonarista” (sic) podem ganhar boa votação nos pleitos de 2020 e 2022, apesar de eventualmente não terem se organizado adequadamente pra tirar grandes vantagens no processo eleitoral atual. O quadro político é o PIOR POSSÍVEL para que Bolsonaro possa jogar, mas ainda assim pode garantir uma eventual sobrevivência do atual presidente no Planalto até 2026.

    • No final das contas, quanto mais selvagem a situação, mais em casa ele se sente. Foi na pancadaria e na facada que ele foi eleito, e é nesse clima que ele tem as maiores vantagens sobre os concorrentes.

  • No Brasil, nada é simples. E nem às claras. E nem correto. E nem bem-feito. E nem sem interesses escusos por trás. E nem…

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