Depende…

A gente sempre diz aqui que você precisa pensar com a própria cabeça. Diz também que não é nem para confiar muito… na gente. Pega o que for útil e joga fora o resto. Considero bons conselhos, mas é importante explicar como segui-los pode ser mais complicado do que parece, especialmente em tempos como os atuais.

Eu costumo brincar que você sabe que está falando com alguém que entende de um assunto quando a pessoa começa a resposta com “depende”. Brincadeira com fundo de verdade: eu não conheço nenhum campo do conhecimento que humano que fica mais simples à medida que você estuda sobre ele. Seja na física quântica ou na filosofia, quanto mais você se aprofunda, mais dúvidas encontra.

Pergunte para uma pessoa aleatória qual notebook você deve comprar e ela vai dizer, normalmente com bastante confiança, uma marca que ela gosta. Pergunte para alguém que conhece computadores mais a fundo e é quase certeza que ela te responde com outra pergunta: “depende, pra que você vai usar o notebook?”. Quando você disser que é pra ver série pirateada e fingir que trabalha, vai ouvir uma série de sugestões, muito provavelmente baseadas nas configurações que o equipamento deve ter.

É só um exemplo simples, mas já define os pontos-chave: quanto mais uma pessoa conhece sobre um tema, maior o universo de possibilidades que ela enxerga. E quanto maior o universo de possibilidades, mais complicado é escolher apenas uma opção. Por isso é comum que especialistas façam muitas perguntas antes de te indicar alguma coisa. São pessoas que conhecem muitas soluções, mas que também tem uma noção muito mais clara de tudo o que pode dar errado ao exporem essa informação.

O “depende” pode ser visto como sinal de fraqueza e insegurança para quem não entende nada sobre o assunto, mas quando vem de uma fonte que estudou, normalmente significa o contrário. A pessoa consegue enxergar cenários diferentes e antever consequências da informação que compartilha com os outros. “Com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades.” – Ben, Tio

Para um olho não treinado, pode parecer que o especialista e o leigo compartilham da mesma insegurança sobre uma resposta. Evidente que são diferentes; o especialista hesita por ter muita informação, o leigo hesita por não ter nenhuma. E para continuar empilhando problemas, a chance do seu olho não ser treinado para um tema aleatório é altíssima. E eu estou me colocando junto nesse grupo: tem tanta coisa para aprender nesse mundo que é simplesmente impossível chegar ao nível de especialista em mais do que um punhado delas. Quem dirá a maioria…

Estamos todos sob o risco de não perceber a diferença entre especialistas e leigos num tema específico, especialmente se estivermos sedentos por respostas. Faz parte de uma expectativa que se forma desde a infância: alguém vai ter a resposta. Aliás, crescer é basicamente descobrir que os adultos não sabem muito bem o que estão fazendo. Algumas pessoas lidam melhor com isso e vão se desenvolvendo, outras continuam buscando respostas de um “adulto que saiba o que está fazendo” pelo resto da vida. Mas para falar a verdade, não são dois grupos separados e imutáveis: a maioria das pessoas fica presa em algum meio termo entre esses dois estados, e as medidas podem mudar de acordo com o momento. O ser humano é complicado.

No ano da pandemia, essa questão de leigos, especialistas e nossa necessidade de respostas foi para o centro da atenção de muita gente, e como tudo o que a natureza faz, não foi combinado com antecedência. Chove quando é pra chover, o sol aparece no horizonte quando o planeta gira o suficiente e o vírus se espalha assim que consegue uma oportunidade. Como o tempo da natureza não se importa com o que a gente quer, o coronavírus pegou uma humanidade no meio de uma crise de confiança. A internet multiplicou o número de vozes nas nossas cabeças num ritmo quase impossível de acompanhar com sanidade.

A questão ancestral da responsabilidade gerada pelo conhecimento aliada à enxurrada de leigos falando pelos cotovelos tirou uma boa parcela das pessoas da sincronia entre conhecimento científico moderno e compreensão da realidade. Mesmo com baixas expectativas sobre o ser humano médio, ainda me choca a quantidade de pessoas com medo de vacina no século XXI. Não é só no Brasil, é em boa parte do mundo, inclusive em países mais civilizados como a França.

A voz do especialista continua lá, assim como esteve nas últimas décadas, mas agora tem que disputar espaço com leigos que demonstram a insegurança do não conhecimento e aqueles que berram suas certezas conspiratórias para os quatro ventos. O especialista não pode dizer que tem certeza absoluta, a fabricante da vacina não pode dizer que é 100% segura, porque eles nunca puderam fazer isso na era moderna. É uma limitação da voz do especialista: se você não colocar um “depende” nessa conversa é porque não era especialista para começo de conversa. Percebem a armadilha lógica na qual nos enfiamos?

O maluco que diz que tem HIV na vacina ou que você vai virar jacaré (eu sei que foi piada de tiozão do Bolsonaro, mas tem gente repetindo) não está preso pelo seu conhecimento do tema. Zero responsabilidade porque a pessoa não tem a informação necessária para enxergar responsabilidade. No segundo que você tem estudo e experiência suficientes sobre um tema, começa a enxergar as consequências de cada escolha. É o tipo de coisa que não se pode “desver”. Essa pessoa nunca mais pode fazer o papel de “papai que sabe tudo” para as crianças desse mundo. O conhecimento tem esse efeito colateral.

Isso gera uma competição injusta. De um lado quem sabe que tudo o que disser e fizer vai ter uma consequência, do outro quem dorme fácil mesmo tendo desinformado e colocado em risco a vida de muitas pessoas. É bom colocar em perspectiva aquele cidadão que está na praia aglomerado porque diz que é bobagem se preocupar com o vírus, para a pessoa é bobagem mesmo. A causa e a consequência sequer se encostam em sua mente. A vó morrer de Covid e a sua visita desnecessária só vão parecer uma sequência lógica se ela de fato acontecer. Se a velha não pegar ou se pegar e se recuperar, o vírus era frescura e/ou invenção da Globo a mando da China. É uma aposta que a pessoa nem sabe que está fazendo, por isso não parece pesada.

É são nesses tempos onde a linha entre a voz do especialista e a voz do leigo parecem tão borradas que precisamos ter uma boa noção sobre o que significa pensar por si mesmo. Sem contexto, dizer para alguém tirar as próprias conclusões é na melhor das hipóteses balela de autoajuda e na pior uma receita de desastre. E que contexto é esse? Pensar por si próprio não significa pensar sozinho. Pense por si mesmo, mas não se esqueça que existe um mundo ao seu redor. Tem mais gente pensando, e algumas delas o fazem com conhecimento acumulado pelo método científico e muito estudo específico.

Tire suas conclusões, mas não esqueça que elas podem ser bizarrices baseadas em informação envenenada. Ninguém está imune. Via de regra, se você começa a enxergar as consequências das suas escolhas num assunto, significa que está se aproximando de uma ideia mais segura. Ter um pouco de medo de fazer a coisa errada é muito saudável nessa hora, eu sei que não parece intuitivo, mas é sua mente te provando que você está indo pelo caminho mais seguro.

A realidade é cheia de riscos, ninguém pode te salvar disso. Esse é o cerne da questão do “pensar por conta própria”. Quanto mais riscos você enxerga, menor a chance de não estar preparado para um deles. Tem gente escolhendo atravessar essa pandemia com os olhos vendados porque é mais confortável não ver o abismo debaixo da ponte, mas é óbvio que são as pessoas que tem a maior chance de cair. Não tem como ser diferente.

Certezas são incompatíveis com a realidade. Você pode ter a incerteza do leigo que vai sozinho e nem saber que pode cair, você pode ter a falsa certeza do maluco e se arriscar à toa, ou você pode ter a incerteza do especialista, que não vai fazer com que a travessia seja 100% segura, mas pelo menos vai te avisar que tem algumas tábuas soltas no caminho. Para mim é bem óbvio qual a melhor escolha. E sabem por que eu acho uma escolha óbvia? Porque eu sei que tem escolha.

E o resultado dessa escolha? Bom, isso depende.

Para dizer que me achou inseguro e vai escutar o pastor que tem certeza do que fala, para dizer que não consegue mais desver as consequências (desculpa e de nada), ou mesmo para dizer que ciência é só mais uma religião (torcendo para você ter comorbidade): somir@desfavor.com

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Comments (10)

  • Bem assim, essa semana um “conhecido” me mandou uma foto de uma ferida horrível na perna ( imagino q caiu de moto) e me perguntou o q colocar .
    Perguntei se era recente , se estava tomando antibiótico, se estava saindo alguma secreção , se era diabético ou hipertenso, se era alérgico a algo … ele ficou irritado e falou q era só pra falar o nome de uma pomada e pronto hahaha.
    Espero q resulte em amputação , brincadeira rs.

    • Esta nossa era de acesso rápido e fácil a qualquer informação deixou muita gente mal-acostumada. As pessoas querem respostas. E não mais perguntas.

  • Sobre o começo do texto: que saudade da época que a gente tinha especialistas de verdade, com doutorado naquele assunto e, mesmo hesitante, ainda assim era uma voz de referência respeitável. Eu não sei, tenho a impressão de que hoje em dia há essa ditadura de tu ter que ser especialista em tudo de tudo, sendo que não é bem assim. As pessoas se esquecem que tá tudo bem não saber tudo de tudo, e sim apenas um pouco sobre algo mais aprofundado.

    Aliás, esse texto complementa bem aquele de sábado sobre o excesso de informação. Maldita hora que todo mundo resolve ter acesso a tudo, daí dá ruim mesmo. Aparecem supostos especialistas em toda parte… Triste!

    • Esse é o texto que eu disse que ia escrever no final do texto de sábado, então, realmente é o complemento. Obviamente não ia caber no meio daquela argumentação.

  • Depende de qual a vacina. A gente tava acostumado a demorarem anos e uma mudança de fazer uma em 1 ano causa desconfiança. Pra piorar querem obrigar, vejo muita gente falar que se fosse bom não era obrigatório, se fosse opcional iria. Governo é só um empregado, mas se acha dono aí dá nisso!

    • O período curto entre desenvolvimento e aplicação é sim uma mudança das regras habituais, mas não podemos esquecer que dessa vez não é um laboratório fazendo tudo sozinho e equilibrando verbas, são inúmeras empresas e institutos de pesquisa colocando toda a energia nisso com dinheiro quase que infinito fornecido pelos governos de um mundo com pressa de resultados. E mais, tudo isso sob uma vigilância severa da comunidade científica, da mídia e da população em geral. Não é a mesma coisa que demorar 10 anos para soltar a vacina, mas também não é a mesma coisa que o sistema de antes dez vezes mais apressado. Tem muita compensação para esse período mais curto.

      E sobre obrigatoriedade da vacina, passa longe de ser novidade. A gente vive num mundo onde varíola e polio, por exemplo, são histórias do passado justamente por causa da obrigatoriedade. É um assunto complicado, é claro, mas… o Código Penal está cheio de limitações da liberdade pessoal que a maioria de nós concorda, não?

  • Eu moro no interior e nunca vi quarentena nem máscaras por aqui, é quase um universo paralelo (embora tenha tido 1.000 casos e 20 óbitos na cidade). Cheguei a quase cair nessa conversa de que o vírus é uma invenção, um exagero, e tudo foi forjado pra destruir pequenos e médios empresários e deixar as grandes corporações tomarem tudo.

    • É compreensível. Não é a melhor conclusão a se tirar com as informações fornecidas, mas é uma conclusão possível, tanto que muita gente chegou nela.

      Tem muito discurso bonito sobre tirar as próprias conclusões e ser firme nas suas convicções, mas ninguém fala que você pode estar analisando algo da forma errada ou deixando de perceber mais informações importantes sobre o assunto. É um risco inerente a quem pensa.

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