Na companhia de idiotas.

“Toda comunidade cujos membros fingem ser idiotas para dar risada vai eventualmente ser tomada por idiotas verdadeiros acreditando que estão em boa companhia.” – a frase, atribuída a René Descartes (mas que como toda citação do tipo, pode ter vindo de qualquer lugar), parece resumir bem o que a internet fez com basicamente todo o ambiente político e social da humanidade nas últimas décadas.

Se ficou confuso, eu tento desenrolar: eu tenho a teoria de que quase toda a guerra entre conservadores e progressistas que acontece na sociedade moderna foi criada por trolls. E não estou dando crédito demais aos trolls, porque mesmo acreditando que toda essa animosidade nasce da vontade de algumas pessoas de provocar o amiguinho (eu incluído), eu tenho um alto grau de confiança de que a maioria absoluta desses trolls não sabiam o que estavam aprontando (eu incluído).

Hoje em dia eu posso falar com propriedade sobre a fase de expansão da internet na vida das pessoas. Conectado desde o milênio passado, vi ao vivo a transição para a banda larga e a popularização dos smartphones adicionando incontáveis horas de conteúdo e bilhões de pessoas na grande rede. Se você for um historiador dos anos 2100, provavelmente vai ter que sofrer lendo textos como os meus para entender o que diabos aconteceu com o mundo num espaço tão curto de tempo entre o final do século XX para o começo do século XXI. Já peço desculpas pelos contos escatológicos.

E, talvez um pouco de desculpas também pela insanidade maniqueísta que pode ou não ter causado alguma guerra futura. Já escrevi várias vezes aqui sobre o histórico que tinha de ficar discutindo na internet, como por um tempo foi muito divertido, mas eventualmente perdeu a graça. Nessa fase divertida, eu arranjava jeito de provocar e confundir o máximo de pessoas possíveis em fóruns, chats e embriões das redes sociais atuais.

No final dos anos 90, até tinha algum espaço para interação na internet, mas era… um pouco mais equilibrado. Equilibrado no sentido que eu podia conversar com gente mais ou menos parecida comigo, inclusive em conhecimento e habilidade de comunicação escrita. Sem contar que as coisas eram mais lentas, havia tempo para pensar numa resposta, e uma pesquisa podia demorar horas e horas até dar um resultado razoável.

Mas aí, começou a aparecer mais gente. Mais e mais. E de repente, o equilíbrio tinha acabado. Sim, entraram muitas outras pessoas com capacidade parecida com a minha, e tantas outras com ainda mais cultura e domínio da escrita, mas por uma pura questão estatística, a imensa maioria dessa tsunami de gente entrando na internet em questão de poucos anos não tinha a menor condição de enfrentar os veteranos da rede.

Sabe aquelas cenas de ursos pegando salmões no rio? Os ursos só esticam os braços e os peixes caem na mão deles. É tanta comida que vários ursos ficam muito mais próximos que o normal, sem muita tensão. Bom, imagine alguém que passou alguns anos conversando na internet com gente anônima de relativo alto nível cultural (e personalidades podres) dando de cara com o cidadão médio? Hoje eu percebo como as primeiras chans e o Orkut eram aqueles rios cheios de salmões saltitantes.

O ser humano médio não tinha defesa nenhuma contra gente como eu. Ele partia da presunção que todo mundo estava falando a verdade e se expondo da mesma forma como ele. Tinha algumas visões sobre o mundo, mas além de nunca ter exercitado argumentar sobre elas, também não sabia onde encontrar informação rapidamente. Embora pentelhar as fãs do Justin Bieber tenha sido divertido por alguns minutos, nada se comparava a entrar em comunidades de pessoas com visões políticas e religiosas específicas. Lá os salmões se jogavam violentamente contra o urso.

Eu nem tinha muita noção do comportamento predatório, assim como boa parte das pessoas que passaram a infância e o começo da adolescência num mundo offline, eu ainda tinha a ideia de que todo mundo estava mais ou menos no mesmo nível que eu, e que “ganhar” um argumento na internet era mais questão de habilidade em discussão do que capacidade geral mesmo. Desenvolvi várias habilidades. Mas no final das contas, nem fazia muita diferença: era só entrar numa comunidade de evangélicos e dizer “deus não existe e vocês são burros” para ter cem páginas de discussão semianalfabeta para brincar.

Mas o tempo passa. E por mais que a minha próxima afirmação vá te chocar, leia-a com calma: o cidadão médio atual é muito mais capaz numa discussão que dez anos atrás. E eu sei porque você está chocado(a): porque estamos na era da Terra Plana e dos antivacinas. Das brigas infinitas e desinformação correndo solta. De esquerda e direita jogando ciência no lixo quando os interessa. Não pode ser possível que o cidadão médio esteja mais capaz de discutir, né?

Aí que está a sutileza da coisa: não estão mais capazes no sentido de encontrar informações corretas e fazer bom uso delas, não estão mais capazes em gerar consenso com grupos diferentes, não… porque não foi isso que eles aprenderam a fazer. Eles aprenderam a ganhar discussões e se manter seguros não importa a asneira que estejam defendendo. Não é sobre a verdade, é sobre a sensação de vitória.

Mais ou menos como eu fazia quando brincava de mudar de opinião no meio de uma longa discussão com um ou mais incautos nos antigos fóruns e redes sociais da internet. Às vezes não percebiam! Ou quando eu me divertia distorcendo sem parar o que a outra pessoa dizia, e fazia ela ficar girando em círculos até ficar entediado e sumir. Algumas vezes, eu até defendia um ponto honestamente, mas quando ficava de saco cheio, começava a provocar a pessoa para ter alguma diversão na conversa.

Vejam bem, não estou tentando me posicionar como uma força maligna imparável, muita gente simplesmente não mordia a isca, ou era equilibrada o suficiente para não dar corda em alguém falando maluquice só por esporte, tenho certeza que outros sabiam o que estava acontecendo e só estavam se entretendo; mas estou dizendo que cada vez que ligava o computador, podia escolher para qual discussão troll inútil daria minha atenção. Não faltava gente caindo nesses truques baratos.

E ninguém é uma ilha: eu observava mais e mais pessoas fazendo essa mesma brincadeira de “pentelhar o amiguinho na internet”, inclusive algumas vítimas começando a sacar os truques e usando elas mesmas. Como eu não tinha nenhuma posição muito sagrada pra defender, era diversão e pronto, eu ria até quando a pessoa que eu estava sacaneando descobria como virar o jogo; era apreço pelo esporte, não vontade de ganhar medalhas.

Só que aquela fase da internet deixou marcas duradouras. Muita gente foi exposta às técnicas sujas de desvirtuar discussões e enfiar informações bizarras em conversas teoricamente sérias. Muita gente aprendeu (errado) que o importante era esmagar o adversário custasse o que custasse. Os salmões que eu pesquei continuaram na internet, eles tiveram muitos filhotes e passaram um pouco desse conhecimento.

E essa zona que é qualquer discussão política e/ou social hoje em dia na internet me parece o resultado claro de gente “normal” usando táticas de troll sem saber que está fazendo isso. A discussão nunca avança? Os exemplos e ideias do lado oposto parecem cada vez mais insanos? Ninguém fica no tema e partem para agressão pessoal? A pessoa parece mudar de ideia a cada frase? Oras, é exatamente o que eu fazia quando queria transformar qualquer tema em caos total.

Mas eu sabia que estava esmerdeando uma discussão. Concordando você ou não com o esporte que eu resolvi praticar naquela época, há de se entender que o simples fato de eu saber que estava trollando mudava totalmente a alma da coisa. Quando eu sentia que a outra parte da discussão estava ficando muito furiosa ou triste, perdia a graça. Eu posso ser uma pessoa um pouco mais ou menos escrota que você, mas eu tenho uma linha de até onde eu vou sem sentir que estou abusando de outro ser humano. Se passasse, eu podia trazer a pessoa de volta com um gesto de amizade ou compreensão, ou mesmo sumir e deixar ela em paz.

É honrosamente divertido enfrentar alguém mais forte, é divertido disputar com alguém que parece estar no mesmo nível que você, é vergonhosamente divertido disputar com alguém que parece um pouco abaixo do seu nível, mas é patético ficar irritando alguém que claramente não tem condição de brigar de volta. Quando você sabe que está trollando, essa noção vem fácil. Mas quando não sabe… bom, temos uma explicação válida para o estado de divisão da sociedade (pelo menos a parte online).

Esse povo só fica maluco lacrando ou mitando com notícias bizarras, palavras que não sabem o significado e ideias totalmente distorcidas porque quase ninguém mais tem a noção clara do que está aprontando: é só discurso troll feito para confundir e irritar passando como discussão normal. Não é. Papo furado de troll não vai pra lugar nenhum, ele existe para girar em falso e ficar provocando quem cai nele.

Quando a pessoa se diz não binária e inventa pronomes diferentes, não é algo que soa como uma piada de troll? Quando alguém vem defender veementemente que a Terra é plana, não te dá a impressão que ninguém falaria isso com a cara séria? Discursos de lacradores em colunas provocativas, notícias bizarras inventadas por bolsonaristas… não estamos vivendo num mundo onde todo mundo parece querer trollar a gente? Meio como que por trás de cada maluquice dessas, tivesse uma pessoa rindo por dentro, incrédula como alguém acreditou naquilo.

Porque é isso que eu começo a ver com cada vez mais claridade. Não estou dizendo que está todo mundo de sacanagem e não acreditam no que dizem, estou dizendo que sem querer esse tipo de argumentação troll virou norma na internet, e como é a internet que informa virtualmente todo mundo hoje em dia, esse veneno argumentativo pegou a maioria das pessoas. A pessoa acaba forçada a montar sua visão de realidade através das lentes distorcidas de um tipo de argumentação criado para confundir e extrair reações emocionais fortes de estranhos distantes.

Talvez eu tenha uma parte dessa culpa, mas espero que seja só mais uma das minhas teorias malucas. Porque se não for, é provavelmente um dos maiores cisnes negros da história da humanidade: estava na cara que a popularização da internet ia criar uma nova forma de comunicação humana, mas na época eu não imaginava que isso teria esse tipo de consequência. Se você injeta sarcasmo e nonsense “maligno” no começo da internet, ela se desenvolve a partir dessas bases, e todo mundo que entra nela a partir dali só aprende esse tipo de modelo de realidade.

Historiador, historiadora ou historiad@rs do futuro, se você estiver lendo isso, por favor entenda que eu não tinha como prever. Ou não, já estou morto mesmo, se fode aí! Hahahaha!

Para dizer que não aceita minhas desculpas, para dizer que agora você vai enxergar a trollagem em todos os lugares, ou mesmo para dizer que eu pelo menos ajudei a criar muitos empregos: somir@desfavor.com

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Comments (16)

  • Poxa, Somir, que nostalgia! Isto é, bons tempos de começo da internet onde tudo não passava de uma trolada mesmo, de uma brincadeira. Mas, pelo visto, essa brincadeira foi longe demais e de maneiras erradas, por pessoas erradas. Triste essa merda toda que deu. Será que tem volta?

  • Bernardino Teixeira

    A Internet possui estes dois lados: você pode encontrar conteúdos incríveis, da mesma forma que se depara com bizarrices. Isto é aceitável, pois acontecia antes da grande rede existir. A coisa fica preocupante quando o que era para ser uma coisa para se rir, zoar, ridicularizar, ganha ares de verdade, de dogma, e aparece um monte de gente defendendo isto com unhas e dentes.
    No fundo, a maioria das pessoas, seja no Brasil ou em qualquer país do mundo, sempre foram dotadas de pouca compreensão, sendo facilmente manipuláveis. A Internet só escancarou esta realidade.

  • o curioso é que na maioria dos casos a pessoa que faz uns shitposts na internet é bem de boa na vida real, já os que se fazem de bonzinhos…

  • O ano é 2132.
    Uma equipe de historiadores, arqueólogos e sociólogos realizavam pesquisas com evidências acerca do antigo e primitivo sistema econômico referido como bundocracia, que se tornou regra no território antes conhecido como Brasil, cerca de 120 anos antes de Cyber-Cristo.

    “Encontramos nos anais da internet, menções rupestres sobre escatologia e fetiches do gênero. Observando esse texto encontrado em um domínio de uma suposta república perdida, danificado pelos servidores, embora não possamos comprovar sua autoria, vemos que… Uh… A mitologia da época envolvia entidades tidas como sacrossantas que não conseguiam defecar suas fezes, ou que se esbaldavam e apresentavam algum apreço pelas que vinham de pessoas do gênerx femininx, frequentemente descritas com traços comuns dos povos asiáticos…”

  • Pode ser privilégio do meu círculo social, mas antivaxxer, terra plana, based, lacração e pronome neutro são coisas que eu só vejo na internet, parece que eu entro num mundo paralelo. Desemprego na geração jovem é um problema sério…

    Papais e mamães do Desfavor, ponham seus filhos pra lavar louça, varrer a casa, praticar um esporte, cultivar uma habilidade. O jovem fica de conversa fiada com um monte de gente retardada e fracassada na internet e acaba sendo mais prejudicial do que os professores supostamente “doutrinadores” que muitos de vocês temem.

    • Concordo 100% com você, Letícia.

      E ainda: parece que essa galera mais nova tem medo das outras pessoas, de interagir, fazer amizade, chegar em alguém…

      Sinto que essa cultura online do “exposed” por qualquer coisinha ridícula prejudicou demais essa capacidade da galera adolescente de lidar com discordâncias e tudo mais. Afinal, quem quer acabar “exposto” online por ter errado uma porra de um pronome?

  • Quem passa muito tempo na internet fica lelé das ideias e acha que o mundo está a ponto de explodir a qualquer momento. Esses dias eu estava falando com uma amiga que não tem redes sociais sobre as Olimpíadas, aí eu mencionei umas lacradas e mitadas desnecessárias que estavam postando e ela nem acreditou. E nas poucas vezes que eu vi alguém fazer alguma problematização dessas na vida real, a pessoa levou patada das outras.
    Só tem maluco aqui, na vida real não é socialmente aceitável ser assim, as pessoas tiram sarro. Não conheço ninguém na vida real, na minha família, no meu trabalho, que se encaixe nesses estereótipos extremos (conservador, lacrador, bolsominion, comunista, terraplanista, antivacina, assexuado etc) A maioria parece “neutro”.

    • Normalmente é porque essa galera extremista que faz essas coisas não tem muito o que fazer na vida, e fica o dia todo dentro da bolha virtual. E acha que o que eles fazem é normal, porque a bolha valida essas coisas o tempo todo. Eu vi gente tentando investigar os pais da Rayssa, aquela menina skatista, pra saber se são bolsominions e se podem torcer pra ela. Outro dia uma influencer postou umas conquistas de vida dela e reclamaram que era gatilho por causa da pandemia. Gente assim não consegue nem sair na rua. Tinha que estar fazendo tratamento, não usando rede social.

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