A armadilha da mediocridade.

Eu pincelei o tema no Desfavor da Semana, mas agora eu quero desenvolvê-lo melhor: existe uma espécie de armadilha lógica no desenvolvimento intelectual de uma pessoa. Um ponto médio entre ignorância e conhecimento aprofundado que pode fazer com que qualquer um de nós tenha ideias absolutamente bizarras sobre a realidade. Como você já viu pelo título, eu a chamo de armadilha da mediocridade.

Tentando explicar de forma simples, a armadilha da mediocridade é aquele momento em que você acha que entendeu um assunto, mas na verdade não entendeu. Uma pessoa totalmente ignorante está protegida dela, uma pessoa que se especializou no assunto também, mas provavelmente a maioria das pessoas não está nem numa categoria, nem na outra. E por isso, extremamente vulneráveis.

Argumento que achar que entendeu uma coisa é mais perigoso do que não entender nada. O ser humano tem uma série de instintos de autoproteção que agem em forma de medo, ansiedade, agressividade e tantos outros sentimentos desconfortáveis. Na falta de informações, os instintos assumem. E por mais que eles tenham seu grau de risco, geralmente são baseados em sobrevivência.

Usando o exemplo da vacina: na falta de qualquer informação sobre a vacina, a pessoa vai voltar para o instinto de imitação do bando. Se todo mundo estiver tomando a vacina, a pessoa vai também. Fazer o que o resto da sua tribo ou grupo familiar faz normalmente significa estar mais protegido e não tem consequências negativas. Tribos suicidas não passaram seus genes pra frente.

Agora, se a pessoa tem uma informação negativa sobre a vacina, o intelectual começa a peitar o instinto. O que por si só não é negativo, muito do que conquistamos como espécie está ligado com a negação do instinto em prol de ideias que consideramos melhores, seja para nós mesmos, seja para o grupo. Tribos que usaram o intelecto para suprimir o instinto e acertaram passaram seus genes pra frente.

Estou argumentando que é melhor que as pessoas sejam ignorantes e fiquem somente com seus instintos? Claro que não. Conhecimento é poder! Mas… é importante saber que não é tão fácil quanto ler uma manchete aleatória. Informação sem sustentação gera resultados aleatórios na cabeça. Esse é o perigo: o ser humano precisa ser minimamente previsível na sua compreensão do mundo para que possamos avançar rumo a um futuro melhor.

A armadilha da mediocridade é especialmente perigosa quando se manifesta em temas que exigem cooperação humana. Saúde pública é o exemplo da vez por causa da pandemia, mas basta olhar qualquer rede social para perceber como o discurso político se esvai em certezas bizarras por todos os lados. Não há campo comum porque os que ainda são ignorantes mudam de lado cem vezes na mesma discussão, os medianos estão raivosos com as certezas que acabaram de descobrir que tem, e os estudados não sabem como conversar com ninguém.

E são todos resultados esperados pelo nível de conhecimento. Quem não sabe usa o instinto para seguir o bando que acha mais forte, quem sabe um pouco se sente validado pelos que não sabem, e os que se aprofundaram não sabem nem por onde começar a explicar para os outros. É muito difícil explicar uma ideia complexa para outro ser humano, muito mais quando ela depende de várias bases diferentes para começar a fazer algum sentido.

Antes da cultura de internet estar estabelecida, o acometido pela armadilha da mediocridade não tinha plateia, e por tabela, não tinha incentivo prático para continuar nessa fase. Ou se especializava para encontrar gente disposta a lhe dar atenção (o PhD em física não vai dar muita trela para quem acaba de aprender as leis da termodinâmica), e o ignorante não vai sequer dar a possibilidade de começar esse assunto em condições normais de socialização.

A armadilha da mediocridade se manifestava na forma de isolamento, a pessoa tinha que decidir para que lado iria: ou ia se aprofundar para ter acesso a especialistas, ou ia cansar do assunto por falta de estímulo externo. Lembrando que existem tantos campos de conhecimento possíveis que a chance de alguém próximo ter o mesmo interesse quase sempre era baixíssima. Mas a humanidade avança para uma era de comunicação instantânea e constante.

E nessa era, a armadilha da mediocridade ganha uma nova cara: o reforço externo. Se você é medíocre num tema, rapidamente encontra mais e mais pessoas no mesmo nível para validar suas ideias. A pessoa não tem mais a necessidade de se aprofundar para discutir seu tema de interesse: não vai faltar companheiro de mediocridade com a internet.

Importante: medíocre é apenas o que é mediano, não é bom ou ruim. Usamos a palavra errado no dia a dia, como se fosse algo negativo. Medíocre no campo intelectual é quem deu um passo além da ignorância. O que é positivo no saldo geral: queremos mais gente saindo da ignorância. O que não podemos achar saudável é que tanta gente fique presa nessa faixa medíocre sem a menor noção de que o efeito Dunning-Kruger existe: pessoas com pouco conhecimento (mais maior que zero) sobre um tema tendem a achar que sabem muito mais do que realmente sabem.

Só com mais estudo que fica clara a quantidade de informação necessária para realmente entender daquilo. Com um mundo que isolava o medíocre, essa percepção tinha mais chances de acontecer, mas no século XXI, onde existem comunidades inteiras de medíocres reforçando uns as ideias do outro, o risco da pessoa nunca perceber quanta coisa falta para ela realmente entender do assunto é altíssimo.

Tem uma expressão da língua inglesa que diz “misery loves company” – numa tradução bem livre “desgraça adora ter companhia” – que fala sobre como gente que se sente mal tende a despejar seus sentimentos ruins nos outros; e eu acredito que mediocridade também adora ter companhia. É meio que instintivo: o ser humano que aprende algo fica empolgado com a ideia de ensinar para outras pessoas. Um dos instintos mais valiosos da nossa espécie! Mas ninguém disse que a pessoa precisa ensinar algo bom. A recompensa cerebral vem ao ensinar informação segura e ao ensinar informação bizarra. A pessoa se sente bem não importa o que diga.

O ignorante não tem informação para dividir, o especialista tem muita e mal sabe como começar, agora… o medíocre? Ele tem a informação no tamanho ideal, e melhor ainda, maquiada para parecer mais atraente. O medíocre pode jogar no mercado um produto informativo muito mais fácil de consumir, porque como não tem aprofundamento, os grupos de pessoas presas na armadilha da mediocridade vão testando milhares de formas de contar sua informação limitada, até encontrar as melhores.

Não é à toa que uma teoria da conspiração voa pela internet: foi selecionada para ser a mais eficiente. Mesmo que quem a desenvolva ou reproduza não tenham noção disso. O que é mais interessante vai pra frente, porque os temas não avançam na escala do conhecimento. Estão sempre girando ao redor do mesmo eixo, rejeitando incongruências e reforçando argumentos agradáveis para os impactados. Se a sua informação tem um ponto fraco, é só parar de falar dele e focar mais na parte que costuma deixar as pessoas mais impressionadas.

É muito fácil montar um exército de conhecedores medíocres com tempo livre para replicar uma ideia, é quase impossível combater isso com especialistas. É questão de números. No tempo que demora para fazer um texto desmentindo três boatos, são criados e divulgados outros dez. A hora do especialista é disputada e cara. A hora do medíocre é abundante e grátis.

E vejam bem, é importante ressaltar que falar besteira não é característica obrigatória do medíocre. Para boa parte dos textos que escrevemos aqui no Desfavor, Sally e eu somos medíocres. Às vezes falamos besteiras? Sim, falamos. É inescapável quando você não pode se dedicar muito ao material, mas na maioria das vezes, nos baseamos em conhecimento de gente que estudou muito e que não foi extensivamente questionada pela comunidade científica. Ou, se falamos algo que é disputado, avisamos que é disputado.

Ser medíocre não é problema. Eu sou um especialista em mediocridade: sei um pouquinho sobre milhares de temas, mas se precisar aprofundar, eu dou um passo pra trás e vou escutar quem gastou tempo de verdade com o tema. A informação que eu tenho e quero passar para vocês é justamente essa: não precisa ter medo de ser medíocre, quase sempre é melhor que ser ignorante, mas precisa ter a clara noção da ilusão de saber mais do que realmente sabe. Eu só tenho coragem de dar tantas opiniões aqui no Desfavor porque eu aprendi a ficar numa região mais segura do conhecimento: pode fazer conexões à vontade, mas só afirme o que você tem condições de defender com dados e opiniões de gente muito bem estudada.

Acertar sempre é impossível, até escrevi sobre isso semana passada, mas reduzir a quantidade de erros para um nível razoável não é tarefa impossível. Muito pelo contrário: a internet ajuda demais nesse sentido. Bateu uma dúvida? Procure informações. O que não pode acontecer é ficar preso num ciclo de mediocridade, escutando só gente que tem mais ou menos o mesmo nível de conhecimento que você. Porque é aí que as bizarrices que acabam infestando a mente dos ignorantes vão se criando.

A armadilha da mediocridade é meio que um padrão na vida, sempre que você se interessar um pouquinho por um tema, vai estar a um passo de cair nela. Toda jornada começa com o primeiro passo e temos que passar por essa armadilha mesmo, mas idealmente com a plena noção que ela está lá. Se você não está percebendo que falta MUITA coisa para aprender sobre qualquer tema que esteja interessado, você provavelmente caiu nessa armadilha. Sair é fácil se você souber onde está: basta procurar material aprofundado e se perguntar honestamente se está entendendo.

Se não estiver, sorria: você está no caminho certo. Se tudo o que você achar apenas estiver reforçando o que já sabia, você está no meio da armadilha e não encontrou os especialistas ainda. Se sentir burro sobre um tema é a melhor coisa que pode acontecer na jornada do aprendizado. É quando você pode acreditar que está avançando. Se o seu tema de interesse estagnar, pule fora da armadilha.

E se encontrar outras pessoas nesse lugar ruim, pelo menos sabe o que está acontecendo. A pessoa só sai desse buraco se quiser, mas ela precisa saber que está num buraco. Ajudar ou não é prerrogativa sua, afinal, como eu acabo de dizer no texto todo: conhecimento é poder. Poder é escolher.

E não tenha medo de ser medíocre, tenha medo de se iludir que não é.

Para dizer que achou o texto mediano, para dizer que se sentiu mal lendo o texto (pode ser positivo), ou mesmo para dizer que eu já escrevi esse texto antes de forma mais confusa (todo dia eu faço isso): somir@desfavor.com

Se você encontrou algum erro na postagem, selecione o pedaço e digite Ctrl+Enter para nos avisar.

Etiquetas: , ,

Comments (8)

  • Esse fenômeno é muito interessante . Comigo acontece sempre por causa do YouTube. Vejo um vídeo aleatório sobre determinado assunto , acho legal e q entendi tudo . Conforme vou vendo mais sobre o tema vou ficando confusa hahaha as vezes desisti de entender

    • Mantenho que eu acho positivo perceber que não entendeu tão bem. No mínimo é um sinal de que você está passando pela armadilha, e não é uma informação ruim de ter. Pelo menos permite a escolha de tentar resolver a dúvida ou aceitar que vai dar mais trabalho ter uma boa opinião própria sobre o tema, buscando fontes melhores.

  • Quanto mais a gente aprende sobre alguma coisa, mais a gente descobre que ainda há muito mais a aprender. E, no meio desse caminho, nós também percebemos que, muito provavelmente, uma vida inteira de estudo não seria suficiente para se conhecer tudo sobre essa coisa nem para um especialista com dedicação exclusiva, que dirá para generalistas que procuram aprender a cada dia um pouquinho que seja sobre uma multitude de assuntos. Ou, como diria Sócrates: “Só sei que nada sei”. E admitir que só sabe que nada sabe não tem a ver exatamente com humildade, embora a modéstia seja mesmo uma virtude admirável. Tem mais a ver com exercer honestidade intelectual, inclusive para consigo próprio.

    • Tem muito a ver com não ficar estagnado. Honestidade intelectual é saber que tem mais para aprender, e que cada opinião é uma fotografia da mente naquele momento.

      • “(…) Cada opinião é uma fotografia da mente naquele momento”. Gostei muito dessa definição, Somir. Vou até anotar.

Deixe um comentário para Anônimo Cancelar resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Relatório de erros de ortografia

O texto a seguir será enviado para nossos editores: