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Sobreviventes dos anos 80

Sobreviventes dos anos 80

| Sally | | 64 comentários em Sobreviventes dos anos 80

Esta semana li uma notícia que dizia morrem mais crianças hoje do que na década de 80. Morrem mais por doença, por acidentes, por suicídio, por uso de drogas e por outras causas. Na matéria explicavam que o novo estilo de vida dos tempos modernos é especialmente prejudicial para as crianças: os pais têm pouco tempo para cuidar, o estresse, a poluição, a comida congelada e muitos outros fatores contribuiriam para que, apesar dos avanços da medicina, morram mais crianças hoje.

Obviamente quem escreveu isso não foi criança nos anos 80 ou obviamente há um erro de cálculo aí. Impossível que qualquer geração atual tenha uma infância mais perigosa, intoxicante e mortal do que a nossa, de pessoas que foram crianças nos anos 80. Que tipo de geração de crianças de cristal estão nascendo para que hoje, morram mais do que nos anos 80?

Nos anos 80 não tinha essa conversinha de alimento orgânico, de coisa sem agrotóxico, de alimento sem gordura trans. Nos anos 80 borrifavam as plantações com aquele Baygon preto e foda-se, é isso que vai para o seu prato e ai de você se não comer, pois além de apanhar ainda tinha que ouvir aquele sermão de que “tem criança passando fome na África e você jogando comida fora”.

Não só isso, os fast foods, os alimentos embutidos, os sorvetes, nada era controlado. Gordura trans deveria ser a coisa mais saudável que tinha em um lanche de fast food ou em um picolé. Para vocês terem uma ideia, o Chicabon não derretia, mesmo em um calor de 40°. Tinha cera de vela aquela merda, só isso explica. Hoje você abre um Chicabon em um dia quente e ele nem derrete, ele evapora na sua frente.

Sabe o sorvete de pote que hoje vocês pegam molinho com qualquer colher? No meu tempo não tinha isso não. O sorvete ficava duro feito uma pedra. A gente enfiava uma colher e tentava tirar e dobrava a colher.

Os salgadinhos de pacote todos tinha uma cor meio Chenobyl, fluorescente. E a bala da época era a Bala Soft, que vinha em dois sabores: Asfixia e SAMU. Era uma bala projetada anatomicamente para escorregar pela sua garganta e te engasgar. E a bala que não escorregava, a Van Melle, vinha com cocaína dentro. O que diabos estão servindo para a geração atual que pode ser pior do que isso?

Hoje as mães levam os filhos à praia em determinados horários, besuntam a criança toda em protetor solar kids, colocam chapeuzinho, hidratam a criança a cada duas horas, reaplicam o protetor solar de hora em hora, deixam a criança debaixo do guarda-sol e ela só entra na água de mãozinha dada com os pais.

Pois bem, deixem-me contar um pouquinho sobre como se ia à praia nos anos 80. Começava que essa coisa de cadeirinha de criança no carro não existia na maioria das famílias. Normalmente, na hora de ir à praia, meu deslocamento, SE fosse de carro, se alternava em três formas diferentes, uma mais incorreta do que a outra: ou ia no chiqueirinho (aquela mala aberta) da Belina, trocando socos com meu irmão, ou ia no banco traseiro, de pé, trocando socos com meu irmão, ou ia no banco da frente, no colo da minha mãe (que obviamente estava sem cinto de segurança), chorando por ter trocado socos com meu irmão, e meu irmão no colo do meu pai, AO VOLANTE, chorando por ter trocado socos comigo. Se batêssemos de carro viraríamos purê ou carne moída no asfalto.

Filtro solar? Olha, não era algo muito difundido, era um só para adultos e crianças (com cheiro de inseticida e provavelmente alguma química cancerígena) e era caro pacarai. O máximo que meus pais faziam era passar um tiquinho na mão e distribuir de forma apressada no meu rosto e no do meu irmão. E era isso para o dia todo, zero chances de alguém reaplicar algo. E, na década de 80 se ia à praia de manhã cedo e de voltava no final da tarde. Criança assando 12 horas ao sol.

Alguém me hidratava de hora em hora? Alguém colocava chapeuzinho? Não. E criança podia ir na água sem a presença de um adulto, mediante o contrato verbal de “só não vai muito longe/muito fundo” – nas praias do Rio de Janeiro, onde bombeiro salva vidas se afoga. Nos anos 80 a gente exigia ao máximo do anjo da guarda, botava para trabalhar as 24 horas do dia.

E a volta, SE fosse de carro, obrigavam as crianças a entrarem no carro que ficou 12h ao sol, que obviamente não tinha ar-condicionado. 12hs fritando no sol com mais duas horas de sauna para fechar o dia. O câncer de pele lutava com a desidratação para decidir quem nos levaria.

Nos anos 80 o único produto de higiene e beleza feito para crianças era o Shampoo Johnsson e o Talco Johnsson (que recentemente perdeu um processo milionário nos EUA por ser cancerígeno). Todo o resto só usava quem tinha muito dinheiro, ou seja, a maioria das crianças usavam coisa de adulto mesmo, e eram autorizadas a isso.

Tinha um batom que eu não lembro o nome, mas era conhecido como “Batom 24h”. Ele era verde (sim, verde) e ficava vermelho menstruação alguns minutos depois que você passava na boca. E sim, durava quase 24h.

Esse batom só pode ter sido uma trollagem bem-sucedida, pois ele é a antítese do que um batom deve ser. Já seria difícil para mim hoje, passar sem borrar (respeitando o contorno da boca) um batom cuja cor não aparece enquanto você se pinta, imagina com a minha coordenação motora quando eu tinha apenas um dígito de idade, qual era o resultado final.

Abstraindo o fato de que um batom verde que fica vermelho na boca deve ter todos os elementos da tabela periódica, o fato de você não ver o que estava pintando (a cor do batom aparecia minutos depois) fazia com que as crianças pareçam o Bozo depois de se pintar. E sim, aquele desastre durava 24h. No dia seguinte você ia para a escola parecendo o Coringa, ou por causa do batom borrado, ou por causa da vermelhidão no rosto depois da sua mãe tentar esfregar a sua cara para tirar o batom borrado.

Passávamos um gel no cabelo chamado “New Wave”. O troço era colorido e ainda tinha uma tonelada de purpurina. Obviamente era criado para um público adulto, mas adulto não ligava a mínima para o que criança fazia, então, as crianças também usavam. Além do visual hediondo do cabelo melecado, grudento, colorido e purpurinado, eu tenho certeza absoluta de que o troço era tóxico, pois uma vez, em meio a um surto de piolhos no verão, a mãe de um coleguinha no colégio descobriu que o gel New Wave matava piolho.

Você, mãe no ano 2021, me responda uma coisa: o que você faria com esta informação? O que você faria se descobrisse que um produto adulto é capaz de matar outro ser vivo? Manteria longe do seu filho, certo? Sabe o que as mães dos anos 80 fizeram? Quando tinham um filho com piolho, compravam o gel New Wave e passavam nas crianças, pois era mais eficiente que os remédios para matar piolho da época. É toda uma geração que tomou metais pesados no couro cabeludo e certamente teve seu cérebro alterado de alguma forma.

Os poucos cuidados que os pais tinham com os filhos eram errados. Basicamente você não podia cair em piscina ou no mar depois de comer (infundado) pois teria câimbras e se afogaria, teria indigestão ou coisa do tipo. Você não podia comer sorvete quando estava resfriado (infundado), não pode engolir chiclete se não morre (infundado) e você não podia fazer caretas de frente para um ventilador pois o rosto ficaria torto (absurdamente infundado).

De resto? Fica à vontade. Se cair comida no chão assopra e come, se um estranho te oferecer um saquinho de doces de Cosme e Damião na rua pode comer e se quiser passar batom radioativo no rosto todo tá tudo bem. O grande problema era engolir chiclete. Sim, senhores, nós somos sobreviventes dos anos 80, estávamos nas mãos de uma cambada de desinformados.

Já vi muita gente dizer que tinha menos perigos pois não tinha internet e suas influências negativas. E precisava? A TV dos anos 80 era pior do que qualquer Youtuber! Um dia inteiro do Bozo Drogadão, apresentando o programa trincado, novelas da Globo com todo tipo de baixaria e mensagem errada e filmes semipornográficos nas tardes do SBT eram nossa programação básica.

Crianças eram deixadas sozinhas na idade em que os pais achassem que podiam ficar sozinhas e não tinha dessa de vir o Conselho Tutelar te interpelar. E se acontecesse alguma coisa e a criança precisasse chamar os pais no trabalho, certamente ela morria, pois o telefone fixo daquela época tinha a eficiência de uma tartaruga manca. Conseguir sinal para discar já era um desafio, completar a ligação, o outro lado da linha não estar ocupado, alguém atender e alguém localizar seus pais era missão quase impossível.

A gente saía e não tinha como avisar se ia atrasar, se aconteceu algum impressivos, se precisava que fosse buscar mais cedo. Vinham te buscar X horas, em tal lugar e ponto final. Era um salto de fé. Qualquer fator que mudasse essa equação causava um desencontro e, certamente, um esporro e um castigo.

A gente teve que aprender a se planejar desde pequeno: naquele horário você tinha que estar naquele lugar, não tinha como mudar o plano. E nessa, mais de uma vez acabamos nos desencontrando (seja dos pais, seja dos amigos) e ficamos tomando chuva ou sol escaldante no quengo sem ter a quem recorrer. Hoje em dia nem cachorro é deixado nessa situação, sozinho, ao relento.

Bullying? Essa palavra nem existia, mas se existisse, seria para descrever a forma como nossos pais nos criavam: “se apanhar na rua e voltar chorando apanha novamente em casa” era mantra. Tratar medos ou fobias de forma traumática também: tem medo de aranha? Nada como pegar uma aranha e jogar dentro da sua blusa “para perder o medo”. Hoje os pais protegem os filhos se eles sofrem bullying na escola, nos anos 80 eram os pais que faziam bullying com os filhos.

Um parágrafo especial para o cigarro. Meus pais nunca fumaram, mas eu convivi com muitas pessoas que fumavam na época. Ninguém nem sonhava em “proteger” uma criança de cigarro. Se fumava em qualquer ambiente, inclusive fechado. Se fumava em avião. A pessoa ia na sua casa visitar seu bebê recém-nascido, acendia um cigarro e baforava no berço. Todos nós fomos fumantes passivos por uma década pois mesmo que nossos pais não fumassem, em tudo quanto é canto tinha gente fumando.

Criança dos anos 80 era exposta a tudo quanto é vírus e bactéria – e não apenas humanas. A gente ganhava uns pintinhos em feiras e aniversário que certamente não estavam vacinados contra todas as pestes aviárias. Levávamos esse pintinho para casa, que muitas vezes era um apartamento, e tínhamos contato diário com ele e com seus excrementos.

Só quando o pintinho crescia (a maioria morria) é que nossos pais se livravam dele com o clássico “ele foi para o sítio” ou “a mamãe dele veio buscá-lo”. O mesmo valia para hamster, preás, coelhos e outros pets: ninguém vacinava essas porras, a gente ganhava e levava para casa. Muito me admira que uma pandemia não tenha começado com quem teve infância nos anos 80.

Vocês acham que os brinquedos da década de 80 tinham sua segurança testada como tem hoje em dia? Não. Quem já perdeu um dente no Pogobol (seu ou do seu amigo) sabe muito bem que os brinquedos dos anos 80 eram projetados para provocar lesão corporal em crianças.

Quando não provocavam quedas ou fraturas, tinham peças pequenas facilmente engolíveis ou eram feitos de material tóxico. Uma vez eu lambi uma boneca da Moranguinho e tive diarreia por uma semana. Uma amiga teve que ser hospitalizada por comer aquele brilho labial de duas cores (vermelho e rosa) que vinha dentro de uma embalagem plástica que simulava um morango.

Não estou reclamando, os anos 80 nos fizeram fortes (e provavelmente radioativos também). Só não entendo como hoje, com todos os cuidados, com todas as informações, com toda a fiscalização, podem morrer mais crianças do que nos anos 80. Se essas crianças de hoje tivessem nascido naquela época, a humanidade estava extinta.

Para dizer que o mundo tá tão ruim que está com saudades dos anos 80, para dizer que é por isso que quem foi criança na década de 80 é maluco ou ainda para dizer que você sabe que a pandemia acabou quando tem texto de humor no Desfavor: sally@desfavor.com


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