Koko, a gorila.

Koko foi provavelmente a gorila real mais famosa da história. Nascida em 1971 num zoológico americano, viveu até os 46 anos de idade, falecendo em 2018. Seu passaporte para a fama foi a alegação de que seria capaz de se comunicar por meio da linguagem de sinais. Segundo sua tratadora, Francine Patterson, Koko entendia aproximadamente 2.000 palavras do inglês e seu vocabulário alcançava mais de 1.000 sinais. E foi essa informação que ficou com a maioria de nós… infelizmente, as coisas não eram bem assim.

Boa parte dos animais se comunicam de alguma forma sonora. Nós incluídos. Desde as vibrações de insetos, passando por cantos de pássaros, latidos, rugidos e até mesmo sonares de baleias, formas de interagir com outros animais à distância se provaram muito úteis no processo evolutivo. Vivemos num mundo cheio de sons por um motivo: animais eficientes em comunicação tendem a passar seus genes para frente.

Eu escrevo isso para não passar a impressão errada com a próxima frase: apesar de muitos animais de comunicarem, os seres humanos fazem isso num nível absurdamente mais complexo. É uma combinação de cérebro, músculos e cordas vocais extremamente adaptadas para a nossa forma de comunicação. Nem é tanto uma questão de inteligência pura, tem muito a ver com as possibilidades que nossos corpos têm.

Alguns pássaros conseguem emitir sons complexos, alguns primatas têm destreza para movimentos mais finos, vários animais têm inteligências avançadas, mas a combinação necessária para comunicação de altíssimo nível só nós temos. É importante ter isso em mente porque quando falamos de animais se comunicando com humanos, é mais ou menos como esperar que um bebê consiga dirigir um carro: não só não tem noção do que é aquilo, como o corpo dele não permite realizar as funções necessárias.

Voltemos para Koko: a gorila foi adotada por Francine Patterson quando ainda era muito pequena, e passou sua vida toda sob a tutela da pesquisadora. Patterson tinha uma fascinação com a ideia de comunicação entre humanos e primatas, e tomou como missão de vida cuidar de Koko enquanto ensinava a gorila a usar a linguagem de sinais. Com o passar dos anos, Patterson foi ensinando mais e mais sinais para Koko, e soltando vários materiais para a mídia de massa sugerindo que estava tendo sucesso na empreitada.

Koko foi exibida em diversos documentários e aparições midiáticas durante a vida, sempre num contexto de comunicação com seus tratadores. Francine Patterson jurava que a gorila não só entendia as palavras que ouvia de humanos, como conseguia responder de forma coerente com os sinais que aprendera. Nos vários vídeos disponibilizados por ela, Koko parece ser capaz de estabelecer uma forma de comunicação com pessoas, às vezes até explorando temas mais complexos como sentimentos e curiosidade sobre aspectos da vida humana.

Em 2015, gravou um vídeo para a COP 21, a conferência ambiental, onde dizia que a natureza era linda e que o ser humano era estúpido, que precisava proteger a Terra. Muita gente deve ter achado inspirador. Talvez até acreditado que um gorila tinha alguma noção sobre preservação ambiental, mas é evidente que não faz o menor sentido que o animal tenha sido capaz de formular esse discurso. No vídeo, fica claro que os inúmeros cortes e a falta de foco do animal não passam de um truque incentivado pelos tratadores.

Tudo bem, não estou aqui para ser Capitão Óbvio e tentar desmascarar um animal falando sobre aquecimento global. Só gente muito descompensada acreditaria nisso, mas o vídeo te dá toda a informação que você precisa enxergar para entender o ponto deste texto: Koko não é capaz de se comunicar com humanos em padrões humanos de comunicação. A gorila apenas aprendeu a fazer sinais, mas não tem os elementos necessários para sequer se aproximar da capacidade de uma criança humana nesse sentido.

Estudiosos de linguagem perceberam isso rapidamente: Koko faz sinais que podem ser interpretados como comunicação, mas não sugerem que o animal tenha desenvolvido qualquer capacidade de falar como uma pessoa. Animais podem ser inteligentes ao ponto de aprender truques, um cachorro entende que “senta” e “deita” são duas ações diferentes, mas ninguém (em sã consciência) presume que o animal seja capaz de ir além de fazer uma ação depois de ouvir um som.

E comunicação humana vai muito além de reação a sons. Mesmo crianças humanas muito novas começam a entender a lógica de como falamos: formam frases, entendem que tem que falar em turnos, fazem associações entre conceitos… todas as coisas que Koko nunca fez. Seus tratadores e defensores tem opiniões contrárias, é claro, mas não podemos esquecer que a sugestão da capacidade de comunicação do animal era literalmente o ganha-pão de Patterson e todo o time que vivia ao redor de Koko.

As frases atribuídas a Koko só parecem coerentes com uma grande dose de adaptação dos humanos ao seu redor. Não só a gorila não conseguia se manter num assunto por mais que um ou dois sinais, como muitas de suas sequências aleatórias de sinais eram interpretadas por uma boa vontade sem fim de Patterson.

Durante um bate papo online patrocinado pela AOL, usuários do serviço podiam fazer perguntas ao vivo para Koko, seus sinais eram digitados ao mesmo tempo que Patterson tentava interpretar. Koko não respondia nada com nada, mas isso não impedia a tratadora de tentar. Numa das respostas, Koko falou sobre mamilos, em inglês “nipple”. A pergunta não tinha absolutamente nada a ver com mamilos. Patterson reagiu rapidamente: disse que Koko esqueceu a palavra para pessoa, “people”, e substituiu por uma palavra que rimava. Se trocasse mamilo por pessoa, a frase fazia algum sentido!

Navalha de Occam: o que é mais provável, que Koko tenha respondido com sinais aleatórios, ou que tenha pensado na rima sonora de uma palavra para substituir uma palavra esquecida? Lembrando que Koko se comunica por sinais, não por sons. Em linguagem de sinais, rimas são baseadas em movimentos parecidos, não em sons parecidos. Não fazia nenhum sentido. Se fosse só dessa vez, vá lá, mas todos os exemplos de comunicação de Koko com Patterson tem esse componente interpretativo.

O estudo do vocabulário de Koko sugere que quase todos os sinais que usa são focados em desejos imediatos como comida ou socialização. As únicas sinalizações minimamente coerentes se referem a pedir comida ou carinho. Toda vez que Koko expressa algo além de “eu” e “comida” ou “afeto”, é muito aleatório. As pessoas que acreditam em sua capacidade de comunicação fazem o possível para tirar alguma lógica daquilo.

Mas tudo bem, ninguém disse que a gorila precisava ser erudita. De uma certa forma, usar “eu” e “comida” numa frase já é mais complexo do que um gato miando para pedir comida. Pelo menos significa que a ideia básica de comunicação humana entrou na cabeça do bicho, não?

Pois é…

Não, ainda não significa isso. Koko parece falhar em entender que está falando com alguém nos vídeos que foram disponibilizados. Alguns conceitos básicos como responder perguntas e entender que existem turnos numa conversa nunca são claramente visíveis no animal. Sim, Koko reconhece seres humanos e parece ser um bicho muito calmo e carinhoso, mas os sinais não parecem ser a forma como ela se expressa. Ela se concentra em objetos, não olha nos olhos, não… está na conversa. É algo que você percebe claramente que a tratadora incentiva Koko a fazer.

Se não tiver um humano impondo uma conversa, Koko não conversa. Porque não passa pela cabeça do bicho esse tipo de interação. O cão late para você por diversos motivos, até olha nos seus olhos para tentar entender o que te interessa, mas não está desenvolvendo um assunto, está chamando atenção porque quer algo do humano, ou mesmo porque fica feliz quando o humano está prestando atenção nele. Koko nem isso parece ter. O animal quase sempre parece estar na dele, num mundinho que humanos tentam entrar de tempos em tempos.

Koko, muito bacana, entretêm o ser humano. Mas é óbvio no material divulgado que a comunicação não é o verdadeiro foco do bicho. E falando em material divulgado, um fator muito importante merece ser demonstrado: Patterson nunca divulgou material bruto de suas interações com Koko, seja em vídeo, seja nos dados que usou para basear seus estudos. São sempre versões muito editadas (como o vídeo da COP21) e conclusões de suas observações. Não exatamente o que configura método científico.

Outros estudos feitos com outros primatas, esses sim mais focados em apresentar resultados como eles são, demonstraram que sim, primatas avançados como chimpanzés, gorilas e orangotangos conseguem fazer sinais e dar provas impressionantes de inteligência, eles nunca apresentam os elementos básicos de comunicação humana. Um chimpanzé nunca vai começar uma conversa com uma pessoa, nunca vai ouvir o que ela tem pra falar antes de interromper, nunca vai “inventar” sinais novos para expressar coisas que não foram aprendidas, e mais importante e básico: nunca vai montar uma frase coerente que não envolva “eu” mais algum desejo básico. Todos os estudos independentes feitos sobre o tema sugerem a mesma coisa, que só humanos conseguem ser coerentes em linguagem humana.

Percebam que eu não estou querendo falar mal de Koko ou outros animais que aprenderam alguma forma de sinal ou som que fazemos. A gorila não pode ser criticada por não conseguir fazer algo literalmente impossível para ela. É a mesma coisa que ficar irritado com seu cachorro por ele não ter colocado a cerveja para gelar depois de você sair de casa. Koko parece ser um doce de bicho, é muito bonito que tenha aprendido alguns sinais, mas ir além disso é cair no mito criado por quem criou uma empresa ao redor dela.

Koko é um animal treinado para sustentar seus tratadores. Eu não vou ser histérico de afirmar que o bicho viveu uma vida ruim por não estar na floresta com outros gorilas, apesar de algumas sugestões que Patterson exagerou na sua obsessão com o animal e por vezes a fez sofrer para ensinar esses truques, 46 anos de casa, comida e atenção para um bicho que passaria aperto na natureza até que não é tão ruim. Pra complexidade mental de um gorila, duvido que tenha sido uma vida sofrida. Muito pelo contrário.

Mas, que fique claro, sem o rigor necessário do método científico no material divulgado pela sua tratadora, Koko está muito mais para animal de circo do que objeto de estudo. Talvez a ilusão de que Koko realmente sabia falar e tinha um Q.I. altíssimo para um animal irracional gere alguma satisfação em algumas pessoas, mas eu duvido que isso compense o problema fundamental de humanizar quem não é humano.

Koko foi muito usada como exemplo de como não somos tão diferentes assim, mas a verdade é que somos. Mesmo que a diferença genética seja pequena, é suficiente para criar um abismo entre a capacidade intelectual de um ser humano e qualquer outro ser vivo na Terra. Sim, existem animais inteligentes, mas inteligentes dentro do contexto de inteligência dos outros animais que não o ser humano.

Eu falo brincando que animais tem inteligência equiparável a de uma criança pequena, talvez pare de fazer essa piada (é engraçado ver a cara dos pais quando eu digo isso de forma séria) porque muita gente parece achar que tem comparação direta. Não tem. Sou contra violência ou tortura contra animais, é claro, mas acho demência acreditar que nossos companheiros de planeta têm qualquer condição de comparação direta.

Koko foi um animal fascinante, mas não sabia falar. Ela nunca teve sequer a chance de falar, e salvo uma surpresa enorme, não é provável que nenhum outro animal chegue sequer perto disso nos próximos milhões de anos (sem intervenção humana genética ou robótica). Inteligência animal é inteligência animal, é outra categoria que não se mistura com a nossa. Não adianta forçar, nenhum bicho consegue fazer o que fazemos.

Podemos continuar gostando deles e fazendo o possível para tratar bem, mas sem ilusões: cada um na sua categoria. Trate bicho como bicho, eles merecem essa bondade.

Para dizer que eu estraguei seu dia, para dizer que nem sabia que esse bicho existiu, ou mesmo para dizer que ainda acha Koko mais inteligente que muito humano: somir@desfavor.com

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Comments (22)

      • Sim, esse mesmo. O que gostei foi que não assume posições nem defende o que não é 100% atestável, e ainda mantém a linha de que não desmerece formas de comunicação diferentes, mas que nossa comunicação é diferente e isso deve ser percebido.

        Isso ficou bem claro no meio do seu texto, por isso quis comentar.

        • Sim, muito bem pesquisado, eu consegui ir ver as fontes e ter noção de um monte de coisa. E não é histérico em nenhum momento, eu só tirei um pouco o pé na parte dos maus tratos à Koko, porque achei que aí era mais opinativo da parte dele.

          Tem muita gente bacana fazendo vídeos no YouTube, não à toa, eu resolvi assinar o Curiosity Stream e o Nebula. Assim eu ajudo os que eu gosto sem ter dor no coração por ficar com o AdBlock ligado!

  • Eu fico muito feliz dos animais serem como são . Ser base da pirâmide seria mais difícil ainda se eles conseguissem se organizar pra dar o troco.

  • Animais aprendem por condicionamento, eles só respondem aos estímulos repetitivos em troca de algo, geralmente comida. Deve ser um tipo de inteligência, mas não é como a nossa. Acho que seria mais fácil se a Koko tivesse sido treinada pra jogar pedras em imagens. De um lado, uma foto de uma floresta em chamas, no outro, uma floresta intacta. Então ela jogava a pedra na foto ruim, deixando a mensagem de “revolta com a destruição da terra”, ou algo assim. Melhor do que dizer que ela elaborou um discurso.

  • O tema é fascinante, eu fiquei com vontade de escrever um monte, mas tá um calor do cão aqui e eu tô com uma preguiça desgraçada. Sugestão de continuação do tema: arte feita por animais.

  • Não conheço essa pesquisadora. Não sei como é sua vida. Mas não me surpreenderia se descobrisse que é péssima se comunicando com outros humanos.

  • Os “pais de pets”, os quais desprezo, sempre afirmam que seus bichos entendem o que falam.
    Pra mim, são uns complexados que desabafam com bichos que olham fixamente para eles esperando qualquer guloseima.
    Enfim, que se danem.
    Mas lembrei do hilário camarada que foi o “tradutor” de libras no enterro do Mandela.
    Quando tomarmos o Suriname, sugiro busto com o gesto imortalizado do “Dr. Evil”, em praça pública.
    Eu fico imaginando, os surdos/mudos “gritando” indignados!
    Em tradução livre: “APÊÔ! APÊÔ! PÊ! PÊ! APÊÔ!”

    • Cães entendem um vocabulário limitado. Obviamente um cão não vai entender um complexo desabafo pelos sobre os sentimentos de seu tutor, mas determinadas palavras ele entende sim.

    • Tenho gatos. Amo. Mas eles não entendem tudo. Reconhecem o próprio nome, e é mais pelo tom com que você fala com eles que pelas palavras que eles entendem o que você quer. Você pode discorrer sobre física quântica, que nenhum reage, mas a hora que você chama ‘comida!’, misteriosamente todos aparecem. Eles associaram esse grunhido grotesco vindo do humano com quem morar à aparição de alimento fresco. Não quer dizer que entendam a palavra.

    • Também não suporto esses pais de pet que acham que o cachorro entende tudo que eles falam. Haja paciência pra lidar com tanta carência e ainda mal projetada.

  • Texto muito esclarecedor, Somir. Fazendo sinais para a tratadora, a gorila realmente demonstra certos traços de inteligência que são sim impressionantes, mas daí a a conseguir manter uma conversa de verdade, racional e coerente com um ser humano vai uma distância bem grande. Por enquanto, a proeza de se expressar através de linguagens complexas sobre algo mais que os meros desejos e instintos mais primais ainda é exclusividade do Homo Sapiens.

    • Pois é, Koko era uma gorila muito inteligente. Isso ninguém pode tirar dela. Mas, uma… gorila… inteligente. Ser humano vem de fábrica com mania de humanizar tudo o que vê pela frente.

    • Se fosse um Processa Eu!, seria sobre a tratadora… uma das versões mais hardcore de “mãe de pet” que já vimos.

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