Incognoscível.
Incognoscível. Talvez você não conheça essa palavra. Ela é de difícil explicação, mas vale a pena fazer um esforço e tentar entender o que ela tem a dizer, pois seu conceito é capaz de ampliar ou melhorar sua visão de mundo.
Apenas para fins didáticos, vamos classificar o conhecimento da seguinte forma: 1) Existem as coisas que você conhece e sabe que conhece (por exemplo, você sabe o endereço da sua casa); 2) Existem as coisas que você conhece mas não sabe que conhece (informações que estão no seu inconsciente); 3) Existem as coisas que você não conhece, mas tem capacidade de conhecer (por exemplo, um novo idioma) e, por fim, 4) Existem as coisas que você não conhece, nem tem capacidade para conhecer ou compreender. Estas últimas são as chamadas Incognoscíveis.
“Mas Sally, como assim, você está me chamando de burro?”. Não. O Incognoscível não pode ser compreendido por nenhum ser humano, não por burrice, mas por nos faltarem as ferramentas para isso: desde um sistema de pensamento capaz de entender, até um cérebro que consiga abarcar esse conhecimento. Pois é, não somos capazes de compreender tudo. Estando nesta forma humana atual, nossas capacidades são limitadas pelo nosso corpo.
Assim como meu corpo me limita na força (eu não consigo levantar 100kg mesmo que me esforce muito), meu cérebro limita minha cognição à sua capacidade de processar, compreender e armazenar. Por mais que se treine o cérebro, por melhor que ele seja, tudo aquilo que é físico tem um limite. Pode ser que, em outras condições, como no caso de uma junção de humanos com robótica ou em qualquer outra situação em que se possa cogitar vida inteligente sem os limites de um corpo, possamos compreender o Incognoscível. Por hora, não.
Pego emprestado um exemplo usado pelo Murilo Gun para explicar o Incognoscível: vamos pensar na sombra da sua mão como um ser pensante. Ela é uma sombra, que vive no mundo das sombras e conhece todas as outras sombras. Ela sabe o que é a sombra de um gato, a sombra de uma bola, a sombra de um guarda-chuva. Talvez, existam sombras muito inteligentes e estudiosas que conheçam mais ainda: sabem dizer o tipo de flor por sua sombra, o modelo de cada carro ou até a raça de cada cão, com base em suas sombras.
Mas, por mais estudiosa, inteligente e esforçada que uma sombra seja, ela é uma sombra. O mundo dela é um mundo de duas dimensões. Como explicar para a sombra da sua mão o que é a sua mão? A sombra vive em mundo de duas dimensões, ela nunca viu ou concebeu nenhuma imagem em 3 dimensões, ela nunca viu cores, ela nunca viu uma mão como ela realmente é – ou melhor, como nós achamos que ela realmente é.
Não é possível explicar com palavras a uma sombra o que é uma mão. Por mais que ela esteja atrelada à mão e conviva com ela a vida toda, ela não tem as ferramentas, referências e inputs necessários para compreender o conceito de uma mão.
Assim como a sombra não consegue compreender o conceito de mão, nem ao menos cogitá-lo, nós também temos incapacidades de ver e compreender coisas que, de tão profundas, diferentes ou complexas, não conseguimos cogitar, mensurar ou compreender. É o Incognoscível.
E, se não temos a menor ideia de que elas existem e não temos sequer ferramentas para começar a tentar supor o que são, por qual motivo o Incognoscível é importante? Simples: saber que ele existe.
Saber que ele existe implica em uma série de desdobramentos, por exemplo, saber que o que você vê pode não corresponder ao que realmente é. Saber que muita coisa pode estar lá e você não ter condição de perceber, ver ou ouvir.
E o fato de você não conseguir perceber não faz com que a coisa não esteja lá. Apitos para cães fazem sons, é um fato comprovado, mas nós, humanos, não conseguimos ouvi-los. Ainda assim, os apitos estão lá e continuam emitindo sons.
Em resumo, o grande ganho de fazer as pazes com o Incognoscível é saber que muita coisa pode ter uma explicação que nós nunca vamos conseguir alcançar. Esse conhecimento serve para parar de tentar encaixar explicações em tudo e admitir que algumas coisas ficarão inexplicadas. E esse mindset de não precisar explicar tudo e de conviver com o desconhecido liberta.
Ao compreender e aceitar a existência do Incognoscível e, por consequência se libertar das amarras dessa falsa sensação de controle de saber tudo, de ter resposta para tudo, de tentar explicar tudo, você fica muito menos propenso a cair em armadilhas, estelionatos e mentiras.
Existem coisas que nem você, nem eu, nem nenhum outro ser humano vai conseguir compreender ou explicar – e nem por isso são coisas que não existem. A resposta para qualquer pergunta sobre elas é: não sabemos e nunca vamos saber, ao menos enquanto estivermos por aqui.
“Mas Sally, se eu não consigo compreender nem explicar, então essa coisa simplesmente não existe na minha realidade, pare de me fazer perder tempo!”. Ah existe. Sua realidade não é composta apenas do racional, apenas do tangível, apenas do concreto. O Incognoscível não pode ser compreendido nem explicado, mas ele pode ser sentido.
O ser humano nunca foi muito bom em lidar com o que ele não pode compreender ou explicar. Ele TEM QUE compreender, é um vício. Pega, distorce, supõe, adapta, faz uma tremenda ginástica argumentativa, mas ele dá seu jeito de explicar qualquer coisa, para se sentir mais seguro, para ter uma ilusão de controle.
Se eu sinto, se isso se faz presente na minha realidade, TEM QUE ter uma explicação – e eu vou aderir a aquela explicação que me apresentar a alegoria que mais me agrada: espíritos, alienígenas, mediunidade, karma, orixás.
A maior parte das pessoas, diante do Incognoscível, diviniza. É um “ato de Deus” (ou Maomé, ou Buda, ou Iemanjá, ou de um Espírito, de um Unicórnio Mágico ou de qualquer outra alegoria que você queira escolher para essa reação infantil). É algo paranormal, extraordinário, mágico.
E isso é bem perigoso, pois com os mitos, com os deuses, vem toda a alegoria religiosa junto: não pode fazer isso ou vai ao inferno, tem que se foder feliz pois está resgatando karma, tem que pagar dízimo, não pode comer carne, tem que vestir branco ou quantas outras palhaçadas vocês queiram citar.
Obviamente, isso é ruim, pois, entre outras coisas, limita e te faz presa fácil de qualquer malandro que pense em uma alegoria bonita, que combine com suas crenças, para explicar o que você sentiu. Você vira um personagem do Mito da Caverna de Platão, vivendo com a certeza de que uma explicação errada é a verdade.
Admitir a existência do Incognoscível te liberta dessa estrutura de pensamento medíocre e te permite sentir algo, perceber algo, presenciar algo sem ter que encontrar explicação para que isso se torne real. Te permite respirar fundo e dizer “eu não sei, eu não tenho explicação, eu posso nunca ter explicação para isso, pois existem coisas para as quais eu não estou aparelhado para entender, e, ainda assim, eu sei que isso existe”.
Não é mais lógico reconhecer que não sabe o que é, que não compreende o que é e que é totalmente possível que nunca compreenda por não estar em condições físicas e mentais de entender?
Quando você aceita o Incognoscível, faz as pazes com ele, você pode olhar para o que realmente importa: a sensação que aquilo te provoca, independente de explicação – e tirar o melhor proveito dela. Em última instância, é isso que importa: a sensação, não a classificação que nossas pequenas mentes limitadas querem dar a aquilo.
O racional é importante para viver no mundo em que a gente vive. Mas não é o único guia. Suas sensações, seus pressentimentos, suas emoções, também são guias válidos. “Mas Sally se eu fizer só o que minhas emoções mandam estou ferrado!”. Sim, concordo plenamente. Falta de equilíbrio é nociva. Então, em contrapartida, se você fizer só o que o racional manda, também está ferrado, pois continuará em desequilíbrio.
Quando se tenta racionalizar e explicar o Incognoscível se gera esse desequilíbrio: é algo para ser tratado no campo do emocional e a gente tenta encaixar à força no campo do racional. Se você tomar decisões que deveriam ser racionais pela emoção o resultado não será bom. Se você tomar decisões racionais em assuntos onde a emoção deveria te guiar o resultado não será bom. Nossas sensações internas são um GPS importante, que insistimos em ignorar.
E por qual motivo ignoramos? Por não saber usá-lo, por depender de explicação racional para usar toda e qualquer ferramenta que temos. Desde pequeno te ensinam na escola a usar muito bem o racional. É nisso que somos bons. Dificilmente você dedica o mesmo tempo de sua vida que dedicou para treinar seu racional para treinar seu emocional. Sem treino, não fazemos nada direito. Assim, quando usamos o emocional, usamos mal, usamos errado, interpretamos errado. Não pelo emocional ser imprestável, mas por não saber usá-lo.
Então, a partir do momento em que você abraça o conceito do Incognoscível e aceita que o racional não resolve tudo, você pode começar a trabalhar a parte do sentir e observar quando ela se mostra um bom guia e quando não. Em algum tempo, você vai aprender quando escutar e como funciona. E certamente vai se poupar de muitas furadas, como religiões, mitos e outras babaquices que tentam explicar o Incognoscível, passando a aproveitar a única coisa importante desta categoria: a sensação que isso te desperta.
Chico Xavier falava com um espírito chamado Emmanuel que já havia vivido na Terra? Provavelmente não. Mas o que ele diz ressoa em você? Pega o que ele diz e aceita que o lugar de onde isso vem é Incognoscível. Bashar é mesmo um extraterrestre que fala pelo corpo de Darryl Anka? Provavelmente não. Mas o que ele diz ressoa em você? Pega o que ele diz e aceita que o lugar de onde isso vem é Incognoscível. Estamos perdendo a essência da coisa por pensar demais na sua forma.
O que quero dizer é: você pode aproveitar a essência de algo, a sensação que desperta em você, como isso ressoa em você, sem que, para isso, precise explicar o que é, de onde vem e como se faz. Você pode se beneficiar de algo que te faça bem sem compreender ou explicar o que isso é e como isso funciona em você. Te faz bem? Aceita e incorpora na sua vida, sem a preocupação de classificar ou explicar.
“Se existe vida alienígena, por qual motivo eles ainda não foram vistos ou fizeram contato?”. Incognoscível. Talvez eles falem com a gente e nós não tenhamos a capacidade de escutar, assim como o apito para cães. Talvez eles estejam na sua frente e você não tenha a capacidade de ver. “Se existe vida após a morte por qual motivo eu não consigo falar com uma pessoa que morreu?”. Incognoscível. “Se existe Deus por qual motivo acontecem desgraças no mundo?”. Incognoscível. “Se o Pato Donald não usa calças, por qual motivo ele enrola a toalha na cintura quando sai do banho?”. Incognoscível.
Pare de racionalizar tudo, abrace o Incognoscível, e use esse tempo que você gastava em racionalização para treinar o seu emocional. Você também pode encontrar boas respostas nele.
Para dizer que não sabia que isso aqui tinha virado um blog hippie, para dizer que Somir e eu somos Incognoscíveis ou ainda para dizer que não tem tempo nem para almoçar muito menos para treinar o seu emocional: sally@desfavor.com
Desfavores relacionados:
Etiquetas: autoconhecimento, emocional, racional
Anônimo
Posso fazer um off? Li a notícia agora e não resisti. Olha só a cria da Sally:
https://odia.ig.com.br/brasil/2022/02/6329206-homem-e-amarrado-pela-esposa-e-levado-para-tomar-vacina-contra-a-covid-19.html
Pode me mandar meia hora de bunda.
Somir
Baseada!
Ge
Quase que um texto sobre epistemologia no desfavor, adoro! Uma das áreas da filosofia que mais me interesso!
Esse texto deveria viralizar, só acho, afinal, o que tem de gente aí querendo explicar tudo pela via da racionalidade não tá escrito. Até eu caio nessa as vezes.
Mais do que isso, é irritante também outras pessoas extremistas que chegam a romper com a realidade por acreditar deveras em misticismos baratos e fundamentar aquilo que deveria ser incognicivel como algo estritamente cognitivo.
Sally
Ou pior: vai ter burro entendendo que este texto é um convite a deixar o racional de lado. As pessoas não estão prontas para essa conversa.
Ana
Ótimo texto. Outro que salvei aos meus favoritos e consultarei regularmente para fins de aprimoramento pessoal.
Sally
Que bom, Ana. Espero que ele te ajude e que você possa levar essa reflexão, com as suas palavras, para outras pessoas, ajudando-as a abrir a mente!
Anônimo
Desculpa, eu não consigo ver o Demoji de meia hora se clickar nele. Incognoscível.? Falta de sexo? transtorno? Depravação? Sexta no Globo repórter.
Incognoscível. – Clinic Eye
[…] source https://www.desfavor.com/blog/2022/02/incognoscivel/ […]