Conservando o silêncio.

Lula não se aguentou: abordou um tema. Foi lá e falou de aborto para gerar inúmeras “notícias” e reações do grande público. Por mais que tratar aborto como questão de saúde pública seja algo com o qual eu concorde, porque de fato é onde causa mais problemas sociais, nem é sobre o assunto em si, é sobre a importância dada a falar sobre ele.

Eu já tinha falado sábado passado sobre como eleições viraram grandes votações de eliminação do BBB: junte uma torcida grande e se segure para não falar uma besteira. Ninguém está preocupado com o que você vai ou não vai fazer quando eleito, é sobre o impulso do momento do voto. Ou vão com sua cara ou não vão. Lula provavelmente perdeu mais votos que ganhou falando sobre aborto num contexto que não seja absolutamente retardado.

Mas no meio dessa confusão, eu comecei a ver um padrão entre opiniões de esquerda e direita brasileiras, talvez até mundiais: de um lado a esquerda (de costumes) quer mexer na forma como vivemos sem perguntar pra ninguém se faz sentido, de outro a direita (de costumes) tapou os ouvidos e se recusa a sequer discutir qualquer coisa. Em tese os dois lados deveriam debater e achar pontos comuns, mas na prática virou uma disputa para ver quem ignora mais o outro lado.

Não sei quem começou a briga, não estou disposto a decidir o mérito de cada lado, só estou pensando no seguinte: o que se passa por progressismo e conservadorismo atualmente parece cada vez menos com argumentos sobre o funcionamento da sociedade. Bolsonaro não deve ter a menor ideia do que fez, mas sem querer acertou no alvo sobre como o brasileiro médio queria ver a sociedade em que vivia: de longe.

Explico: o conservadorismo atual parece muito mais interessado em travar qualquer discussão do que realmente conservar algum valor. Não é como se fôssemos uma sociedade casta e virtuosa, não? Conservar os valores de engravidar aos 13 anos de idade e de ter cinco passagens pela polícia antes de completar o ensino médio? Manter a longa tradição brasileira de esgoto ao céu aberto? Ou defender a beleza de construções clandestinas feitas em terrenos perigosos depois de subornar um funcionário público?

Para quem quer conservar, o Brasil parece um lugar no mínimo bizarro para fazer isso. São séculos atrás da curva, um monte de erros absurdos e uma colonização desastrosa. Mas o pobre brasileiro gostou dessa coisa do conservadorismo! Sim, as igrejas, especialmente as evangélicas, botam lenha nessa fogueira todos os dias, mas será que o país do travesti, da bunda e da caipirinha tem toda essa tradição cristã? Mesmo?

Então, eu comecei a enxergar um padrão de não-discussão: qual é a questão do brasileiro médio com sexualidade? Não pode falar disso para as crianças! Qual é o problema com a criminalidade? Não quero falar sobre direitos humanos de quem é bandido! E sobre educação e cultura? Não quero ficar discutindo sobre problemas históricos!

Não tem uma linha comum aí? O discurso do bolsonarismo não é muito sobre o que o brasileiro faz bem e deve ser mantido, é sobre não querer que fiquem remexendo em coisas que o povo não quer discutir. No final das contas, é bater o pé que a forma como vivemos está certa e não tem que ficar bagunçando as coisas. Mas o engraçado é… que ninguém parece satisfeito com o jeito que o mundo está.

Eu estou mantendo a esquerda (de costumes) de fora até aqui porque já temos muitos textos batendo em lacração e histeria, que ao invés de trazer a discussão até o cidadão comum, o demoniza de cima de um pedestal. Vamos olhar para o lado mais ignorado: o fascinante pobre conservador. Quem está com dificuldades de se manter financeiramente, vive em condições precárias e é ameaçado pela violência urbana diariamente deveria estar louco para virar tudo de ponta cabeça e começar de novo, certo? Bom, aparentemente não. Os países mais liberais nas pautas de costumes e mudanças sociais são justamente os mais ricos.

Por muito tempo eu achei que isso se explicava apenas por melhores condições de vida e mais educação: quem não está desesperado e entende melhor como as coisas funcionam está sempre mais aberto a tentar coisas novas. Quem já está apertado e não tem condições de entender discussões políticas ou sociais tende a ter muito medo de mexer em qualquer aspecto da sua vida. Oras, a pessoa bem de vida pode lidar com um problema ou outro a mais para um futuro melhor. A pessoa que já está com dificuldade para se alimentar hoje não tem margem nenhuma para arriscar.

E por muito tempo também, eu parei aí. O conservador pobre, vulgo a pessoa que se escandaliza com o Lula falando de aborto (e ele é um merda por dizer que era contra cinco minutos depois por medo de perder votos), pode estar exibindo outros sintomas além de medo de perder o pouco que tem. Nem tudo nessa vida é economia, o ser humano é movido por emoções.

E se a esquerda de costumes conseguiu fazer uma coisa com eficiência, foi mexer com as emoções do cidadão médio: não importa o quão progressista você se ache, sempre vai ter algo que está fazendo errado. Você vai ser tratado como um monstro por boa parte das coisas que achava natural fazer até então. A trupe da vergonha e do cancelamento vem com força para cima de qualquer pessoa que… dê atenção para elas.

Muita atenção nisso: os lacradores têm muito poder sobre quem quer agradar os lacradores. Mas são basicamente inúteis contra quem se posiciona contra eles. É só ver o que acontece no Brasil, um mandato quase inteiro do Bolsonaro e ele está aí falando o que quer dia sim, dia também. Seus seguidores fazem e falam coisas que arrepiam todos os progressistas e quase não tem problemas por causa disso. É um ou outro expoente que se ferra por causa de um escândalo, e sempre porque fizeram alguma bobagem enorme, não por suas opiniões políticas.

O bolsonarismo é só o nome que se dá a esse movimento no Brasil, nos EUA podem chamar de trumpismo, na Hungria de orbanismo… é um movimento global de proteção contra um grupo cada vez mais influente dos lacradores digitais. Se você entrar no bunker da “direita” (bolsonarismo tem pouco ou nada de direita econômica), esse povo raivoso que te chama de machista, racista e tudo mais perde quase todo o poder sobre você. Só sofre mesmo quem dá atenção para os problematizadores profissionais.

Tem um motivo para os candidatos estarem tão preocupados em não se posicionar politicamente além de “ser contra o outro”: a discussão do Século XXI está quebrada. Ou você está no ataque, ou está na defesa. Ou você bate, ou você apanha. O tema da discussão é totalmente secundário. Vai dizer que o brasileiro médio pensou mais que dois segundos sobre aborto? Que é contra, mas que não manda a mulher abortar escondida? O que o pobre conservador quer é não ter que lidar com o problema.

E de uma certa forma, sociedades como a brasileira se especializaram em não olhar para os problemas. Vamos empurrando com a barriga, torcendo para não dar muito errado. E se der, a culpa é sempre do outro. Eu acabo enxergando a discussão política no país como duas pessoas sem inteligência emocional nenhuma brigando na rua: um lado reclama sem querer olhar para o próprio umbigo, o outro se sente ofendidíssimo por ser criticado e tenta matar a discussão.

Ninguém sabe como desenvolver a conversa, então é mais ou menos como quando você tem que apontar um erro de uma pessoa chata e insegura: ela leva para o lado pessoal, ela faz drama, chantageia, ameaça, faz tudo menos olhar para o que fez e assumir responsabilidade. Tem que fazer um malabarismo enorme para dizer as coisas de um jeito que não ofenda a pessoa, e isso dá um trabalho enorme, além de exigir capacidade de se articular e empatia para ler o outro. Coisas que praticamente ninguém é ensinado a fazer em casa ou estimulado a desenvolver durante a vida.

Quando eu vejo esquerda e direita lutando, são dois grupos na defensiva, morrendo de medo de confrontar seus defeitos, tapando os ouvidos enquanto o outro fala e achando que falar mais alto melhora o nível de seu argumento. E quem for otário de jogar um tema para discussão entre os dois vai apanhar dos dois lados. Não é à toa que os fanáticos dos dois lados odeiam “isentões”: quando você tenta achar o meio termo, coloca o frágil ego deles em xeque.

No final das contas, parece que é só aquele medo de estar errado e se sentir um idiota por ter sido tão radical. O liberal intolerante e o pobre conservador… esses seres fascinantes da política moderna. Ambos morrendo de medo da discussão ficar séria de verdade.

A gente poderia discutir mil coisas sobre o aborto, mas o perigo de tocar no assunto não deveria ser uma delas.

Para dizer que eu sou isentão, comunista e fascista ao mesmo tempo, para dizer que deveriam fazer a eleição no formato de BBB, ou mesmo para dizer que sua política é sair do país: somir@desfavor.com

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Comments (10)

  • Me chame de babaca, do que quiser, mas parei de me importar com esse “brasileiro real”, mal vejo eles como seres humanos. Vai chegar 2100 e esse povo ainda vai estar trocando voto por caminhão-pipa e asfalto na rua de merda deles e ainda acham que é um favor que o político fez. Cidades, vilarejos, comunidades que já existem há uns 300 anos e a maioria da população ainda é analfabeta e não tem esgoto tratado. Não se organizam, não se revoltam, não inventam. Esse povo não tem a menor condição de formar uma sociedade, uma civilização, uma cultura.

    • Mas aí não entra um ciclo vicioso? O povo não se revolta porque acredita que tudo é assim mesmo, e quando pensam em falar alguma coisa, tomam porrada de todos os lados? Parece vantajoso para quem está no poder que discussão política seja tão difícil de fazer.

  • Fanáticos dos dois lados me chamam de isentão quando eu estou apenas tentando ser ponderado. Mas que se foda. Já cansei de tentar falar com quem não quer ouvir.

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