Está escrito?

O mundo está cada vez mais digital, e a comunicação cada vez mais relegada às interfaces de computadores. Sally e Somir discordam sobre como uma forma de comunicação que todos aprendemos na mais tenra infância ainda impacta nossa percepção sobre as pessoas. Os impopulares, por falta de alternativas, digitam suas respostas.

Tema de hoje: letra feia deve depor contra a pessoa?

SOMIR

Não. Por mais que eu já tenha sofrido para entender o que outras pessoas escrevem, não dá mais para analisar uma pessoa pela sua caligrafia. A era da escrita manual já passou, gostemos desse fato ou não. Se estivéssemos no século passado, eu poderia até ter outra opinião, mas estamos em 2022, e as coisas já funcionam de outro jeito.

Eu tenho dois problemas com a ideia de julgar alguém pela sua escrita, uma mais ideológica, outra mais prática. Vamos começar com a praticidade: existem muitas pessoas no mundo que se dedicaram bastante à análise de padrões de escrita, são séculos, talvez milênios de conhecimento acumulado na área. Aparentemente, algumas características da personalidade de uma pessoa acabam impressas na forma como ela escreve.

E a ideia não é alienígena pra mim. Sim, faz todo sentido que o estado mental de uma pessoa influencie suas ações, escrever é traduzir ideias em palavras, algo que uma pessoa devidamente ensinada a escrever faz quase que no automático, dando uma boa janela de visibilidade sobre seu inconsciente. A escrita pode revelar mentes.

Porém, temos que entender o mundo no qual vivemos: com exceção dos primeiros anos de aprendizado, a maioria das pessoas não utiliza mais a escrita manual para se comunicar. E mesmo no caso de crianças, hoje em dia é mais uma forma de reforçar os símbolos de letras e palavras do que propriamente dar uma ferramenta de comunicação para ela. Se você tem qualquer contato com menores de 18 anos, sabe muito bem que seu smartphone ou tablet são extensões naturais de seus corpos.

Não é a mesma relação que nós, mais velhos, temos com tecnologia. Não é uma ferramenta para eles, é uma interface para a realidade. Eu não acho saudável, mas aceito que esse trem já partiu: vai ser assim que a maioria das crianças vai se desenvolver até alguma outra revolução tecnológica. Mas é importante também lembrar que as coisas não acontecem da noite para o dia: para as crianças de hoje terem essa relação simbiótica com computadores pessoais, seus pais e avós testaram as águas. Mesmo se você for bem mais velho, é provável que tenha se adaptado a comunicação escrita através de um teclado, faz tempo.

Eu falo disso porque comparo julgar uma pessoa pela sua escrita no século XXI quase a mesma coisa que julgar alguém do século XX pela sua habilidade de reconhecer plantas venenosas na floresta. O tempo passa e algumas habilidades vão ficando… velhas. Não quer dizer que não exista mérito em saber o que não consumir na floresta ou mesmo escrever de forma caprichosa e compreensível, mas quer dizer que no contexto do tempo atual, são coisas que não fazem mais parte da vida de uma pessoa.

E isso é muito importante na análise: como julgar alguém por algo que praticamente nunca faz, ou mesmo que faça, não é considerado mais importante na sociedade? É meio como colocar na prova uma pergunta sobre um tema que não foi ensinado na aula. Se você não sabia que precisava aprender algo, será que é justo te cobrar esse conhecimento? Eu não acho. O Século XXI não pede mais habilidade de escrita manual. Não é justo analisar uma pessoa por uma habilidade que ela nem sabia que precisava ter. E francamente? Não precisa mais. Menos de um milésimo da sua comunicação escrita na vida vai ser na base da caligrafia, pra quê treinar? Você treina o jogo de gamão na possibilidade remota de um entrevistador de emprego te cobrar isso na entrevista? Não, né?

Caligrafia virou mais ou menos o que o desenho se tornou. Antes de termos fotos, desenhistas eram essenciais na comunicação humana. Depois delas, acabou se tornando muito mais uma arte do que propriamente uma ferramenta de descrição do mundo. Você faz tudo o que a caligrafia permitia com um celular ou um computador, e celulares e computadores estão em todos os lugares.

Além disso, tem o elemento mais ideológico: o ser humano é tarado por um atalho para conhecer o outro. Sim, existem boas ferramentas de análise do ser humano baseadas em movimentos ou expressões, mas não vamos misturar demais as coisas, só existe uma forma de conhecer uma pessoa de verdade, e ela se chama convivência. Todo o resto são aproximações com alto potencial de imprecisão. Você pode depreender algumas coisas de uma pessoa analisando sua caligrafia, mas existem fatores como contexto, estado emocional, ferramentas disponíveis… muitas coisas podem poluir seu resultado. Tanto que salvo engano, boa parte dessas ciências de análise “secundária” do ser humano estão sendo relegadas à pseudociência com o passar dos anos.

No começo do século passado, Frenologia era uma ciência respeitada. A análise do ser humano a partir do formato de seu crânio. Muitos livros foram escritos, com imensa profundidade, vários especialistas se formaram e apresentaram pesquisas em revistas e jornais científicos de respeito. Até as pessoas começarem a perceber que na hora do vamos ver, não tinha muita lógica. Não dá para saber a personalidade de alguém pelo formato do crânio. Talvez a análise da escrita seja mais sólida, mas mesmo assim parte desse princípio que eu considero furado: conhecer o ser humano por atalhos e generalizações.

Quem escreve bonito pode ser um narcisista, pode ser alguém que gosta de fazer as coisas no capricho, mas pode ser alguém inseguro tentando se mostrar melhor do que é. Quem escreve feio pode ser alguém sem vaidade, alguém que não tem treino, que sente dor no braço, que não se importa com quem lê… e no minuto seguinte qualquer fator externo pode mudar o que a pessoa está fazendo e te jogar no sentido oposto. É a mesma coisa que eu penso dos testes de polígrafo: se o resultado pode mudar por motivos aleatórios fora do controle de quem testa ou mesmo pode ser falsificado por quem conhece os fatores analisados, não serve pra quase nada na vida real. Gente que sabe desenhar simula qualquer resultado que quiser numa análise de caligrafia.

Infelizmente o ser humano tende a ser uma caixinha de surpresas, e você só vai saber como a pessoa realmente é depois de muita atenção e convivência. Não tem atalho não.

Para dizer que finalmente alguém declarou a hora da morte da escrita manual, para dizer que eu devo ter preguiça de escrever, ou mesmo para dizer que aposta que meu crânio deve ser todo torto: somir@desfavor.com

SALLY

Uma letra feia deve depor contra a pessoa?
Sim. No mínimo, essa pessoa nunca se esforçou para ter uma caligrafia legível, o que mostra algum desprezo pela excelência no que se faz.

Eu não peço que a pessoa escreva com uma letra linda, simétrica, perfeita. Minha própria letra não é essa belezura toda não. Mas porra, é possível entender o que eu escrevo. Cumpre sua missão de comunicação. Escrever com uma letra tenebrosa que ninguém entende é o mesmo que não saber escrever.

Obviamente não estamos falando de pessoas que não tiveram oportunidade e, por isso, não puderam desenvolver uma escrita melhor. Estamos falando de pessoas que tiveram toda a oportunidade e, ainda assim, escrevem como uma criança de 6 anos destra escreveria se usasse a mão esquerda.

Eu sei que o mundo é digital e bla bla bla, mas, existem situações na vida onde é preciso usar a escrita manual. Por sinal, todo o sistema educacional brasileiro se baseia nisso: você faz as provas da escola à mão, faz o ENEM à mão e faz o vestibular à mão. Então, no barato, a pessoa teve aí uns dez aninhos para aprender a escrever legível, apresentável, de forma humanamente compreensível.

Tem um componente de arrogância em quem escreve com letra horrorosa: se vira aí para entender. Novidade: você não é tão importante. Ninguém tem que se virar para entender o que você escreve. Se você não escreve de forma compreensível, eu (e boa parte das pessoas) acho que você tem um problema, que isso é, de alguma forma, um sintoma.

São pouco mais de 30 letras, não é tão difícil, não é mesmo? Ainda mais hoje em dia, onde exercícios de caligrafia podem ser obtidos de forma gratuita online, impressos e feitos em casa. Ter uma letra merda e não ter vergonha disso é uma inadequação, pois o mínimo que se espera de um adultinho funcional é que ele saiba se comunicar por escrito sem depender de uma máquina.

Se você é muito jovem, vai achar que não, mas eu te asseguro que a vida adulta tem muitos momentos em que demandam escrita manual. Repito, não estou exigindo uma letra bonita, a minha letra nem é bonita, estou exigindo uma letra que não seja horrorosa, que seja funcional, que mostre que você é capaz de reproduzir um símbolo que treinou por mais de dez anos.

Não é à toa que é possível avaliar muito da pessoa por sua caligrafia. A escrita é usada, entre outras coisas, para exames psicotécnicos, obrigatórios para conseguir alguns documentos (como carteira de motorista) ou até para ocupar alguns cargos ou desempenhar certos trabalhos ou funções. Independente de te julgarem ou não pela sua escrita, ela reproduz muito do que está dentro de você, da atual condição da sua mente. Se está uma zona, feia, incompreensível, é sintoma.

E é nesse sentido, de ser um alerta sobre o que se passa dentro da pessoa, que eu acho que uma letra feia depõe contra a pessoa sim, pois mostra que a mente também está bagunçada, incompreensível ou caótica. E a pessoa não tem qualquer entendimento, discernimento ou intenção de corrigir isso, muito pelo contrário, deixa isso bem claro, no papel. Me parece inclusive um pedido de socorro, um adultinho que escreve com uma letra incompreensível, principalmente se ela é, de alguma forma, utilizada para o seu trabalho.

“Mas Sally, você está dizendo que todos os médicos são doentes da cabeça?”. Não, mas eu não acho essa afirmação de todo errada, a maioria é mesmo. Mas não pela letra, no caso dos médicos, eu acho que é mais o “foda-se, se vire para me entender, reles mortal” e sim por outras coisas.

Já vi casos de pessoas que morreram por doses incorretas aplicadas em hospitais, graças aos garranchos do médico no prontuário, então sim, eu acho que médico tem a obrigação de saber escreve de forma legível, tanto por indicar uma mente organizada como por questões práticas. Quem coloca o comodismo de escrever que nem a bunda acima da vida de um paciente está sim muito doente da cabeça.

E, já que é para dar a minha opinião, eu não acho que o grande problema seja ter a mente caótica, desorganizada ou com algum problema. Isso todos nós em algum momento da vida podemos passar. O problema é fazer as pazes com isso e expor essa questão não trabalhada para qualquer um que leia um bilhete escrito por você. Eu teria mais vergonha de deitar na lama e me acomodar nela do que de descobrir que estou em um chiqueiro.

“Mas eu não acho que se possa dizer nada sobre alguém com base na sua caligrafia”. Tá bom, senta lá. Contesta todos os peritos judiciais, os psicólogos e outra meia dúzia de categorias profissionais que discordam de você. Prova sua tese, publica um livro, refuta a tese deles. Aí você me diz o que pode e o que não pode se dizer sobre alguém com base na sua caligrafia.

O que você expressa fora é um sinal do que você tem dentro. Seu quarto, seu armário, sua roupa, sua casa, seu prato, sua sobremesa, tudo. A forma como você lida com tudo diz muito sobre o que está acontecendo dentro de você, na sua mente. A maioria das pessoas fica irritada ao ouvir isso, pois se sente vulnerável, sente que estão vendo coisas que ela queria esconder. A verdade, meus queridos, é que se o observador for bom, ninguém esconde porra nenhuma.

Tudo que você faz fala por você: as palavras que você escolhe, o tom que decide usar, o modo como comunica. E a caligrafia é apenas mais um entre os muitos fatores que indicam como está sua mente. Não dá para decretar nem diagnosticar nada com precisão apenas com base nisso, mas dá para saber um panorama geral.

Passar mais de dez anos escrevendo e sendo avaliado por essa escrita para chegar ao final disso sem ser capaz de desenhar uma letra que os outros seres humanos entendam, no meu ponto de vista, é uma falha. E não se importar com isso é uma falha ainda maior.

Para dizer que sua letra é feia e você está ofendido, para dizer indiretamente que sua letra é feia me ofendendo ou ainda para perguntar como é a letra do Somir (é linda): sally@desfavor.com

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Comments (12)

  • Minha letra é legível, mas também não é lá nenhuma lindeza. Modifiquei a minha caligrafia no colegial, para conseguir anotar tudo o que um professor passava de matéria. Era um volume grande de informação e, se eu continuasse escrevendo com letrinha cursiva desenhada, não conseguiria acompanhar. Passei então a escrever “à americana”: com uma “letra de fôrma” de poucos traços, mais ou menos como já tinha visto estudantes dos EUA tomando notas nas aulas e semelhante ao exemplo da imagem do link abaixo:

    https://media.npr.org/assets/img/2016/04/17/handwritten-note-da47de83130db1290defbb2f5d630a4149339cdb.jpg.

  • Minha letra não é nenhum primor estético. É perfeitamente compreensível o que eu escrevo, mas não espere nada lindo ou maravilhoso esteticamente falando. E isso me trouxe problemas no ensino fundamental, onde tive uma professora que confundia muito as coisas nesse ponto. Ou você atingia um elevado padrão de beleza na caligrafia, ou sua letra era tratada como se fosse ininteligível.

    Quanto ao famoso problema da letra dos médicos, creio que uma boa parte seja só falta de bom-senso ou de noção mesmo: não custa o Dr. Arrombado lembrar que alguém tem que ler aquilo depois.

    • Se der para entender, tá tudo bem. Não precisa ser uma letra linda. Mas escrever sem que os outros entendam é uma inutilidade.

    • Sobre letra de médico: já me disseram que a turma do estetoscópio se acostuma a garatujar seus garranchos nas receitas enquanto ainda estão na faculdade, porque têm que anotar muita coisa de muitas aulas e muito rapidamente, sem ter tempo para caprichar na caligrafia. E antigamente havia o ofício de “aviador de receita” nas farmácias, exercido por balconistas experientes que, com anos de prática e de conhecimento do jargão técnico, conseguiam “decifrar” o que os doutores escreviam. Hoje em dia, com a evolução da tecnologia, já existem serviços de “receita digital”, para acabar de vez com dúvidas e mal-entendidos quanto à forma como os remédios devem ser tomados.

      • W.O.J,

        Antes de os médicos começarem a imprimir as receitas e apenas carimbarem para assinar, costumava levar um lápis às consultas para assim que eles terminassem de prescrever, pedir que lessem os nomes dos remédios para eu anotar ao lado do que tinham escrito. Optei por essa artimanha devido ao cagaço que tinha de comprar o remédio errado e acabar me ferrando por causa dos garranchos deles.

  • Como professora só posso dizer que às vezes é bem sofrido desvendar algumas provas que parecem ter sido escritas em hieróglifos do Egito antigo.

  • Antigamente talvez, hoje em dia não. Estou há anos sem pegar numa caneta e quando pego é só pra assinar meu nome e nada mais.

    • Você não preenche nenhum formulário? Não renova documento? Não se hospeda em hotel? Não viaja?
      Tem um milhão de atividades na vida adulta que demandam escrita

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