Doença incurável?

Mais um tiroteio nos EUA… um rapaz abriu fogo dentro de uma escola e matou 19 crianças e 2 adultos antes de ser abatido pela polícia. Dessa vez, dizem que era alguém que sofreu bullying. A situação é tal que depois de um caso desses, você simplesmente coloca o maluco da vez num ranking e compara com os demais. Será que tem algum ângulo novo para falar sobre esse assunto?

Já falamos aqui mesmo no Desfavor diversas vezes sobre o assunto. Semana passada eu fiz um texto sobre o tiroteio anterior! E olha que eu já tive que pegar uma linha diferente indo mais para as motivações declaradas do atirador para não cair no mais do mesmo. Algo me dizia que eu deveria escrever sobre esse tema, mas por outro lado… não seria repetitivo?

Será que as pessoas não estão de saco cheio do tema? Devem estar. Devem ter visto mil análises diferentes, desde as mais alinhadas com nosso ponto de vista aqui sobre foco no ser humano até mesmo as que acreditam que é culpa das armas e ponto final. E no meio do caminho, um universo de possibilidades. Sempre com a mesma pergunta como premissa: como evitar que isso continue acontecendo?

E é aí que eu acredito ter encontrado um ângulo diferente: talvez esses malucos sejam uma espécie de aviso da natureza sobre um problema muito maior. Não que eu acredite que a natureza seja uma entidade consciente, e sim que faz parte do processo evolutivo que populações tenham limites. Se um animal começa a se multiplicar demais num sistema, os recursos não sustentam a população. Os animais se mudam ou morrem de fome, o que importa no final é que a população local se mantenha do tamanho adequado aos recursos disponíveis.

Vou sair numa tangente, mas prometo que tem função no argumento: toda vez que uma célula do nosso corpo se reproduz, criando uma nova cópia para substituir a velha, existe uma chance de a cópia sair com um defeito. São trilhões de átomos tendo que sair do mesmo jeito na cópia, sempre tem algo para dar errado. E sempre dá. O corpo humano tem mecanismos para perceber e corrigir erros, e tem uma certa tolerância do que pode sair errado na cópia sem causar problemas. O DNA parece ter redundância, se errar num lugar, tem algo parecido para funcionar como reserva.

O ser humano, pela imensa maioria do tempo que esteve neste planeta, não conseguia viver muito tempo. Mal passava dos 30 até pouco tempo atrás. Faltava comida, tinha muita doença, guerra, violência em geral… não era fácil durar muito. Mas era o suficiente para fazer alguns filhos e ensinar o básico para eles. Com o passar dos milênios, a qualidade de vida média foi aumentando progressivamente, e agora populações de países medianos como o Brasil já batem nos 70 confortavelmente.

Então, durante quase todo o tempo do ser humano na Terra, os problemas da velhice nunca foram muito importantes. O monte de doenças comuns em idosos que tratamos hoje nem eram de grande interesse para os primeiros médicos: a pessoa já estava muito no lucro de ver rugas no seu rosto. Hoje em dia, câncer e problemas cardíacos são as maiores causas de morte não-violenta no mundo. Ambos os problemas são muito mais comuns com o passar dos anos, com cópias de células cheias de falhas (câncer) e “enferrujar” de artérias e músculos como o do coração.

Tudo isso para dizer o seguinte: se não fosse o aumento considerável da longevidade das pessoas, jamais teríamos sequer prestado atenção na saúde do idoso. Câncer e ataques cardíacos, por exemplo, mal seriam explorados pela ciência. Se é problema que dá em uma fração minúscula das pessoas, não é exatamente um problema urgente. Quem tem doenças e síndromes raras sabe como é isso: pouca gente estuda porque pouca gente tem.

E é aqui que eu volto para o tema: nada sugere que o ser humano tenha se tornado mais violento com o passar do tempo. Na verdade, comparando o que se achava “normal” no passado como assassinatos, estupros e escravidão, somos ovelhinhas em comparação com nossos antepassados. Não porque eles eram pessoas ruins, mas porque ninguém nasce com bússola moral, ela é resultado do seu ambiente. E por mais que ainda exista muita violência no mundo, eu duvido que alguma geração anterior às nossas tenha vivido numa sociedade tão contrária à crueldade.

Até por isso, continuamos nos perguntando como evitar que gente maluca saia atirando em inocentes por aí. Como lidar com isso? Bom, começa a ficar cada vez mais claro pra mim que isso é um câncer social. Mas eu estou sendo bem literal sobre o que significa câncer: são seres humanos defeituosos (não necessariamente de nascença) que tem potencial de criar consequências terríveis para as outras células ao seu redor. O câncer mata porque seu crescimento desordenado vai matando as células saudáveis, incapazes de competir pelos recursos.

Se uma célula cancerosa não consegue ter acesso a nutrientes suficientes, pode ser que morra antes de fazer algum estrago. A analogia que eu faço aqui é sobre a população humana vivendo em grupos cada vez maiores, capazes de sustentar cada vez mais gente, praticamente eliminando a seleção natural. Não me entendam mal: eu fico feliz que a gente consiga tornar viáveis seres humanos que não teriam chance no passado, mas é que nem a história da doença que só aparece na velhice: com o bônus de viver mais tempo, vem o ônus de lidar com doenças cada vez mais terríveis.

Com o bônus de viver em uma sociedade grande que permite a convivência de pessoas cada vez mais diferentes, vem o ônus de lidar com os seres humanos doentes com cada vez mais acesso a recursos. Nos EUA, o sistema permite que o ser humano doente tenha acesso fácil a armas, no Brasil, o sistema permite que o ser humano doente tenha virtual impunidade por falta de competência e recursos da polícia.

Uma pessoa com a mesma mentalidade desses atiradores dificilmente conseguiria fazer o que faz numa sociedade rural, por exemplo. Primeiro que faltam recursos para manter uma pessoa “desocupada” ao ponto de se entregar à psicose, e mesmo que ela chegue nesse ponto, não tem acesso a métodos de assassinato fácil, nem mesmo concentração de pessoas.

O ângulo que eu quero trazer aqui é que a sociedade humana moderna é uma analogia a um corpo idoso sofrendo com doenças como o câncer. Só estamos olhando para tantos tiroteios porque sociedades como a americana chegaram no ponto onde basicamente toda “célula cancerígena” tem acesso fácil aos meios de destruição das outras ao seu redor. E não é só sobre poder ter uma arma, é sobre poder viver muitos anos sem sofrer exclusão social “fatal”, é sobre ter acesso constante a grandes grupos de pessoas que não estão prestando atenção no maluco.

Tem tanta gente nesse mundo que por pura probabilidade, algumas vão acabar tomadas pela violência e a crueldade, pode ser um problema mental de nascença, pode ser uma criação difícil, pode ser uma porcaria de um dia ruim. Não sabemos o que pode fazer o câncer começar a crescer, mas infelizmente, vivemos tão juntos e com tantos recursos disponíveis que cada vez mais essas células doentes vão causar estragos em várias ao seu redor. E tem toda a questão da comunicação em massa, que pode ser a gota que faltava para ativar uma célula cancerígena em forma de gente.

Esse é o problema do crescimento. A humanidade de países relativamente desenvolvidos do século XXI é um corpo diferente do qual ela se criou. Acabou a infância, acabou o vigor da juventude. Agora temos que ter soluções cada vez melhores para o câncer. O físico e o social. Eu posso manter o conselho médico vigente de que prevenir é melhor do que remediar, viver uma vida saudável é de longe a melhor alternativa, mas eu não sei se a humanidade como um todo consegue entrar nesse caminho.

Na verdade, eu vejo duas grandes alternativas para lidar com essa degeneração cancerígena do ser humano: virtualização ou exploração espacial. O problema do corpo social é a concentração de pessoas nos mesmos lugares e a desigualdade de divisão de recursos. O mundo virtual pode lidar com isso espalhando o ser humano e tornando a noção de escassez obsoleta. Ou, pegar esse povo e botar em naves para se espalhar em outros lugares pode ser uma boa alternativa, e de longo prazo até: demoraríamos milhões de anos para ocupar toda a galáxia mesmo se todos nossos esforços fossem nessa direção. Espaço não falta, recurso também não.

E quando eu falo alternativas, não estou dizendo que são minhas sugestões, e sim que eu não vejo outras saídas além dessas. O ser humano vai bater na parede da evolução natural, uma hora ou outra. Estamos vendo alguns sinais da idade chegando. Num mundo ideal, começaríamos a prevenir a doença espalhando mais a população e lutando com unhas e dentes para reduzir a desigualdade social (não precisa eliminar, só engordar bastante a classe média já resolve tanto problema…); mas não acho que seja muito humano prevenir.

Vamos acabar remediando. E enquanto isso, eu temo que o número de atentados do tipo vai subir e subir, em vários lugares do mundo. Não necessariamente porque o ser humano médio é uma pessoa mais cruel, e sim porque o ser humano canceroso está conseguindo atacar as outras células com muito mais consistência. Dores do crescimento.

Para dizer que desanimou de vez, para dizer que tem gente que simplesmente não é humana, ou mesmo para dizer que jamais vai ceder ao meu comunismo libertário: somir@desfavor.com

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Comments (9)

  • Enquanto a família, a sociedade e a escola não focar em ética e princípios morais, essa tortura vai continuar.
    O que aprendemos em casa no acompanha para o resto da vida.
    Nunca adiantou repetir o mantra: seja assim seja assado. O exemplo vem dos pais e educadores.
    Governo e igualdade social eh uma desculpa esfarrapada.
    Aprende em casa e vai pro mundo com o brio cultivado, seja reto, até pobre, mas reto.
    Se todos tivessem brio cadeia seria desnecessária
    Perder a liberdade eh o que pior que pode acontecer na vida de um ser livre.
    Priorize a liberdade de ir e vir, para tanto, seja honesto.
    Defenda-se como pode. Até bullying nos ensina a viver.

  • O problema não são as armas, muitos outros países permitem armas, mas não há tiroteios praticamente semanais como nos EUA. O problema é a sociedade deles, a mídia deles, o governo deles. É muita propaganda e doutrinação. Filmes glorificando a guerra e a violência, jornais desumanizando povos invadidos pelo exército americano, cultura artificial produzida e forçada por estúdios californianos.
    Podem sentar o dedo no emoji de comunismo.

    • Some isso com a inexistência de um sistema público de saúde, que desencoraja que pessoas com problemas emocionais procurem ajuda.

  • A sociedade moderna meio que “recompensa” criminosos, em comparação às sociedades antigas.
    Antigamente, se o macaco fazia merda, era morto ou expulso da tribo, pois os recursos eram escassos e não dava pra desperdiçar com quem não quer colaborar. Hoje em dia, esses macacos podem ser sustentados até morrer de velhice numa prisão (isso quando não são soltos e voltam a atazanar), algumas mídias glorificam a figura do criminoso, do malandro, do delinquente, até algumas marmitas procriam com eles, perpetuando os genes antissociais que podem levar à criminalidade.

    Não precisa retomar os tempos de antigamente, mas que falta uma cultura de vergonha estilo asiático por aqui, ah faz…

    • Você está sugerindo dieta balanceada e exercícios físicos para reduzir a propensão de ter câncer. Faz sentido.

      Mas não é a história toda.

  • Pelo visto, aquele argumento de “não adianta proibir porque vão dar um jeito de burlar a lei” e “liberdade individual” só vale pra legalização do aborto e das drogas…

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