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Evolução nojenta.

Evolução nojenta.

| Somir | | 6 comentários em Evolução nojenta.

Nesse mundo, tem gente que torce o nariz para o cheiro de alho e gente que come cocô feliz da vida. Tem gente que lava seus vegetais vinte vezes antes de fazer salada, tem gente que se banha em esgoto a céu aberto para começar o dia. O conceito de nojo pode parecer muito relativo, mas não podemos ignorar a base científica dele.

Somos resultados de bilhões de anos de evolução. Muito se engana quem acha que o ser humano moderno é algo que começou há alguns milhares de anos atrás. Nosso DNA compartilha muita coisa com seres como bactérias e vírus: somos mais um dos galhos de uma enorme família genealógica da vida na Terra. E as regras básicas costumam ser as mesmas desde o começo.

E uma dessas regras básicas é que energia precisa ser coletada do ambiente. Até por motivos de respeito às leis da Termodinâmica, nenhum ser está isolado, precisa retirar energia de algum lugar para poder usá-la. Desde o primeiro organismo que desenvolveu algum método de locomoção, nossa linhagem evolutiva é baseada na ideia de que movimento é um gasto de energia útil: através dele conseguimos mais energia, a conta fica positiva e continuamos vivos.

Quase todos nossos comportamentos instintivos têm essa base: se mover até a fonte de energia e consumir tudo o que pudermos. Por bilhões de anos de tentativa e erro, podemos dizer que a vida na Terra já fez a maioria dos testes possíveis sobre o que pode ser consumido ou não. Desde outros animais, plantas, fungos e até mesmo pedras, alguma forma de vida já tentou comer alguma coisa, e até mesmo no caso das pedras, algumas bactérias deram um jeito.

Quando o ser humano moderno se desenvolve nesse mundo, já veio com uma boa parte dessa experiência de fábrica. Trilhões de gerações de animais complexos anteriores foram mordendo tudo o que viam pela frente para ver se gerava energia suficiente, os que morderam as coisas certas passaram para frente, os que morderam as coisas erradas ficaram lá no passado.

Muito do que consideramos nojento ou não hoje em dia tem raízes nesse processo de morder e ver se dá certo. Quanto mais precisos os hábitos de consumo de um ser, mais chances de se reproduzir. Lentamente, animais foram aprendendo que comer fezes não é lá muito vantajoso. É possível em casos de desespero, não é necessariamente fatal, mas mesmo sem ter como pensar nessa lógica, os animais que não tentaram ignorar a entropia tiveram mais sucesso: comer cocô é um ciclo que se torna mais e mais ineficiente com o passar das vezes. E se um corpo decidiu que aquilo ali não deveria ser usado, provavelmente tem motivo.

Seu DNA e seu cérebro foram moldados por muitos e muitos seres que tentaram comer cocô. Quem tem animal de estimação sabe: esse tipo de nojo “conceitual” que temos não se reproduz no resto da natureza. Bicho tem alguns hábitos naturais, como os gatos que enterram suas fezes por instinto (mas não é nojo, é para se proteger de predadores), mas não tem frescura nenhuma. Tanto que é um problema recorrente de animais de estimação estressados ou malnutridos comer as próprias fezes. Nojo como a gente pensa é algo bem humano mesmo…

Mas as raízes instintivas estão lá: não é à toa que alguns cheiros incomodam praticamente todos os seres humanos. O gás metano que nossos corpos expelem depois da digestão geram um reflexo de incômodo no ser humano. Mesmo criança, que ainda não tem muito trato social, faz cara feia com cheiro de fezes, provavelmente acha engraçado porque crianças tem o direito de achar tudo engraçado, mas o nariz fica enrugado do mesmo jeito, não? Tem um reflexo natural ali. Ninguém precisa ensinar uma criança a fazer cara de nojo, o rosto se contrai daquele jeito porque existem gatilhos no cérebro sobre o que fazer quando detecta gás metano ou outro elemento conectado com decomposição da matéria.

É como se seu cérebro detectasse esse gás e te avisasse: “não sei o que você está fazendo, mas não morde nada com esse cheiro”. E o mais interessante é que considerando como funciona a evolução, provavelmente estamos falando de vários seres que por pura aleatoriedade não quiseram se meter com nada que cheirasse como decomposição. Não fica escrito no DNA que coisas em decomposição são ruins de comer, fica escrito que é para ter uma reação incômoda com aquela coisa.

A gente chama de nojento porque racionalizou dessa forma, mas até onde entendemos, é basicamente o resultado de incontáveis gerações refinando uma frescura aleatória com algo que cheirasse a metano, e isso acabou dando certo porque aumentou nosso potencial de consumo de energia (matéria não digerida é mais eficiente para o tipo de corpo que temos) e por tabela reduziu muito a chance de sermos contaminados por doenças alheias (novamente, o corpo expele o que não serve pra ele). Tem uma medida certa de decomposição para acontecer dentro do corpo humano, e ela foi definida por bilhões de anos de outros seres fazendo experimentos (involuntários).

Lembram que eu comecei o texto falando sobre gente que não suporta alho? Alho é uma das plantas que o corpo humano consegue processar. Fazendo uma tangente rápida: se plantas venenosas fazem com que menos animais as consumam, por que todas as plantas não evoluíram para ser venenosas? Sabe? A resposta explodiu minha cabeça anos atrás: todas as plantas são venenosas. Mas com o tempo vamos adquirindo resistência. Tem bicho que é resistente até a veneno de cobra. Com o passar do tempo, todo ser vivo é selecionado para resistir às defesas de seus alimentos (ou predadores). Tudo é venenoso, mas nem tudo é venenoso para nós seres humanos. Algumas batalhas nós vencemos depois de muita teimosia.

Voltemos ao alho: tem alguma função evolutiva importante fazer cara feia para alho? Cebola? Azeitona? Praticamente todo ser humano tem alguma “frescura” para alimentação. Coisas que sabemos que não fazem mal, mas que por algum motivo não são toleráveis salvo muita fome. E se eu te dissesse que não comer cocô começou como uma dessas frescuras aleatórias? Existem trilhões de variáveis entre o código genético de uma criatura e seu ambiente, praticamente qualquer combinação pode acontecer. Depois que algumas criaturas desenvolveram um sistema de excreção de coisas indesejadas, é certeza que outras se adaptaram a consumir esses excrementos. É energia. Energia sempre tem interessados na natureza.

O que acontece é que por uma conta simples de energia captada de cada fonte de alimento, as criaturas com frescurinha de comer excremento se concentraram em fontes de energia mais poderosas, e foram se desenvolvendo a partir dali. Não quer dizer que comer excremento alheio seja sempre uma furada, até hoje muitas e muitas espécies não têm problema nenhum com onde estava sua energia antes de consumir, mas as que focaram em matéria não digerida se deram tão bem que eventualmente começaram a escrever textos sobre comer cocô na internet.

O que nós achamos nojento vem em dois pacotes: o pacote genérico das frescuras úteis herdadas de nossos antepassados genéticos e o pacote aleatório dos nossos gostos pessoais. E eu iria mais longe, até fobias tem muito a ver com isso. Gente com fobia de felinos gigantes passou seus genes para frente, afinal, era muito útil querer ficar o mais longe possível de predadores; mas gente com fobia de baratas e outros seres que lidam com excrementos e matéria em decomposição em geral também contribuiu para a humanidade moderna: ter medo de barata tem uma função na redução de condições pouco sanitárias na humanidade.

Eu sei que uma barata não é uma ameaça imediata, mas meu corpo manda um sinal de “não tolere esse bicho” poderoso na minha cabeça quando vejo uma. Não é uma fobia, mas é uma sensação desagradável que não combina muito com a racionalização da situação. Eu tenho nojo de barata, o que torna minha vida mais higiênica, mas não quer dizer que esteja escrito no meu DNA que baratas devem ser evitadas pela chance de espalhar doenças.

E se é um comportamento puramente aprendido por observação de adultos ou se tem algum preconceito genético ali, não faz muita diferença, e eu explico o motivo: você não aprende a ter medo ou a sentir desconforto, você já vem de fábrica com o potencial. Era eficiente do ponto de vista genético para o ser humano ter reações agressivas contra coisas que os adultos parecem não gostar também. Não é como se tivesse um gene baseado em evitar baratas ou não se alimentar de excrementos, e sim que na base da tentativa e erro, a vida aprendeu que esse conceito de achar nojento era justamente o que ela necessitava para reforçar comportamentos mais seguros e eficientes nas próximas gerações.

Somos cheios de nojo porque sentir nojo é eficiente. E enquanto as gerações vão se acumulando, o nojo vai se refinando em elementos cada vez mais complexos: o nojo de matéria em decomposição gerou criaturas que buscam fontes de energia mais densas, o nojo de alguns alimentos definiu que nossas resistências se concentrassem nos mais eficientes, o nojo de algumas espécies (quase todas que consomem excrementos) nos colocou na direção de uma vida menos propensa a doenças.

Mas isso não significa que existe um pacote de nojos homogêneo, existem linhas guia. Quem cresce às margens do rio Ganges provavelmente não tem a mesma ideia de horror ao cheiro de decomposição que nós temos em lugares com mais estrutura de higiene pública. E isso não é à toa: se um de nós aqui nadar no Ganges, morre uma semana depois. Tem gente que bebe aquela água todo dia. O corpo se adapta a quase todos os venenos que a natureza joga na nossa direção. Desde, é claro, que ele tenha tempo para isso.

Nós temos nojo do que pode nos fazer mal em um nível muito abstrato, na prática é sobre o que nós encontramos ou não no ambiente no qual vivemos. Quanto mais encontramos, maior o controle do racional, quanto menos encontramos, maior o controle do irracional. E no meio do caminho, seu cérebro pode “bugar” com nojo de alguma coisa que nem faz sentido ter nojo. Isso só acontece porque somos geneticamente programados para sermos frescos. Quanto mais chance você der para nojos e fobias se desenvolverem, mais elas vão se desenvolver.

O que ficou mesmo marcado no nosso “código-fonte” é que qualquer reação de incômodo deve ser respeitada. Somos sim muito exagerados com o que consideramos nojento, o corpo é feito para lidar até mesmo com comer merda, mas é uma estratégia… merda… de evolução. Calhou da nossa frescura genética nos apontar numa direção de muito sucesso, com energia abundante e cada vez menos perigo de doenças.

Se tem uma conclusão nesse texto é que você provavelmente é muito fresco(a) com o mundo e cisma com um monte de coisa que não vai te fazer mal, mas esse exagero provavelmente foi o que nos fez acabar no topo da cadeia alimentar e como espécie dominante do mundo (macroscópico).

Não se sinta mal pelas suas frescuras e não sofra com as frescuras dos outros, nem mesmo julgue demais as frescuras dos outros. Nojo não é 100% racional, mas é 100% funcional. Somos descendentes da preguiça… e da frescura.

Para dizer que foi menos nojento do que imaginava, para dizer que só o que você acha nojento é nojento de verdade, ou mesmo para dizer que não vai comer os insetos: somir@desfavor.com

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