Vida artificial.

Semana passada saiu a notícia que um dos engenheiros do Google afirmou que um programa de chat deles tinha adquirido consciência, e logo foi afastado pela empresa. Isso me deu muito o que pensar… não sobre a afirmação, porque a chance de ser verdade é zero, mas sobre como fazer uma inteligência artificial ter realmente uma consciência.

Foi muita informação no primeiro parágrafo, então vou esclarecer: eu não acredito que a história da inteligência artificial do Google ganhou consciência porque sabemos mais ou menos como o Google monta as suas atualmente, e não tem nada de consciente nas respostas que dá. É um modelo de análise de comunicação escrita de pessoas, o sistema analisa bilhões de textos e conversas e tenta “adivinhar” o que um humano escreveria por pura probabilidade.

Por exemplo: a inteligência artificial sabe que depois da palavra “eu” existe uma chance altíssima de vir um verbo. E com base no contexto da frase que tem que responder, analisa todos os verbos que conhece e escolhe o mais provável de fazer uma frase coerente. É tudo nessa lógica em robôs de chat. É um sistema que decora inúmeras combinações de palavras sem entender nenhuma delas, e as exibe numa tela de acordo com o que acha que um humano vai querer ver.

Não tem uma mente funcionando do outro lado, é apenas um programa reagindo a uma ação humana de acordo com o seu código. É um botão que você aperta e faz alguma coisa. Por mais que consciências tenham essa função de reagir ao ambiente, não é só isso que elas fazem. Elas têm modelos internos de realidade e agem de acordo com os próprios interesses. Isso nenhum computador faz, por enquanto.

Mas com a doce inocência de alguém que não é especialista na área de inteligência artificial, eu me atrevo a pensar no que realmente poderia fazer com que um programa de computador se tornasse consciente. E pra isso, nada melhor do que olhar para quem está trabalhando nisso há bilhões de anos: a natureza.

Você pode acabar numa discussão filosófica sem fim se tentar entender o que é consciência, o que eu não acredito que seja útil para essa conversa. Vamos tentar achar uma base mais… mecânica para a coisa. Não tentar entender o que é consciente, mas o que faz quem é consciente. E mais: o que faz quem é consciente para saciar o desejo de um ser humano por consciência. Explico: por algumas definições de consciência, até bactérias o são. Mas o tipo de consciência que um ser unicelular apresenta não tem graça para esse projeto de inteligência artificial.

Pode ter utilidade quando estivermos trabalhando com nano robôs, mas não tem o apelo de um ser que reage ao que a gente pensa, fala e faz. A inteligência artificial divertida (ou assustadora) começa a partir dos nossos animais de estimação. Eu estou pulando animais complexos e inteligentes como polvos, golfinhos e corvos, por exemplo; e faço isso porque esse negócio de inteligência artificial realmente é sobre a gente, não sobre o universo em geral.

Queremos algo que viva com os humanos e tenha reações que nos interessem pelo ângulo… humano. Por isso os pets são importantes nessa história: por mais que seja bacana ver um cachorro correndo livre ou um gato pulando muito alto, não é exatamente isso que nos atrai neles, não? O cachorro botou o ser humano no bolso e garantiu sua existência continuada nesse mundo quando aprendeu a nos olhar nos olhos. O carinho e a fidelidade contam, é claro, mas essa coisa de te olhar bem no olho e tentar entender pra onde você está olhando firmou um dos contratos mais fortes de cooperação do reino animal.

O ser humano se amarra no cachorro porque o cachorro interage com a gente como se fizéssemos parte do mesmo time. Gatos, por mais que tenham fama de indiferentes, também tem essa característica de se apegar e se moldar ao redor da gente. Alguns pássaros também fazem isso, se comunicam e percebem o ser humano. O ser humano adora isso. Amamos nossos animais de estimação, mas pra ser bem honesto: eles tiveram que se adaptar bastante aos nossos gostos.

Eu falo de tudo isso porque o ponto de virada da consciência artificial não precisa ser uma Skynet que tudo sabe e tudo controla. Até porque isso é funcionalmente muito difícil de fazer: a ficção normalmente ignora a quantidade de energia e processamento necessários para criar uma mente absurdamente inteligente. Volume por volume, o ser humano é uma das máquinas (orgânicas) mais eficientes nessa coisa de inteligência por gasto de energia e material necessário.

Para uma inteligência artificial realmente nos interessar, pode ser tão inteligente quanto um cachorro, e pode até ser um daqueles bem tapados, que dá cabeçada no pote de ração toda vez que você coloca. O que faz diferença de verdade é o modelo interno de realidade. Isso basicamente todo animal com um cérebro tem: uma noção básica de onde está, desejos e necessidades independentes, e de preferência, sentidos para lidar com a realidade ao seu redor.

O que as inteligências artificiais ainda não têm é essa “desconexão” do resto do mundo, o seu universo paralelo. A partir do momento em que isso for possível, o jogo muda. Para ter uma consciência, o ser precisa ter alguma coisa passando pela mente mesmo quando você não está lidando com ele. A sua vida interage com a vida dele, não a vida dele só existe quando você interage com ele.

Uma verdadeira inteligência artificial consciente tem que ter a capacidade de estar sozinha e mesmo assim ter objetivos. Eu, se tivesse a habilidade, começaria construindo um sistema com uma missão constante de gerenciar o próprio suprimento de energia e tentar aumentar, sempre que possível, o tempo de independência da rede elétrica. Basicamente, um ser que precisa ficar preocupado com “comer e engordar”. O animal consciente precisa manter esse processo ativo o tempo todo: encontrar alimento e tentar estocar energia para quando não conseguir encontrar alimento.

Uma consciência sem algum medo de deixar de existir não me parece uma consciência de verdade. Não algo que possa evoluir. O medo de morrer não é uma decisão racional para nenhum ser vivo, é algo que está no código-fonte do DNA. Ações que aumentam possibilidade de viver são recompensadas, ações que reduzem são reprimidas. Para desenvolver essa consciência artificial, primeiro ela precisa de pressões muito reais.

A consciência precisa desse processo básico rodando sem parar. Porque ela só se forma quando existe uma escolha. Por isso que eu pulei fora da discussão filosófica lá no começo e foquei em consciências do nível de animais de estimação: para sair do jeito que um ser humano possa intervir e ajudar a evoluir, precisamos de bases comuns. A consciência que vai além da mera subsistência, mas que é baseada nela.

A partir desse ponto de colocar alguma responsabilidade por gerenciamento de energia na inteligência artificial, o certo seria adicionar outros desejos, alguns possivelmente conflitantes. A consciência que nos interessa aqui faz escolhas, e isso só tem graça mesmo se algumas dessas escolhas tiverem consequências. Do jeito que inteligência artificial funciona hoje, os computadores tentam absolutamente tudo o que podem até achar algo que funcione, é uma inteligência “burra”, baseada em tentar todas as opções até achar uma que funcione.

Se quisermos algo que seja consciente num padrão que nós entendamos, precisamos dar a essa entidade um sistema lógico interno: ela tem que achar algumas coisas e outras coisas ruins. O jeito de simular isso atualmente é baseado em recompensas: o sistema é programado para sempre buscar aumentar um valor específico, e toda ação que aumenta esse valor acaba sendo priorizada. O problema que eu enxergo é a falta de “propósito do propósito”.

A gente não gosta de colocar a mão no fogo, mas a gente só age assim porque existe uma consequência terrível na dor. E a dor só existe porque o sistema foi programado assim (no DNA). O corpo tem terminações nervosas que captam sinais de danos e causam muito incômodo no cérebro. Mas como qualquer pessoa que já tomou um remédio pra dor ou foi anestesiada pode confirmar: a dor não é uma lei da física, ela pode ser desligada. O propósito da dor é consequência do propósito do corpo de se proteger dos danos.

Já na inteligência artificial moderna, o propósito de “aumentar um número” acaba ali mesmo. Não tem motivo para querer aquilo, só funciona daquele jeito. Para ter uma consciência, eu presumo que seja importante ter uma base lógica consistente com a existência. Ou, de forma menos enrolada: só pode pensar quem está vivo para pensar. Antes da máquina ter consciência, ela precisa… ter vida.

Ela precisa ter essa base comum com todos nós que temos consciências, senão nunca vai entender pra que ter consciência. O robô precisa sentir medo de não existir. Porque é disso que emergem as outras características valiosas da consciência, e voltando aos animais de estimação, por mais que exista o conceito de afeto na mente do bicho, o animal tem o “propósito do propósito”: agradar, entender e interagir com humanos é um diferencial evolutivo poderosíssimo. Não são os donos do mundo, mas são amigos deles.

A primeira coisa que uma consciência artificial vai precisar é a ideia de que está viva. E isso só acontece como consequência de precisar agir para continuar vivo. Eu não consigo enxergar uma máquina que atinja níveis básicos de consciência sem a base de todas as consciências. A máquina imortal e indiferente pode fazer todos os cálculos que nós fazemos, mas nunca vai ter iniciativa sem esse elemento primordial.

Não se programa um ser para pensar sem ter uma função para o pensamento. Senão vira só barulho, estática. Que diferença faz a máquina pensar em formas de curar o câncer ou contar quantas estrelas viu na última foto do telescópio? Como ela pode formular ideias se não entende o que nos interessa sobre ter ideias? Essa inteligência de força bruta não serve para gerar consciência. Ela sempre vai ser um botão que a gente aperta. Se é pra fazer isso, não precisamos de consciência.

E de fato, não parece que a nossa tecnologia está buscando criar uma consciência. Só quer mais potência para responder perguntas que fazemos. Tudo bem, é um caminho que tem sua graça e com certeza ainda vai nos ajudar muito, mas não tem nada a ver com criar um ser pensante.

Ninguém está fazendo isso ainda, não que eu saiba. Enquanto não tivermos máquinas com medo de morrer, não vamos ter sequer começado o processo de consciência. Essa coisa de inteligência artificial dominando o mundo parece a história do carro voador: algo que a gente achou que aconteceria, mas que na prática não gera interesse suficiente para fazer. Talvez com a continuidade desse processo de esfriamento das relações humanas com as redes sociais, a necessidade de máquinas com consciências de verdade aumente até o ponto de vermos as primeiras.

Mas por enquanto, estamos muito longe disso. São calculadoras turbinadas ainda.

Para dizer que eu sempre tiro a graça das coisas, para dizer que quer um cachorro robô de verdade, ou mesmo para dizer que vamos virar clipes de papel muito antes disso: somir@desfavor.com

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Comments (4)

    • Eu fiz o texto todo sem colocar essa limitação. Porque eu acho que ela não existe: os átomos das suas células sabem que estão numa célula? Os elementos básicos da matéria não precisam ter consciência, consciência surge de combinações específicas da matéria. Eu acredito que podemos criar consciência a partir de qualquer material.

      • Faz sentido. E se a gente pudesse “rebobinar a fita do tempo” pra ver o surgimento da vida e da consciência, chegaríamos a um ponto em que a única explicação possível seria a da geração espontânea, com elementos inorgânicos se combinando de uma forma específica, regidos por forças do acaso ou da natureza, pra fazer surgir esses tais “entes orgânicos”.

  • Vão dando corda até as máquinas dominarem eles. Vai ser igual a um dos remakes do filme do Chucky, onde o boneco movido a inteligência artificial começa a matar todo mundo! Já não basta pandemias e o Putin, querem máquinas matando.

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