Por questões profissionais, eu não pude mais me manter ignorante sobre o TikTok. Embora eu já soubesse mais ou menos qual era a pegada da rede social que mais cresce no mundo, passar tempo vendo o feed de vídeos transformou a teoria em realidade. Ao invés de ficar só reclamando do gosto alheio, eu vou fazer uma análise de como eu e o algoritmo demos as mãos rumo a um inferno interminável de bundas.

Eu não sou um usuário comum: tenho conhecimento mais avançado sobre como redes sociais definem o tipo de conteúdo que vão te mostrar, e até sei o quanto os anunciantes influenciam nisso. O TikTok, como tantas outras redes sociais, sabe que apelação funciona, mas também sabe que os anunciantes não gostam de aparecer perto de conteúdo muito apelativo. Por isso, sempre tem certo controle de quão “pornográfico” o conteúdo pode ser para se manter viável como plataforma de anúncios.

Sites e aplicativos que permitem conteúdo adulto (vulgo nudez e violência extrema) são extremamente limitados no tipo de anúncio que podem mostrar. Normalmente só anunciantes do “mundo adulto”. Baixaria dá dinheiro, mas não tanto dinheiro assim… não acredite nem por um minuto que redes sociais censuram conteúdo para proteger os usuários, é para poder continuar anunciando com quem mais paga.

Ninguém ganha dinheiro com você vendo vídeos às custas dos servidores deles, essa lógica de te manter o máximo de tempo grudado na tela é baseada na quantidade de anúncios que podem ser mostrados. Cada minuto que você passa vendo material de rede social, a rede social tem que pagar pela estrutura necessária. Armazenar e exibir vídeos para milhões de pessoas é caro, muito caro. Ou você planeja muito bem o seu modelo de retorno financeiro com anúncios ou nunca vai sair do vermelho.

Tendo esse conhecimento sobre a lógica dos algoritmos de redes sociais, eu achei excelente que o TikTok permitia utilização sem criar um usuário! Seria uma oportunidade de ver como a rede social funciona sem os meus dados influenciarem demais o conteúdo apresentado. O que funcionou por uns dois dias.

O TikTok me mostrou vários vídeos de pessoas fazendo coisas, como artesanato, limpeza de casa, marcenaria, dicas ruins de tecnologia, humor terrível e é claro, algumas bundas. Quando eu digo bundas eu estou falando de mulheres de diversos níveis de atratividade “dançando” na frente da câmera ao som de alguma música que eu, com a graça de Gezuiz, nunca precisei ouvir. O TikTok é clemente ao ponto de começar mudo e nunca exigir que você aumente o som.

Minha primeira impressão foi a óbvia mesmo: “o ser humano tem que acabar”. Mas isso eu sinto com todas as redes sociais. O TikTok não é especialmente mais ofensivo. Se você estudou um pouquinho mais ou conviveu com gente mais inteligente durante sua vida, o cidadão médio é bem vazio de conteúdo ou graça mesmo. Sempre muito parecidos entre si, falando as mesmas coisas… é arrogante dizer isso, mas acho que todo mundo que passou dessa média, um pouco que seja, concorda comigo.

São pessoas levemente diferentes dizendo e fazendo exatamente as mesmas coisas, desesperados por atenção e validação externa. Alguns indivíduos mais criativos e/ou atraentes quebram um pouco esse padrão, mas mesmo que estejamos na era dos 15 minutos de fama, ainda são uma minoria. Normalmente você vai ver basicamente o mesmo conteúdo repetido à exaustão, um copiando o outro e torcendo para dar certo.

Os primeiros dias de TikTok foram uma jornada antropológica. Ele é a culminação do desejo do ser humano médio com banda larga mais popularizada. Era isso que as pessoas queriam desde o começo das redes sociais, agora está ao alcance delas: vídeos curtos de promoção pessoal. Confesso que achei interessantes alguns dos vídeos de trabalhos manuais e maquinário especializado, e vez por outra ri de algumas sacadas do humor esculhambado tipicamente brasileiro.

Meu lado elitista arrogante estava incomodado, mas meu lado menos chato estava enxergando um pouco da graça daquilo. Ah, larga de ser chato, Somir… as pessoas estão se divertindo. Nem tudo precisa ser complexo ou original, às vezes você só quer ver uma bobagem para passar os minutos. Se você não levar as coisas tão a sério, é só um conjunto de pessoas fazendo graça para você. Minha mente profissional já estava pensando em como integrar clientes nas ferramentas de publicidade.

Os dias foram passando, eu mantendo a disciplina de ver sempre um pouquinho pra ter ideias de como usar o TikTok. Importante: ainda sem criar uma conta, porque o mais importante era ver o que o cidadão médio assiste, não cair num ciclo de material nerd interminável como meu feed do YouTube se tornou. O algoritmo do YouTube nem deve saber que eu falo português…

Mas o algoritmo do TikTok é mais esperto do que eu previa. A cada dia que passava, a proporção de mulheres seminuas rebolando aumentava em relação ao resto dos vídeos. Cada vez mais seminuas, cada vez mais rebolativas, de todos os cantos do mundo. Faz alguns dias eu abri o app e só vi isso, passei uns cinquenta vídeos com no máximo um ou dois diferentes dessa média.

Veja bem, eu não vou mentir dizendo que me é sofrido ver mulheres seminuas rebolando. Se eu estivesse pensando só na minha satisfação visual pessoal, antes uma bunda do que uma pessoa dizendo bobagem ou fazendo “humor” de TikTok. A bunda pelo menos acende uma lâmpada no cérebro: “ei, a gente gosta dessas curvas, sabia?”. Sim, eu sabia, cérebro. Mas pra falar mais verdade ainda, não precisa de esforço para ver mulher pelada na internet. Pra ter esse tipo de estímulo, o TikTok não é lá muito eficiente…

Racionalmente, eu sabia que o aplicativo não era lugar de buscar esse tipo de material. Tanto que eu tenho certeza de que não tinha pedido por isso para o TikTok. Não pesquisei por bunda, não tinha nem como seguir perfis por não ter uma conta. Não era razoável na minha mente que o aplicativo estivesse me mostrando mais bundas por eu dar algum indicativo que queria ver mais bundas.

“Vai ver é isso mesmo, pra cada 100 vídeos, 90 são de mulheres rebolando de forma provocativa e no começo ele me mostrou mais dos 10% para não parecer tão exagerado”. Teoria formada, conclusão tirada: esse mundo está perdido, as pessoas só querem bunda. Só mulher querendo atenção sexual posta vídeos aqui, e é claro, a imensa maioria ainda finge que não naquela hipocrisia típica de sociedades como a brasileira. Close ginecológico na tela do celular e post chorando depois por ser objetificada… gentalha!

Mas uma das grandes lições que eu aprendi na vida é sempre se perguntar o que você pode ter feito de errado. Mesmo quando parece que você é 100% vítima das circunstâncias, é muito útil ter um advogado do Diabo dentro do cérebro tentando achar algum problema que você tenha criado. Não é sobre viver com culpa, é sobre entender que a realidade é sempre mais complicada do que a gente acha.

E foi aí que me veio a luz: se o TikTok fosse 90% mulher com pouca roupa rebolando, ninguém ia anunciar, e pior: não ia atrair mulheres o suficiente para ficar com pouca roupa rebolando. Ainda mais no caso das brasileiras médias, que precisam de uma desculpa mental qualquer para não se prenderem por moral cristã. Se o TikTok fosse o meu feed de vídeos, não teria como disfarçar: viraria sinônimo de rede social de prostitutas e tarados. O que pode até compor uma parte razoável dos usuários, mas lembre-se: não tem como tocar um modelo de negócios decente de anunciantes se sua imagem for essa.

Eu tinha contribuído com meu feed de bundas intermináveis. Foi quando eu lembrei que o algoritmo anota quanto tempo de visualização você tem em cada vídeo. Eu não cliquei em perfil nenhum, não pesquisei nada do tipo, não compartilhei… mas fiquei hipnotizado por bundas um segundo a mais que por outros vídeos. A rede social não sabe quem eu sou ainda além do meu telefone, mas sabe que é o mesmo telefone.

E tem um identificador único pra mim. Esse ser humano demora cinco segundos a mais pra sair de vídeos com esse tipo de identificação do que de outros. Esse ser humano deve gostar desse tipo de vídeo, vou mostrar mais vídeos parecidos. E o ciclo vai se repetindo. O algoritmo tem uma noção de vídeos próximos em conteúdo, mesmo que não saiba o que é uma bunda. O algoritmo sabe que outras pessoas que gostaram daquele vídeo com uma bunda gostaram mais ainda de um vídeo com uma bunda menos coberta ainda. Ele te mostra esse vídeo.

Você assiste esse vídeo por um segundo a mais que os anteriores. O algoritmo anota que deu certo! Toda vez que achar um vídeo que funciona com pessoas parecidas com você (vulgo a maioria dos homens), ele vai te mostrar. O resultado é que meu TikTok é basicamente inútil agora. Não adianta para entender o que é o conteúdo médio assistido, e francamente, nem é tão interessante assim no campo de bundas. Como eu disse antes, criatividade não é o forte das pessoas que costumam postar mais vídeos.

Depois da milésima vez vendo mulheres virtualmente idênticas fazendo danças virtualmente idênticas, nem o meu cérebro reptiliano sabe mais o que fazer. Curiosamente, ao fazer o meu feed de vídeos se adaptar ao meu instinto de olhar por mais tempo para uma mulher seminua em média do que outros conteúdos aleatórios, o algoritmo me prendeu num lugar meio chato… eu vou ter que criar uma conta e seguir materiais diferentes para desfazer essa bundalização do meu feed.

O que me faz pensar: será que muita gente consegue chegar nessa conclusão que ficou presa numa bolha de conteúdo que o algoritmo acha que ela quer? Que precisa se mexer para ver coisas diferentes? Eu e muitos homens somos fracos para bundas, mas tem gente que é fraca para diversos outros temas também, até mesmo polarização política. Se você deixar o robô te guiar, ele vai seguir seus instintos muito mais do que você é capaz de perceber na prática.

Eu só percebi o problema quando a surpreendente ideia de estar de saco cheio de bundas bateu na cabeça. Imagino que o normal seria começar a procurar conteúdo mais forte ao invés de ter essa epifania sobre o algoritmo e escrever um texto sobre isso. Quanta gente não está ficando mais e mais viciada nesse tipo de conteúdo apelativo e perdendo a linha em busca de coisas mais fortes por esse tipo de manipulação algorítmica? O público do TikTok ainda é bem jovem, extremamente vulnerável aos arroubos hormonais causados por excesso de exposição a esse tipo de baixaria.

Sim, o povo está só se divertindo e não é para odiar ninguém por postar vídeo fazendo dancinha, mas tem algo de muito nefasto nesse algoritmo que eu desconfio que não vai ser corrigido. Afinal, ele mantém a rede social um pouco antes da linha de baixaria ilimitada que espanta anunciante, mas o suficiente para até uma pessoa que fez esforço consciente de não fazer o aplicativo só mostrar conteúdo sensual acabar com um feed de bundas infinitas.

Uma boa parte da culpa é minha? Claro que é. Ninguém me obrigou a passar aqueles segundos a mais olhando para as mulheres exibidas do TikTok, mas por uma série de motivos e experiência de vida, eu consegui perceber rapidamente que tinha algo errado ali.

E eu honestamente não acredito que seja mediano nesse ponto. Eu acredito que mais gente deva aprender a entender o algoritmo da rede social e perceber que as coisas não acontecem à toa. Se você só reagir instintivamente ao conteúdo que recebe todos os dias, vai acabar sempre preso ao menor denominador comum.

Bendito dia que eu decidi cuidar com muito carinho do meu feed de YouTube. Dou feedback em tudo, curto vídeos bons, peço para não me mostrar nada brasileiro… agora é meu lugar feliz de nerdice, ciência e política internacional, mesmo sabendo que o site quase inteiro é um monte de bundas. A minha lição é essa: preste atenção em como lida com seus feeds de conteúdos e notícias, qualquer distração e eles viram uma bunda.

Para dizer que eu sou só um velho tarado, para dizer que quem vê bunda não ouve bobagem, ou mesmo para dizer que agradece a dica de nunca entrar no TikTok: somir@desfavor.com

Se você encontrou algum erro na postagem, selecione o pedaço e digite Ctrl+Enter para nos avisar.

Etiquetas:

Comments (12)

  • Eu gosto de ver gente feia fazendo idiotices . Tem um cara cheio de pele q dança balançando as pelancas. Tbm gosto de retiradas de cravos e cirúrgicos . Me julguem …

  • Antes fosse só bunda. Tive que lidar com torturas como Transmissão (provavelmente pirata) do BBB lá na plataforma.
    Logo entrei no modo #semtempoirmão porque #nãosouobrigado.

  • Sally deveria fazer esse mesmo experimento, afinal parece ser menos provável que o algoritmo vá jogar tanta bunda na cara dela. Para homens é fácil deduzir que esse padrão é mais comum, mas para mulheres existe um tema mais recorrente que os outros? Relacionamentos, maquiagem, bunda de homem, piadotas… Que tipo de sugestão o algoritmo costuma testar com mais frequência no público feminino para garantir a propaganda em quantidade?

  • E se você passar pelo feed de bundas sem parar em nenhum video e sair do app depois de 2 minutos fazendo isso?
    Acho que depois de de uns 3 dias o algoritmo vai entender que você cansou de bundas e mostrar outra coisa.
    Comigo funciona quando o algoritmo pesa a mão em algum determinado assunto, eu ignoro e ele muda pra outro assunto, ai quando enjoo eu ignoro de novo e por assim vai.

  • Os algoritmos apenas dão o que as pessoas sempre quiseram ver, ainda que sem nem saber que queriam, ou só as induzem a consumir repetidamente um mesmo tipo de conteúdo?

    • Eu entendi dessa experiência que é uma mistura: por um lado, você guia o algoritmo com seus interesses, mas por outro você é colocado numa vala comum de pessoas que reagem ao mesmo tipo de “apelação”. Somos mais complexos que uma reação fisiológica qualquer, mas a máquina só consegue analisar algumas coisas que fazemos. Ela tem uma imagem distorcida do ser humano. Sim, muita gente dá atenção para bundas, mas isso não quer dizer que esse é o interesse delas.

      Num exemplo totalmente aleatório: o algoritmo descobre que você gosta de macarrão porque te vê comendo macarrão, isso não quer dizer que é seu prato preferido ou mesmo que seu único interesse na vida é esse. Ainda existe esse ponto fraco na tecnologia.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Relatório de erros de ortografia

O texto a seguir será enviado para nossos editores: