Severance

Ou, a melhor série do ano que ninguém viu. Severance é uma série lançada na Apple TV, e que até o momento que escrevo, não acho que tenha sido lançada no Brasil em nenhum streaming. Eu acabei pirateando para poder ver. E não me arrependi.

A série é muito baseada em mistérios, então, por mais que eu me esforce para não dar spoilers, talvez escapem alguns. Aviso dado: Severance acompanha a vida de um homem depressivo pela morte recente da esposa seguindo sua vida no emprego que tem numa misteriosa empresa de tecnologia, a Lumon.

Todo o lance da série é baseado no que acontece depois que o protagonista começa seu turno de trabalho: numa versão ultra-hardcore de acordo de confidencialidade, a empresa instala um chip na cabeça dos seus funcionários que os fazem “se desconectar” da sua personalidade e memória enquanto estão trabalhando.

A transição entre os ambientes acontece num elevador, numa cena simples, mas efetiva de demonstração de ruptura entre as realidades. Aliás, é uma das melhores características do show: usam a tecnologia como um elemento natural do ambiente, sem chamar atenção para tecnicalidades. Pode até chamar de ficção científica, mas dificilmente vai te passar essa impressão enquanto vê. É sobre pessoas, mistérios e conspirações.

Ou seja, é impossível levar problema de casa para o trabalho ou do trabalho para casa. Nenhuma memória pode atravessar a barreira entre vida pessoal e vida profissional. Nos primeiros capítulos, vemos a adaptação de uma nova funcionária ao time. Como era de se esperar, ela basicamente age como se tivesse um caso sério de amnésia.

Como as memórias dela não entraram no confuso e estéril complexo de salas de escritório subterrâneos, a moça, Helly, nem entende que está num novo emprego. Até onde se lembra, nunca concordou com aquilo. É complicado prever como alguém reagiria numa situação dessas, sendo jogado sem lembrar de nada dentro de um escritório e começar a te treinar sobre o trabalho.

Em momento algum as reações parecem estranhas, Helly realmente se sente presa num lugar que não pediu para estar, e faz vários esforços para se livrar. E é aí que a genialidade da série começa a agir: a mulher não é forçada a ficar no trabalho pela empresa, eles sempre a deixam sair se quiser. Mas toda vez que ela sai, percebe que está de volta.

Afinal, isso não foi combinado com a personalidade “de fora” dela. A pessoa que aparentemente impede ela de se demitir e sair daquele lugar… é ela mesma. Imagine só ser controlado… por você? A personalidade de fora não tem contato nenhum com a de dentro, e não, não dá para mandar bilhetes e mensagens, é parte das regras da empresa.

Mas você deve estar se perguntando por que eu chamei Mark de protagonista se é Helly que vive o choque de começar nesse trabalho. Mark é a figura central da série porque podemos ver sua vida lá fora. E é a única personagem que tem esse tratamento. Mark é uma pessoa destruída emocionalmente lá fora, mas no trabalho é um experiente e reconhecido líder de time. O seu humor muda a cada vez que entra no elevador.

A série mostra mais várias personagens, histórias e intrigas dentro da Lumon, com alguns funcionários de mais alto nível com liberação de ter a mesma memória dentro e fora da empresa. E você pode estar se perguntando o que de tão secreto essa Lumon está fazendo… somos dois. Porque ver a série não responde essa pergunta. Não exatamente.

Todo o trabalho feito pelos funcionários como até os equipamentos e layout dos escritórios é confuso, a tecnologia parece dos anos 70 ou 80, as funções que eles desempenham não fazem nenhum sentido, o ambiente todo é um enorme labirinto corporativo, todo branco e sem lógica aparente. Os funcionários sabem apenas o mínimo necessário para fazer seu trabalho, e é política da Lumon não contar mais nada. Minha impressão é que isso é proposital para não dar nenhuma dica para os funcionários sobre o que existe lá fora.

O tom da série também é estranho, mas claramente por um motivo. No mundo real as pessoas agem mais ou menos como se espera delas, mas quando estamos acompanhando Mark no trabalho, todo mundo parece dopado, personalidades infantilóides, medrosas, desconectadas de sua humanidade. Eu li aqui uma crítica à seita do Linkedismo, essa praga do mundo corporativo empurrado por equipes de RH que querem todo mundo super grato por ser explorado pelos chefes.

O funcionário com a mente cortada da vida real é uma criança esforçada como parecem querer que todos sejamos no trabalho: obedece sem pensar, se vende por qualquer porcaria, não tem planos, não tem história. Só vive para o trabalho. Nesse caso, literalmente: por mais que os funcionários da Lumon que acompanhemos saibam que existe uma pessoa “lá fora”, eles não têm contato nenhum com essas versões de si. Toda e existência deles é começar e terminar o turno de trabalho.

É de se esperar que eventualmente alguém se revolte. E não teríamos uma série se isso não estivesse nos planos dos criadores dela. A primeira temporada é basicamente um estágio do espectador na Lumon, primeiro aprende as regras, depois começa a ver os problemas. E são muitos problemas. Mais do que esse senso de revolta contra viver uma vida de trabalho infinito seria dar spoiler demais sobre o que acontece. Essa é pra ver e absorver os mistérios e reviravoltas na medida que acontecem.

Então, sem falar muito mais da história, falemos da qualidade do material: a Apple TV tem dinheiro suficiente para fazer algo muito bem-feito, e foi exatamente isso que aconteceu. A qualidade técnica é excelente, tudo muito caprichado, visuais secos, mas bem montados. É uma série de grandes planos vazios e detalhes pedindo para ser notados.

As atuações também são excelentes. Você percebe bem a diferença de clima e de humanidade entre pessoas dentro e fora do trabalho. Chega ao ponto de irritar às vezes como eles não reagem como seres humanos adultos quando estão com a personalidade do trabalho. Ninguém fica pra trás nas atuações, com algumas participações especiais de atores e atrizes bem famosos em papéis secundários. (Christopher Walken nasceu para estar nessa série)

É uma série inteligente, que não fica te explicando demais o que está acontecendo, e que mesmo quando dá reviravoltas no roteiro, não o faz à là Lost, empilhando mais mistérios aleatoriamente. As coisas acontecem numa sequência estranha, mas com uma lógica interna eficiente. E me enganaram que nem um patinho quando eu achei que tinha sacado tudo. Sempre uma alegria não conseguir prever o mistério no meio da temporada!

A segunda temporada já está em produção, a primeira termina com um choque que vai te fazer querer muito ver a continuação. Como tudo meio cult, não se apegue demais, talvez a segunda temporada seja a última, mas eu acredito que eles vão conseguir amarrar bem a história com base no que vi da primeira.

Extremamente recomendado, pirateie com segurança.

Para dizer que ficou confuso (sim, a série é isso), para dizer que isso é um documentário do futuro, ou mesmo para dizer que quer entender os números: somir@desfavor.com

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Comments (14)

  • Porra ! O seromano é tão filha da puta q por poder e dinheiro escraviza até a si mesmo. Oh raca maldita .
    A série fica maravilhosa a partir do 4 capítulo

  • A série é realmente maravilhosa e serve como ponto de partida pra pensar em muita coisa. Lembrei muito do conceito de sociedade do desempenho, do Byung-Chul Han. Como se quem não quer centrar a vida e a identidade em torno do trabalho estivesse errado…

    (E eu continuo muito curiosa pra entender o que são aqueles números! rs)

    • Pois é, eu escrevi vários textos de desmotivação aqui pensando justamente nesse truque sujo de fazer as pessoas confundirem colocar energia no trabalho com colocar energia na vida. A ruptura parece uma solução para um mundo que aspira ser robô de linha de produção.

  • Parece interessante, vou assistir.
    Saudades do tempo em que Rh pra mim era só algo do sangue que aprendia-se nas aulas de Biologia. Recursos Humanos é uma área que precisa urgentemente de uma revisão porque do jeito que está é insustentável, tanto pros candidatos quanto pros recrutadores, mas isso seria assunto pra outra discussão… talvez um Dés Potas?

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