Crise pública.

Dizem por aí que Bolsonaro ficou muito triste ao perder a eleição. De um ponto de visto humano, nada mais compreensível. Todo mundo fica chateado quando perde, mesmo aqueles que fingem que está tudo bem. O presidente em exercício até tentou, mas ficou bem claro o impacto que isso teve no seu emocional. Tão claro que seus seguidores “leram nas entrelinhas” que não era para aceitar o resultado da eleição. Deu no que deu. Será que isso não poderia ser evitado com um pouco mais de compostura pública?

“Mas o Bolsonaro queria mesmo que protestassem!”

Sim, eu sei. Mas ele é só um gancho para puxar o tema de verdade: a normalização da crise em público. Alguns anos atrás seria impensável um presidente ficar resistindo a entregar o cargo dessa forma tão… infantil. Trump abriu as porteiras em 2020, Bolsonaro acaba de passar junto. Muita gente vai querer atribuir isso à nova extrema-direita e seu desdém pela democracia, mas eu estou enxergando algo maior.

A forma como a sociedade lida com as questões emocionais e psicológicas mudou muito nas últimas décadas, com uma aceleração considerável nos últimos anos. O termo “louco” não é mais a sentença para qualquer dificuldade nesse campo. As pessoas começaram a aprender sobre os diversos problemas psicológicos que existem por aí, e mais do que isso, foram perdendo o preconceito contra buscar tratamento.

Tem muita gente por aí tomando remédio que só se prescrevia em manicômio algumas décadas atrás, muitas deles vivendo vidas relativamente normais. Já escrevemos várias vezes aqui sobre esse tipo de problema, e mantemos que não tem que ter dificuldade de procurar ajuda. Remédio é para tomar, terapia ajuda muito. Problemas psicológicos como depressão devem ser tratados, não podemos mais fazer as pessoas terem vergonha de procurar ajuda.

Eu já tive meus problemas, já tomei remédios, já fiz terapia, e me ajudou muito ter alguém como a Sally para me dizer que era a coisa certa buscar suporte profissional, que não era coisa de maluco, que eu não ia acabar num hospício, etc. Depois de perder os preconceitos e admitir os problemas, eles foram se resolvendo. Eu estou fazendo toda essa introdução para não entenderem errado o ponto do texto: não é que é abominável ter sentimentos e até mesmo perder o controle às vezes ao ponto de precisar de ajuda médica; o problema é achar que a solução está do lado da crise, não do controle da crise.

Ao mesmo tempo que a cultura moderna diz que é normal ter dificuldades, que faz bem expressar sentimentos e que não se pode exigir que uma pessoa não tenha problemas; algumas pessoas usam esse ambiente para viverem tendo derretimentos mentais nucleares em público sob a defesa de estarem lidando com sua saúde mental.

E é aí que eu começo a enxergar um vírus se espalhando. Será que Bolsonaro e os bolsonaristas teriam esse tipo de reação num mundo mais emocionalmente repressivo? Porque não é uma revolta popular normal, daquelas onde o povo sai quebrando tudo e só parando com repressão violenta da polícia, é gente pedindo ditadura militar com uma pegada meio… gratiluz? Mãos dadas, cantoria, reza, cores e bandeiras…

Sim, eu prefiro minhas manifestações majoritariamente pacíficas e não vou tirar esse mérito dos bolsonaristas (até aqui), mas tem algo que parece fora de lugar, é como se a putez deles com a eleição do Lula não fosse tão poderosa assim. É o suficiente para reclamar, pra ter algumas reações bem mesquinhas como demitir e boicotar petistas, mas eu não vejo neles aquela raiva primal de botar fogo no país, como vimos em 2013, por exemplo.

E, isso é só uma teoria, eu acho que isso é sinal de sentimentos mal resolvidos. Bolsonaro ficou triste por ser derrotado, então decidiu ficar calado para não dar satisfação para o adversário, e quando se manifesta, parece uma criança forçada a pedir desculpa pro coleguinha. Da noite para o dia, ele não quer mais ser presidente desse país de bobos, feios e chatos. Ele ficou lá, com cara de bravo, mas sem agir de forma raivosa mesmo. Ou num português mais chulo: não cagou nem saiu da moita.

E eu vejo isso espelhado nos manifestantes. É claro que eles podem ficar putos da vida com a vitória do Lula, eu até entendo, eu ficaria puto com a vitória de qualquer um dos dois. Mas daí, precisam lidar com o sentimento. Ou ele é violento o suficiente para gerar revolta agressiva ou ele precisa dar lugar à serenidade e tocar a vida. Novamente: agradeço que não tenham começado a atirar por aí, mas escolheram um meio termo muito estranho.

E como eu estou imaginando aqui, isso tem a ver com a forma como o mundo ocidental vem lidando com saúde mental: abrindo os braços para acolher quem estava se sentindo abandonado, mas ao mesmo tempo deixando pessoas “normais” abusarem dessa compreensão para chamar atenção. Todo mundo conhece uma pessoa viciada em chantagens emocionais, que diz que vai morrer se você não fizer o que ela quer, que chora e esperneia para te fazer se sentir mal… sempre tem gente que exagera.

E se isso estiver normalizando? Como quem ganha mais atenção é justamente quem se descontrola mais e dá mais “show” para a plateia, será que as pessoas não estão internalizando esse comportamento? Ser perdoado por um episódio de um problema mental é nobre, ser perdoado por um chilique infantil não deveria ser. Mas, com as linhas cada vez mais borradas entre as pessoas que precisam e não precisam tanto assim de ajuda, acabamos obrigados a aceitar o trigo e o joio na questão de saúde mental.

Descontrole mental estraga sua vida ou te faz ser campeão de reality show. Eu nem sei se quero bater tanto assim nas pessoas que romantizam crises públicas porque a mensagem que vem do mundo é confusa mesmo. Onde está a linha da crise privada e da crise pública? Basta uma das pessoas ter rede social que suas crises privadas podem ser espalhadas pelo país ou pelo mundo todo. Será que é errado jogar seus problemas em cima dos outros se estão jogando os deles em cima de você?

E pior, se você nunca pensa nisso, talvez nunca saiba que tem diferença entre os seus problemas e os problemas que são de todos. Estou falando dos bolsonaristas expressando desgosto fechando estradas, mas a transexual (ou a obesa) que reclama que homens não querem sair com ela porque são nazistas também é uma confusão entre a esfera pública e privada. Pode estar de camisa amarela ou de cabelo azul, não é uma questão de direita ou esquerda, é uma questão dos tempos.

O presidente derrotado nas eleições não considerou as consequências de transformar seu problema pessoal em crise nacional. Porque se ele estivesse realmente com o fogo de virar o país de ponta cabeça por um ideal, teria se matado politicamente e radicalizado desde o primeiro minuto. Se estivesse tentando agir de forma controlada e planejando os próximos passos do movimento da direita brasileira, teria aceitado o resultado e não ter deixado seus defensores virarem piada.

Mas ele só pensou no seu sentimento, e não soube diferenciar o humano do símbolo político. Se é norma nesse país ter crises gigantescas na frente de todo mundo por questões pessoais, se a forma como lidamos com saúde mental atualmente glorifica a crise mais do que o tratamento… é compreensível sua reação. Ele age de acordo com o mundo que está vendo.

Mundo de pessoas cada vez mais rápidas em jogar todo seu lixo no quintal dos outros. Onde o chilique é visto como posicionamento ideológico. Eu não quero que fechemos os braços para as pessoas com depressão, transtorno bipolar, traumas pesados e tudo mais, claro que não, elas devem continuar sendo acolhidas e guiadas rumo ao apoio que tanto precisam. O que eu não gostaria de continuar vendo é essa dignificação do barraco, da reação emocional egoísta. Precisa de ajuda e fez um carnaval para chamar atenção? É muito positivo entender e perdoar para oferecer a ajuda.

Desde que você… aceite a ajuda. Desde que você entenda que esse comportamento é o que precisa ser controlado. A meta é não reagir dessa forma quando as coisas dão errado. É não espalhar seus problemas pra cima de todo mundo como forma de funcionar. A gente ensina a criança a chorar cada vez menos, não porque chorar é algo errado, mas porque adultos precisam escolher suas batalhas para funcionar na sociedade.

Não dá para chorar por tudo, não dá para ficar arrasado ou agressivo a cada probleminha. Se você está agindo assim, não pode ficar olhando para todos os cantos e vendo gente que se orgulha de estar fora de controle, porque isso só vai passar a mensagem errada. Não é uma disputa para ver quem demonstra mais sintomas, é uma batalha para encontrar e tratar a doença.

Saúde mental é ter mais ferramentas para lidar com as dificuldades da vida, não é orgulho de se descontrolar. Está na hora de arrumar esse discurso antes que mais e mais pessoas ajam dessa forma, sem a menor vergonha de lidar com dificuldades como se ainda fossem crianças.

Aceite seus sentimentos, não sofra calado, se perdoe caso perca a cabeça de vez em quando; mas não se esqueça que o foco é melhorar, e não ficar na mesma com uma plateia maior.

Para dizer que é preciso saber perder, para dizer que os lacradores fariam o mesmo (provavelmente), ou mesmo para dizer que Alexandre de Moraes acaba de ser preso: somir@desfavor.com

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Comments (12)

  • Ele emagreceu pra cacete, inclusive no barrigão, logo ele que só come porcarias, deve ter se abalado feio mesmo. O Bozo não ganha nunca mais, mesmo que o Lula morra e o picolé de chuchu seja o concorrente. Grande parte de culpa dele não ganhar mais foram essas manifestações de maus perdedores. Se perdeu aceita, porra! O PT nunca fez isso.

  • ainda acho que não saímos do neolítico, o pensamento crítico é algo recente na espécie. por isso, flertamos com a ruptura e o descontrole geral a todo momento. essas crises, políticas ou de saúde pública (como reagimos a elas), só mostram que a qualquer momento podemos voltar ao passado recente da espécie

    • Para muitas coisas, o ser humanos ainda é o mesmo bicho que mal se adaptou a viver em sociedade, e só engoliu os sapos advindos dela pelos benefícios da segurança e conforto que os números proporcionaram. Talvez ainda tenha algo fundamentalmente mal resolvido na nossa relação com a vida em grandes grupos.

  • “viverem tendo derretimentos mentais nucleares em público”

    Me veio exatamente a imagem de uma “Karen” à mente. (Explanação rápida: Karen é um meme de internet que descreve geralmente mulheres histéricas de classe média, que implicam com pessoas em geral em ambientes públicos por qualquer razão narcisista).

    Geralmente essas “Karens” acabam presas e/ou multadas, além de virarem piada para o mundo todo ver.

    • Sim, a Karen é o chip de autocontrole humano pifando. Mas eu acho que tem algo mais profundo aí: será que as Karens não são reflexo de um mundo que exige cada vez mais intensidade e espetáculo do cidadão médio para chamar atenção?

      • Sim, é. Não é mais a infiltração na parede, é a jorrada de água pela sala. E estão preferindo se acostumar com o vazamento e a molhaceira do que consertá-lo.

      • Eu também não sabia. Mas depois de ler aqui, fui procurar uns vídeos sobre essas tais Karens no YouTube e fiquei espantado com o que vi: são patéticas!

    • Eu realmente acredito que política é parte do campo racional, não do sentimental. Então sim, eu defendo a despolitização das reações emocionais, porque elas são baseadas em pessoas, não em ideias abstratas como direita e esquerda. Política não radicaliza, pessoas radicalizam.

  • “Saúde mental é ter mais ferramentas para lidar com as dificuldades da vida, não é orgulho de se descontrolar. Está na hora de arrumar esse discurso antes que mais e mais pessoas ajam dessa forma, sem a menor vergonha de lidar com dificuldades como se ainda fossem crianças.”

    Esse parágrafo já resume o texto todo. Não poderia ter dito melhor. E, Somir, eu lhe peço licença para repassar esse trecho do seu texto a um monte de pessoas que conheço que ficam de muxoxo, perdendo a cabeça e dando piti à toa não só por causa do resultado destas eleições presidenciais recém encerradas, mas também por toda e qualquer contrariedade que lhes apareça pela frente.

    • Espero que ajude alguém a pelo menos pensar no tema. Existe uma fina linha entre aceitar o que se sente e der dominado pelo que se sente. A minha impressão é que as pessoas estão vendo tanta gente ser dominada, de forma tão pública, que não conseguem mais ver a distinção.

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