O buraco é mais embaixo.

Passou a emoção (negativa ou positiva) do resultado das eleições? Passou, né? Ótimo. Precisamos conversar. Sei que muitos estão felizes pelo Lula ter sido eleito, mas o buraco é mais embaixo. O dano causado à sociedade não se soluciona com uma mera mudança de Presidente.

Quem está comemorando e dando a questão como resolvida está no mesmo devaneio do bolsonarista que está enterrando sua Bíblia por achar que o Lula vai confiscá-la e queimá-la (sim, é verdade, tem muito brasileiro fazendo isso de verdade). Como já dissemos antes, o fato do Lula se eleger não faz com que 49% da população brasileira desapareça. Os bolsonaristas continuam aí e o problema nem é sua opinião política.

O que o bolsonarismo escancarou é o número de brasileiros com dissociação cognitiva, ou seja, que são capazes de acreditar nos maiores absurdos, que seriam facilmente averiguáveis, se não estivessem tão cegos pelo próprio viés de confirmação. Essas pessoas não saem de suas casas apenas de quatro em quatro anos para votar, elas são parte ativa da sociedade – e essa falta de discernimento delas compromete a sociedade.

Espero que me permitam cometer uma série de simplificações grosseiras, para passar a ideia geral do que quero desenvolver daqui para frente. Deixo claro que as coisas não tão “preto no branco”, mas, para fins didáticos, vou falar de forma pouco técnica e até meio ignorante.

Já falamos em diversos textos que pensar é uma das atividades que mais custo tem para o nosso corpo: o cérebro consome muitos recursos e seria humanamente impossível se tivéssemos que pensar em cada decisão que tomamos diariamente. Por isso, existem diversos mecanismo para que o cérebro não tenha que queimar toda nossa reserva energética e possa tomar decisões através de “atalhos”, sem pensar muito. O cérebro encoraja isso, para poupar energia.

Dentro da categoria “pensar”, um dos itens que mais consome é pesquisar. Um exemplo bobo: se alguém te perguntar se hoje você quer comer frango ou macarrão, você vai ter que pensar, mas é algo relativamente simples. Você apenas avalia o que você tem vontade de comer, em poucos segundos a resposta vem.

Pesquisar não. Pesquisar envolve muita energia e muito tempo. Tem que procurar fontes, ler diversas informações e filtrar qual te parece mais correta. Para isso, seu cérebro tem que “comparar” o que você leu com tudo que você sabe: sua vivência, seu conhecimento… tudo.

Um exemplo: se você lê que porcos voam, fica fácil saber que não, pois eles não têm asas, mas se você procura saber se um pavão voa (e você vai encontrar gente dizendo que sim e gente dizendo que não) a pesquisa será muito custosa.

Se por um lado pavões preenchem os requisitos mínimos para voar (são aves, tem asas), por outro, não é muito comum ver imagens de pavão voando. Quando seu cérebro, em uma fração de segundos, acessar os arquivos mentais que você tem de “pavão”, provavelmente o que ele vai encontrar é um pavão sempre no chão. Aí você vai ter que ler o que diz um, o que diz o outro e continuar investigando, gastando energia, para tentar chegar à verdade.

Então, pesquisar informações conflitantes dá muito trabalho e gera um gasto energético que nosso corpo, por um mecanismo de sobrevivência, está programado para tentar evitar. Isso leva muita gente a procurar curadores de conteúdo para poupar tempo e energia, indo diretamente em alguém que faça a pesquisa por elas. E é ótimo ter curadores de conteúdo, desde que, é claro, você consiga identificar se eles são confiáveis ou não.

E aqui entra um segundo problema: é muito tentador para o cérebro abraçar uma informação que, mesmo não sendo unanimidade, corrobora com o que a gente quer, com o que a gente acha justo, com o que a gente espera ou gosta. Isso se chama “viés de confirmação”.

O cérebro sempre quer gastar o mínimo de energia possível, por isso, é muito mais agradável confirmar algo que você já sabia do que desaprender o que você sabia e ter que reaprender algo novo no lugar. O cérebro fica feliz quando escuta algo que ele concorda, há recompensas químicas para o corpo. É difícil respirar fundo e questionar algo que está trazendo uma sensação gratificante.

Some-se a isso o excesso de informações que temos graças à internet (todos terem voz tem seu preço), o que torna a pesquisa ainda mais difícil e custosa para o cérebro, e temos o resultado: pessoas que delegam a pesquisa para outras e sempre tendem a acreditar naquilo que lhes agrada mais, pois desacreditar do seu curador de conteúdo (um pastor, um grupo no WhatsApp, um familiar) geraria um ônus enorme de ter que pesquisar.

Acredito que até aqui todo mundo já estava mais ou menos ciente de como a coisa funciona. A novidade é que estudos recentes de neurociência estão começando a apontar para uma realidade sombria: acreditar em coisas que corroboram com o viés de confirmação da pessoa gera efeitos no corpo similares ao de um vício em drogas.

Quando você tem uma rede de contatos no WhatsApp que o tempo todo te alimenta com informações que te agradam, que convergem para o que você quer e pensa, você pode ficar viciado nisso. Cada vez que chega uma mensagem nova, contando uma história nova, o corpo libera substâncias que provocam bem-estar. É como usar uma droga, comer um chocolate ou comprar algo que a pessoa quer muito.

Existe uma recompensa bioquímica, cujos efeitos são imediatamente sentidos pelo corpo e fazem a pessoa pensar “isto me faz bem, deve ser verdade”. E se a pessoa questiona e descobre que não é verdade, não apenas a recompensa some, como, em seu lugar, são segregadas substâncias que geram mal-estar, desilusão, desconforto. É como levar um fora da pessoa amada, sofrer uma reprovação em público – mesma sensação.

Isso, em parte, explica pessoas comemorando que Alexandre de Moraes foi preso ou que o exército vai tomar as ruas em uma intervenção militar por causa do artigo 142 da Constituição. São informações que poderiam facilmente ser averiguadas? Sim. A Constituição Federal está online, disponível para a consulta de qualquer um, mas a pessoa não o faz pois já aprendeu, como modo de funcionar, a delegar a pesquisa para aqueles curadores de conteúdo e a só aceitar o que ela quer que seja verdade.

Não tiro parte da responsabilidade de cada pessoa, mas acrescento que existe um mecanismo bioquímico que ajuda a empurrar uma pessoa nessa direção e, se esse padrão for repetido muitas vezes, se cria um caminho neural para onde a pessoa passa a cair automaticamente, sem sequer perceber o que está fazendo e muito difícil de desfazer, pois tem características fisiológicas de uma adição.

“Mas Sally, a pessoa não percebe sozinha que o artigo 142 não prevê intervenção militar? Quando o exército não chegar ela vai cair na real”. Não, ela não vai cair na real.

Como eu disse, é uma adição e o drogado precisa sempre de uma nova dose para se sentir bem. Chegará até essa pessoa uma outra narrativa que justificará a ausência do exército e que, por mais absurda que seja, será aceita, pois a pessoa é uma viciada e precisa dessa outra dose. Se a pessoa receber que o exército está sendo impedido de sair dos quarteis por maçons, gays, satanistas e argentinos, ela vai acreditar, pois a outra opção é muito dolorosa.

Quando a gente faz um Dia do Troll anualmente, contando uma mentira e tentando que vocês acreditem, é isso que estamos exercitando: nunca se acomodem cegamente nas mãos de nenhum curador de conteúdo. Se você sentir que aquela informação não bate, não faz sentido, pesquise. O curador de conteúdo é um apoio para que você tome as suas decisões, mas nunca deve se tornar o decisor.

Então, o cerne deste texto é que você reflita sobre esta possibilidade: encarar estas pessoas como viciados. São pessoas cujos corpos passam por sintomas similares à dependência de cocaína se você desmente algo de que elas gostam de acreditar.

Ninguém exige racionalidade e discernimento de um dependente de cocaína, principalmente quando ele está passando por um momento de abstinência. Então, por mais que dê vontade de olhar e falar “você é muito burro por acreditar nisso”, é algo que não ajuda e empurra a pessoa ainda mais para o “vício”: um grupo onde ela é aceita, ela conhece “a verdade”, ela é valorizada.

Vamos retornar ao começo do texto: essas pessoas, que são quase metade do Brasil, são viciadas, não sabem que são viciadas e não parecem ter a capacidade de sair desse buraco no qual se enfiaram. Há estudos que indicam que quanto menos prazer e bem-estar essa pessoa tinha em sua vida rotineira, mais viciada ela fica em obter prazer e bem-estar com esse vício por informações que satisfaçam seu viés de confirmação.

Então, provavelmente são pessoas que tinham uma vida muito triste, vazia ou infeliz ou tinham uma baixíssima autoestima e encontraram nesse mecanismo uma forma de se sentir bem. Tente tirar isso delas e você vai ver o que é a fúria de um ser humano. Já tentou tomar droga de um viciado para jogar na privada? Pois é.

Talvez metade do país esteja nessa situação, e essas pessoas se misturam na multidão e ficam irreconhecíveis no dia a dia. Podem ser o médico que vai atender seu filho, o engenheiro que vai construir seu prédio, a professora que vai ensinar sua filha, o policial que vai intervir quando você estiver em risco. E isso é muito perigoso, não por estas pessoas “votarem no Bolsonaro” e sim por estas pessoas estarem com seu discernimento, no geral, severamente comprometido.

Quem acredita nas grotescas fake news bolsonaristas, perdeu por completo o discernimento e provavelmente acreditará em qualquer outra informação falsa, mesmo não vinculada a política, se estiver de acordo com seu viés de confirmação. E hoje o que não falta na internet é informação falsa: a terra plana ganhou milhões de irmãozinhos.

Um exemplo disso são médicos que acreditam até hoje que cloroquina ou ivermectina cura covid e não faz mal ao paciente. São pessoas que perdem inclusive a capacidade de autopreservação, tomando medicamentos que fazem mal, colocando sua vida e a da sua família em risco, acreditando piamente que estão fazendo o melhor. E esse é o grande problema para vocês agora, não o “bolsominion que enche o saco”.

Quando a poeira abaixar e o eleitor do Bolsonaro não foi mais identificável “a olho nu”, surge um problema: cada prestador de serviços, cada profissional, cada pessoa encarregada da sua segurança ou saúde pode ser um viciado que só acredita no que seduz seu viés de confirmação e não pesquisa (ou não sabe pesquisar de modo a chegar na verdade) e vai tomar uma péssima decisão, talvez causando danos a você e à sua família.

ESSE é o problema. “Chupa Bolsonaro Lula é Presidente” não significa absolutamente nada. O viciando em viés de confirmação existe e, provavelmente metade do país está nessa situação. Isso vai prejudicar a todos vocês pelas próximas décadas.

O que fazer? Primeiro parar de escrotizar essas pessoas, pois você só as empurra mais e mais para esses guetos onde elas são aceitas. Quando um grupo te escrotiza, o que resta é correr para o grupo que te aceita e abraçar o que eles dizem.

Depois, começar um processo de desintoxicação para tentar tirar esses viciados disso, o que é extremamente difícil, mas, com persistência, amabilidade e criatividade, pode ser feito. Você já viu um viciado em drogas, em pornografia, em bebida ou em jogo? Eles nunca acham que estão viciados, eles nunca acham que isso prejudica suas vidas, eles sempre acham que param quando quiserem.

Eu não me atrevo a, em quatro páginas (na verdade, já gastei 3, falta uma) traçar um plano sobre a melhor forma de tirar essas pessoas do vício de delegar a pesquisa e tender para o viés de confirmação. Portanto, este texto se destina a dar uma diretriz geral a quem interessar possa: em vez de xingar, antagonizar, tentar argumentar racionalmente (viciado não é racional, viciado faz o que for para manter o vício), excluir, agredir ou marginalizar, tentem olhar para essas pessoas como viciadas.

O que você faria para ajudar um viciado? Uma das formas mais eficazes de manter um viciado longe do vício é ajudá-lo a descobrir e incentivar atividades que acionem centros de prazer e recompensa, assim ele terá outra forma de conseguir bem-estar e não se sentirá tão dependente da droga. Existem centenas de caminhos, mas esculachar não é um deles.

Este é um problema novo, que ainda não está sendo debatido como merece. Quem sabe um dia isso até ganhe um nome e um protocolo oficial de conduta para tirar as pessoas desse estado zumbi… Mas, enquanto isso não acontece, eu sugiro que cada um comece a fazer a sua parte para, ao menos, não piorar a situação. Quando mais você escrotizar, excluir e criticar essas pessoas, mais necessidade elas terão de recorrer ao vício para sentir bem-estar, aprovação e autoestima.

E, vamos pensar em uma hipótese por um segundo? Não é raro que um viciado, quando finalmente percebe que um vício está lhe fazendo muito mal, o substitua por outro. Já pararam para pensar se, em algum momento, essa horda de viciados resolve ir para o outro lado politicamente falando? Já pensaram que nefasto ver o seu posicionamento político dominado por isso?

A qualquer momento, qualquer um de vocês pode ficar em uma situação de vida e morte nas mãos de um viciado desses, completamente sem bom-senso e sem discernimento. Então, não é bondade, não é favor, não é caridade resgatar essas pessoas e ajudá-las a acordar. É consciência. É saber que não dá para ser feliz em um país onde metade da população tem seu discernimento totalmente comprometido. Uma hora vai respingar em você.

O que você vai fazer? Saciar seu ego, apontando, rindo e dizendo que você está certo ou estender a mão para que essa pessoa saia do vício e, quem sabe, o Brasil possa ter uma sociedade menos disfuncional?

Para dizer que vai ficar no ego mesmo, apontando e rindo, para dizer que não é problema seu (se te afeta, é problema seu) ou ainda para dizer que eu estou “passando pano” comparando o comportamento dessas pessoas com uma doença: sally@desfavor.com

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Comments (14)

  • É extremamente difícil se comunicar com o fanático porque as circunstâncias blindaram ele. Não importa que tipo de informação você apresente, ele já parte do princípio que a informação é falsa ou então “tirada do contexto”. Mesmo que seja um vídeo.

    • Populismo (tanto faz se de esquerda ou direita) + costume de considerar presidentes como salvadores da pátria + fé cega em qualquer um que pareça ter qualquer tipo de autoridade e “fale bonito”= país eternamente afogado na própria merda.

  • Eu penso muito nessa galera como membros de uma seita. A questão é: como se faz alguém sair de uma seita? É um processo bem longo e difícil fazer a “desprogramação”…

    • É difícil e eu nem sei te dizer como se faz. A única coisa que tenho certeza é que escrotizando, antagonizando e “combatendo” só se joga a pessoa ainda mais para dentro da seita.

  • Isso do cérebro poupar energia estou sentindo na pele.

    Para ler os textos daqui, levo alguns minutos (pois já estou habituada, inclusive). Pra traduzir do português para inglês para aprimorar minhas habilidades, levo horas e me distraio rápido (especialmente nas pausas para qualquer coisa).

    Se eu for escrever um texto sem ser uma ficção e que requer informações fundamentadas de fontes confiáveis, vou levar até semanas para concluir.

    Quanto aos viciados, bem, já “perdi” algumas pessoas muito queridas nisso. Não importa o que ouçam, elas insistem no que compraram… E é exatamente por isso que eu desgosto de militantes e de quem bate palma pra eles. São traficantes e os cidadãos aliciados/atacados os usuários.

    • Sim, essas pessoas agem como traficantes: alimentam o vício, fornecem a droga e em troca pedem devoção à causa. Uma canalhice sem fim!

      • Eu estou completamente anestesiado, acho que meu próprio organismo já cansou de sentir qualquer coisa, seja boa ou ruim, por política.
        Tinha vezes que eu sentia até coração acelerado, refluxo e dores de cabeça quando lia notícias. Não mais.

        • Não é para sentir coisas negativas, não adianta nada, não resolve nada. É apenas para não escrotizar as pessoas, pois isso só piora.

          Não me refiro a humor, humor é sempre bem-vindo, nós somos do time que acha que pode fazer piada com tudo. Me refiro a tratar como inimigo.

      • A simples ideia de o Brasil um dia vir a dar certo já nem passa mais pela minha cabeça. Ter esperanças de que esta joça possa ter um futuro melhor chega a ser até devaneio…

  • “Quando a gente faz um Dia do Troll anualmente, contando uma mentira e tentando que vocês acreditem, é isso que estamos exercitando: nunca se acomodem cegamente nas mãos de nenhum curador de conteúdo. ”
    Sugestão: não ter uma data fixa, e sim qualquer dia aleatório.

    • Isso seria muito complicado, pois minaria a confiança que o leitor tem na gente. Preferimos que 364 dias no ano as pessoas leiam com total confiança.

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