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A culpa não é dos seus pais.

A culpa não é dos seus pais.

| Sally | | 12 comentários em A culpa não é dos seus pais.

Minha falecida mãe, psicóloga e psicanalista, costumava dizer a seguinte frase: “os filhos sobrevivem aos pais”. Pais são seres humanos, portanto, falhos. Tudo piora em um país que não dá tanto valor à psicologia, psiquiatria e saúde mental. Tudo piora ainda mais se a gente pensa no grau insano de demandas, exigências e estresse do dia a dia. Pais errarão com os filhos. Errarão muito, mesmo com a melhor das intenções. É inevitável. O ponto é: o que nós decidirmos fazer com esses erros.

Vejo novas gerações de vitimizando demais, colocando culpa nos pais, atribuindo a erros deles características, defeitos e dificuldades suas. Aqui mesmo nos comentários às vezes aparecem umas coisas que me fazem suspirar alto e pensar para onde vamos quando essa geração estiver nos principais cargos de chefia do mundo. Hora de uma verdade dura: o que você é hoje não é o resultado do que seus pais fizeram com você e sim do que você fez com o que seus pais fizeram com você, ou seja, o que você é hoje é responsabilidade 100% sua.

Não estou dizendo que abusos, erros graves e maus tratos não deixem sequelas. Estou dizendo que, não importa o que tenha acontecido com você, existem muitas formas, caminhos e recursos para superar e ser quem você quer ser. E não necessariamente dependem de dinheiro. Dependem de uma escolha pessoal, interna sua. O que você quer fazer com isso?

Já conversamos sobre isso em outro texto: as pessoas fazem o que acreditam ser o melhor, dentro das suas possibilidades. Todos nós fazemos nosso melhor. O melhor de algumas pessoas é uma porcaria insuficiente? Pode ser. Provavelmente essa pessoa também não recebeu nada melhor do que isso e enfrenta severos obstáculos e restrições para fazer melhor. Cabe a você quebrar esse círculo e ter a consciência de não deixar que isso determine quem você é.

Claro, é muito mais fácil se acomodar com seus defeitos e limitações atribuindo tudo a erros de criação, falta de consideração e abusos sofridos. Culpar os outros, culpar fora, é sempre mais fácil. Colocar as consequências como inevitáveis é mais fácil. Mas, se a gente parar para pensar, verá que outras pessoas que sofreram os mesmos problemas não necessariamente tiveram as mesmas respostas, sequelas ou limitações. Então deve ter algum componente subjetivo aí, não é mesmo?

Você tem o controle de como os erros dos seus pais irão te impactar e impactarão a sua vida. Você não é uma vítima do erro dos seus pais, você é um ser humano em uma jornada para lidar da melhor forma possível com eles. E se você ainda não começou essa jornada, comece hoje. Para o resto da sua vida você olhará para trás e será grato por ter começado.

O primeiro passo é assumir que a responsabilidade é sua. Não é dos seus pais, não é da sociedade, não é de mais ninguém. É só sua. Todo mundo passa por privações, eventos tristes, eventos traumáticos e muitas outras fontes de desgraçamento mental. Uns mais, outros menos, mas, em alguma medida, todos nós estamos travando algumas batalhas internas. Então, respire fundo e esqueça os outros e o que eles te fizeram, daqui para frente é sobre o que você vai fazer com o que te fizeram.

Um bom começo é retirar seus pais do papel de vilões. Salvo que sejam psicopatas, eles estavam fazendo o melhor que podiam com a educação que receberam, com realidade na qual viveram, com o preparo emocional que tinham. Não adianta olhar sob a luz da sociedade atual o que pais deveriam ter feito 10, 20, 30, 40 anos atrás. Eram outros tempos, havia menos acesso a informação e, se for antes dos anos 90, criança nem gente era.

Da mesma forma que existem pessoas com deficiência física, que não podem andar, que não podem falar, que não podem ver, existem pessoas com deficiências emocionais. Pessoas que são incapazes de alguns tipos de afetos, relacionamentos ou trocas por uma série de fatores que aconteceram em suas vidas e nunca foram tratados.

Talvez seus pais sejam deficientes emocionais. É uma questão relativamente recente, não se falava sobre isso antes dos anos 2000, portanto, eles não tiveram oportunidade de trabalhar o problema. Talvez eles sequer tenham a compreensão de sua deficiência emocional. Outros tempos: a gente era o que a gente era e se virava com isso aí. Terapia era “coisa para maluco”. Mas os tempos mudaram, você pode ser melhor do que isso.

E você só pode mudar a você mesmo, não pode mudar os outros. Se seus pais são deficientes emocionais, em vez de raiva, revolta ou cobrança, eu recomendo um pouco de compaixão e acolhimento. Ninguém grita com um paraplégico para que ele caminhe. Não cobre o que o outro não pode te dar. Não cobre o outro. Foco em melhorar a você mesmo.

Seus pais estavam fazendo o que eles podiam, o que eles achavam melhor, o que eles, dentro das inúmeras limitações (emocionais, financeiras, educacionais e muitas outras) achavam mais adequado. Erraram? Com certeza. Mas esses erros não precisam determinar quem você é. Quem você é é uma construção sua, você pode pegar “bloquinhos” para montar quem você é em infinitas fontes, não apenas nos seus pais e nos erros que eles cometeram.

Você tem traumas, medos, dificuldades? Bem-vindo ao clube, todos nós temos. A grande pergunta é: o que você faz para tentar superá-los e ser melhor, se sentir melhor, viver melhor? Existem infinitas possibilidades. E ficar onde está culpando os seus pais não é uma delas, não para um adulto funcional.

Você pode procurar ajuda de profissionais sérios (psicólogos, psicanalistas e psiquiatras) de forma gratuita ou pagando um valor simbólico. Existem diversos institutos que fazem esse trabalho. Existem faculdades e universidades que fazem esse trabalho. Uma busca rápida no Google te ajuda a descobrir como, quando e onde. Olha que privilégio viver nos tempos atuais, nos quais consultas podem ser feitas por videochamadas! Tenho certeza de que em todo o Brasil você encontrará ao menos um profissional que possa te atender.

Também é possível procurar por vídeos, palestras, cursos, depoimentos online ou qualquer outra fonte sobre o que você vivenciou e acredita ter te impactado de forma negativa. Claro, fontes que falem sobre como superar isso, não que acrescentem raiva e revolta. Muitas vezes um depoimento sincero no Youtube ajuda a ver a coisa com outros olhos. Uma live ajuda a ressignificar. Uma aula explicando de onde isso veio te dá ferramentas para virar uma página. Seja proativo e curioso, pesquise, procure, escute. Com sorte, no caminho, você encontra pessoas que digam algo que te ajude.

Problemático era quando não existia internet, quando não existia a menor possibilidade de ter acesso a informações de forma fácil, rápida e gratuita. Hoje tudo vai depender da sua disposição em se fazer responsável por sua melhora e usar seu tempo com essa prioridade.

Outro ponto importante para começar essa jornada é acreditar que você tem a força necessária para superar isso. Eu aposto o que vocês quiserem que aparece ao menos um comentário no estilo “Você acha que é fácil?” neste texto. Bem, agora que eu mencionei, talvez não apareça. Mas muita gente vai pensar “você acha que é fácil?”.

Eu disse que era fácil? Aponte o trecho do texto no qual eu disse que era fácil. Eu nunca disse que seria fácil, eu disse que é possível, e que é uma jornada, uma caminhada, um processo gradual. E você só vai conseguir esta jornada se acreditar que pode fazê-lo. A limitação está apenas na sua cabeça. E cá entre nós, é vergonhoso que eu tenha mais fé em você do que você mesmo, hein? Não caia nessa armadilha de decretar que não dá. Dá sim. Dizer que não dá é só se esconder.

“Mas Sally, eu não acho que possa fazê-lo”. Beleza. Então antes de começar a jornada vamos fortalecer essa autoestima, essa autoconfiança, essa autoimagem. Entenda de onde vem essa falta de confiança em você mesmo e procure desconstruir as crenças que te paralisam e te fazem pensar que não vai conseguir. E aqui valem os mesmos recursos de antes: assista a vídeos, faça terapia, converse com pessoas que já passaram por isso, leia, beba de todas as fontes que falem sobre o assunto de forma construtiva e proativa para tentar se fortalecer e começar a jornada.

Depois que você entender que seus pais estavam fazendo o melhor, que existem pessoas com deficiências emocionais e que você tem o poder de determinar o quanto os atos de terceiros vão te impactar, vem a hora do perdão. Não é um evento, uma cerimônia ou uma declaração. É interno, silencioso, em quietude.

Perdoar os seus pais pelos erros que eles cometeram com você, ciente de que provavelmente eles não podiam fazer diferente. Perdoar a você mesmo se em algum momento você acreditou ser merecedor desses maus tratos, negligências ou erros. Perdoar a si mesmo se em algum momento sentiu raiva, ódio ou outro sentimento negativo por eles. Perdoar a você mesmo se até agora não conseguiu ver as coisas com clareza, levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima. Perdoar todas as mágoas e sentimentos negativos para poder virar a página.

Parece bobagem, mas o perdão é importante. Falta de perdão, principalmente de perdão consigo mesmo, leva a culpa. E culpa é uma âncora que só te afunda e mina sua saúde mental. E é uma âncora silenciosa, que muitas vezes fica ali escondidinha no seu inconsciente e você nem percebe. Então, sem a necessidade de dizer uma palavra (só se você achar que precisa dizer), trabalhe o perdão dentro de você. O outro nem precisa saber.

E, não custa esclarecer, por mais óbvio que seja, perdoar não é uma afirmação. Não basta repetir que perdoa alguém, tal qual irmãos emburrados que saíram no tapa quando a mãe ordena “pede desculpas para o seu irmão a-go-ra!”. Isso é desculpas da boca para fora. Perdão é abrir mão de um sentimento negativo. É passar uma borracha. É zerar qualquer mágoa, ressentimento ou pendência. Perdão é deixar ir. Solte. Deixe ir. Vire a página.

E esse deixar ir é unilateral. É um trabalho só seu. Não precisa de admissão de culpa do outro lado, de reconhecimento do que fez, de nada. É você, sozinho, dentro de você quem vai fazer a escolha de soltar isso, de não viver imputando esse peso e essa responsabilidade. Fizeram com você o melhor que era possível dadas as circunstâncias, cabe a você fazer o seu melhor para lidar com isso, inclusive para se desfazer disso.

Pode não ser rápido, pode não ser automático, mas é possível. Tudo depende do quanto você quer e do quanto você investe nisso. Existem muitos caminhos e você terá que testar e encontrar o seu. Para mim, o caminho mais eficiente é a empatia, é o se colocar no lugar da pessoa, naquela circunstância, analisando as ferramentas que a pessoa tinha e tentar compreender o que levou às decisões bostas. Tentar não julgar. Tentar tirar o peso desses acontecimentos da sua vida.

“Mas Sally, são pessoas que ainda me fazem mal”. Se te fazem mal, afaste-se. Ninguém tem que ser obrigado a se colocar em uma situação de violência. Porém, isso não impede o perdão. Dá para compreender, perdoar e se afastar até que você consiga lidar com essas pessoas sem que elas te façam mal. Se você nunca chegar lá, que pena, o afastamento será permanente. Se um dia você conseguir compreender que as coisas têm a importância que a gente escolhe dar a elas e terceiros não puderem mais te abalar, será possível uma reaproximação.

Situação compreendida, envolvidos perdoados, é hora de correr atrás do tempo perdido. Em que esfera da vida os erros dos seus pais te impactaram? Fortaleça-a. Trabalhe, desenvolva e alimente aquilo que você se julgava incapaz, que acreditava ser seu ponto fraco. Pode ser o físico, pode ser um aspecto emocional, pode ser relacionamento, tanto faz. Assim como um músculo lesionado precisa de atenção e exercícios para recuperação, um emocional lesionado também.

Seu trauma está relacionado a físico? Vai malhar, para ganhar massa ou emagrecer ou mudar o que quer que te faça sentir mal. Está ligado a relacionamento? Leia livros sobre, assista vídeos sobre, com a mente aberta e buscando bons curadores de conteúdo (e não gente que caia no seu viés de confirmação). Converse com quem tem bons relacionamentos, escute. Esteja aberto, observe qual é a sua parte para que a coisa não dê certo. Tire o foco do outro, não existe nada fora, o que aparece fora é o resultado do que você está mostrando ao mundo de dentro de você. Quem planta merda, colhe bosta. Pare de plantar merda e vai parar de colher bosta.

Trabalhe a área que você acredita ter ficado defasada. O que somos na vida, o que aprendemos na vida, o que executamos na vida vai muito além dos nossos pais. Eles não puderam te dar o suporto para essa área ficar do jeito que você gostaria? Ok, agora você é um adulto, não mais uma criança, e pode providenciar isso por você mesmo. Providencie. E se não providenciar, pare de culpar os outros, pois foi uma escolha ou inércia sua.

E, por fim, vigilância, eterna vigilância. Você identificou onde estão seus pontos fracos, suas zonas problemáticas. Fique sempre de olho para não correr de volta para o mesmo buraco de onde saiu, principalmente em tempos difíceis. Todos tendemos a isso. Esteja atento e desfaça qualquer retrocesso assim que o identificar.

Cabe a você, e só a você, escolher quem quer ser. Já deu de culpar algo externo: pais, as mulheres, os homens ou caralho a quatro. Hora de ser adultinho e responsável pela construção de quem você quer ser.

Para dizer que prefere botar a culpa nos outros, para dizer que para mim é fácil sem saber absolutamente nada da minha vida ou ainda para dizer que quem culpa os pais por tudo paga a língua quando tem filhos: comente.


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