O que você é?

O que você é? Você conhece sua essência? Cuidado para não cair na armadilha de se definir da forma errada, algo que só gera culpa, dor e angústia. Não se limite, provavelmente você é muito mais do que imagina.

Vamos começar pelo básico, que não deve ser novidade para ninguém que está aqui: você não é o seu corpo. Em tese, acredito que ninguém vai discordar, afinal, todo mundo já viu algum caso de um corpo que, apesar de continuar com suas funções vitais, não tinha mais “ninguém” dentro. Um corpo, por si só, não tem consciência, não tem vontade, não tem capacidade criativa.

Porém, na prática, todos nós em algum momento praticamos atos compatíveis com a ideia de que somos nossos corpos. Por exemplo, gente que mantém algum contato físico com outra pessoa e acredita que assim está obtendo intimidade ou possibilidade de afeto. O corpo, por si só, não é capaz disso, portanto, isso não deve ser buscado exclusivamente através dele.

Esfregar um corpo no outro não é e nunca será sinônimo de intimidade, muito menos de afeto. O corpo é algo que você momentaneamente tem, não que você é. Já fizemos essa comparação aqui outras vezes: é como uma pessoa que precisa de um carro para ir trabalhar e fazer suas tarefas diárias, ou seja, corpo é uma ferramenta.

É importante, é ferramenta para que a pessoa possa viver sua vida, cumprir suas metas e desenvolver seu potencial, mas não é a pessoa, é o carro da pessoa. Tem que cuidar bem dele, não porque você seja ele, mas por ele ser uma ferramenta que te permite realizar qualquer coisa no mundo no qual você se encontra.

Ninguém anda com um carro todo cacarecado por perceber que a pessoa não é seu carro, certo? É necessário e inteligente cuidar das ferramentas que nos ajudam e nos beneficiam. Seu corpo te influencia, influencia sua vida e é o que te mantém aqui, nesta existência, neste mundo. Mas definitivamente não é o que você é.

Você não é seus erros. Seus erros fazem parte da sua vida, te afetam, geram consequências, mas de nenhuma forma traduzem quem você é. Seus erros nem mesmo são a parte mais importante da sua vida. O mais importante é como impactamos de forma positiva as pessoas e o mundo, o que deixamos como legado para o mundo.

E esse impacto não precisa ser nada grandioso, ninguém precisa curar o câncer para deixar um impacto positivo para o mundo. O grandioso traz, mais do que qualquer outra coisa, fama, e fama não tem que ser meta para ninguém. Faz o seu, faz em paz, faz em quietude. A maior parte das ações que realmente importam e realmente melhoram o mundo e outras pessoas não geram fama.

É muito comum que a sociedade queira nos resumir aos nossos erros: você é um fracassado pois perdeu o emprego ou você é um mentiroso pois não fez algo que prometeu fazer. Nós mesmos usamos esse termo aqui: “fulano é”. Sabemos que, em essência, a pessoa não é isso, ela apenas se portou assim, mas, na falta de uma forma mais prática para expressar, todos nós repetimos o “Fulano é”.

Por isso, muito cuidado ao ouvir o “você é”, isso não tem que ser uma sentença sobre você. Provavelmente, você não seja nada disso, apenas estão tatuando um erro seu na sua testa e não permitindo que ele caia no esquecimento, estão te estereotipando e criando uma crença negativa sobre você, que, se você engolir e vestir a carapuça, pode te prejudicar muito na vida.

Todos nós erramos, não somos nossos erros e, se fosse para usar esse critério falho. esse critério, eu prefiro pensar nas pessoas como somatório dos seus acertos. Infelizmente, para que as outras pessoas se sintam menos falhas, mais virtuosas e se sintam melhores consigo mesmas, um dos caminhos mais fáceis é iluminar o erro alheio, resumindo a pessoa a isso. Você não é os seus erros.

Você não é nada externo a você. Você não é seus gostos, sua ideologia, sua profissão, seu status social, seus ídolos, seu patrimônio. Você não é comunista, você não é capitalista, você não é marido, você não é esposa, você não é pai, você não é mãe, você não é advogado, você não é médico, não é rico, não é pobre. Tudo isso são papéis, muitas vezes transitórios, que você exerce e que não deveriam te definir.

Por falta de autoconhecimento e aprofundamento, muita gente se “fantasia” de algo externo para “ser” isso. Se por um lado é engraçado (a pessoa incorpora gostos, trejeitos, aparência e tudo mais que se espera do grupo que supostamente a define), também é muito pouco, muito superficial, muito vazio. Você é muito mais do que uma profissão, um status social ou familiar. E tentar se limitar a essa pequena definição gera muito vazio, muita angústia, muita incompletude.

Qualquer definição de você que precise usar de elementos externos está errada: outras pessoas, uma profissão, um evento, uma classe, um grupo ou qualquer outra referência externa será ilusória, transitória e imprecisa. Nada fora de você pode te ajudar a responder quem você é. A resposta está dentro. A resposta está sempre dentro. Tudo que está fora é alegoria.

Sutilizando um pouco mais a questão, entramos em outro tópico, que costuma ser o erro mais comum: acreditar que você e seus pensamentos são o mesmo. O que você pensa não é o que você é. Você não é os seus pensamentos, você é o observador que observa esses pensamentos. Se você pode observar algo, você não é esse algo, você está fora desse algo olhando para ele como observador.

Parece óbvio, mas, no dia a dia, muitas vezes, todos nós nos comportamos como se fôssemos nossos pensamentos, pois isso nos foi ensinado e reforçado a vida toda.

É reforçado de diversas formas. Por exemplo, por muitas religiões: se você tem pensamentos errados você é um pecador, o mero fato de pensar algo pode gerar uma penitência. Também é reforçado pela sociedade, que não hesita em colar um rótulo na sua testa por causa de um pensamento ou opinião (você pode ver como fazem conosco nos comentários). Se você pensa X então você é Y.

E isso é um perigo, pois se você acha que você é um pensamento ou sentimento, vai se identificar com ele e ter dificuldade em deixar ele ir, afinal, quem é que quer abrir mão daquilo que é? Por isso é tão importante entender que você não é seus pensamentos, assim você consegue deixar eles fluírem sem se apegar a eles.

“Mas Sally, às vezes eu nem sequer penso, apenas sai uma reação, então, ela não é fruto dos meus pensamentos, pois não é pensada, é basicamente o que eu sou”. Não, não é.

Na maior parte das vezes vivemos no piloto automático, um mecanismo que nosso cérebro desenvolveu para poupar energia. Nosso pensamento analítico, aquele que nos obriga a parar, analisar e raciocinar, consome energia demais, tornaria nossa existência impossível viver assim o dia todo. Por isso o cérebro tem um sistema de resposta automática que está no comando a maior parte do tempo.

Sabe quando você reage de uma forma a algo e muitas vezes nem entende o porquê? É esse sistema automático. Estima-se que apenas em 5% do nosso tempo usemos pensamentos analíticos, ou seja, decisões sobre as quais você reflete consciente e racionalmente. Todo o resto é produto desse sistema de pensamentos automáticos, que podem tranquilamente ser mudado com um pouco de disciplina e vigilância para criar novos caminhos neurais.

Logo, ainda que pareça um pensamento ou uma resposta “intuitiva”, vinda diretamente do que você é, isso não é verdade. Você não é os seus pensamentos.

Pensamentos mudam o tempo todo, e que bom que mudam. O que você é em essência não muda. “Mas Sally, eu era muito ciumento e mudei o que sou”. O que você é não é “ciumento” (e vale para qualquer outro adjetivo). Isso são atributos do ego, que passam bem longe da sua essência. São alegorias, crenças, construções sociais.

Ninguém “é católico”, ninguém “é vegano”, ninguém “é de direita ou esquerda”. Um ser humano vai muito além disso, muito além dessas escolhas, muito além da adesão a um grupo. É um verdadeiro absurdo limitar uma pessoa a um grupo ao qual ela aderiu. É mais do que absurdo: é condená-la a ficar presa a esse grupo sob pena de perder a sua identidade. A pessoa está, naquele momento, alinhada com um desses pensamentos, mas, no dia seguinte tudo pode (e deve) mudar. A pessoa não é seus pensamentos, é o observador que observa esses pensamentos.

Assim como você não é seus pensamentos, você também não é seus sentimentos. Você pode estar irritado, estar triste, estar cansado, mas você não é isso. E não estou aqui mandando ignorar seus sentimentos, pois essa é a receita mais garantida para ter sérios problemas. Tome consciência dos seus sentimentos, olhe para eles, compreenda-os, reconheça-os, mas saiba que você não é isso. Você é o observador que sente isso.

Na teoria é fácil, porém, algumas vezes sentimentos são tão grandes e fortes que eclipsam o que nós realmente somos e nos confundimos com eles, pois eles nos tomam, nos invadem, nos dominam. Quando eles crescem desmedidamente, acabam se sobrepondo a todo resto. Vamos colocar da seguinte forma: uma pessoa em um poço cheio de merda, coberta de merda até o último fio de cabelo, não é merda. É uma pessoa coberta de merda.

Mas, por não saberem o que são, muitas pessoas preenchem esse espaço em branco, esse grande ponto de interrogação, essa lacuna, com sentimentos. Seja por acharem bom para sua imagem, seja pela incapacidade de conviver com uma pergunta aberta sem resposta.

Tem gente que gosta de “ser” com personalidade forte, de “ser” ambiciosa, de “ser sedutora”, de “ser espiritualizada” ou de “ser caridosa” e veste isso como uma segunda pele, como aquilo que “é”, se colocando em uma situação sufocante e nociva para sua saúde mental, que a obriga a desempenhar esse papel não importam as circunstâncias. É pesado demais carregar essa máscara. Você é muito mais do que qualquer um desses papéis, não se limite a eles. Você não é seus sentimentos, você é o observador que observa esses sentimentos.

Se você ainda não sabe o que você é, tá tudo bem, é uma pergunta realmente difícil de responder quando somos criados no meio de tantas crenças sufocantes e com tão pouca educação emocional/espiritual. Deixe a pergunta em aberto em vez de preencher com algo da matéria, do mundo material, externo.

Melhor do que enfiar qualquer resposta na lacuna, só para não ficar sem resposta, é aprender a deixar o espaço aberto, ir colhendo informações, insights, amadurecendo ideias e só responder quando realmente tiver condições. Se você deixar um espaço aberto, a informação certa encontrará um lugar para entrar quando ela cruzar a sua vida. Se o espaço estiver ocupado, talvez ela passe direto.

O fato de um sentimento eventualmente se apoderar de você, dominar sua vida e nortear seus atos não quer dizer que você seja isso, quer dizer que quem está mandando em você é a sua mente, quando deveria ser o contrário: você deveria controlar sua mente e não ela controlar a você.

Então, mesmo que um sentimento te domine, ganhe completo protagonismo na sua vida, determine suas ações, escolhas e projetos, ainda assim, não é o que você é. Você não é seus sentimentos. Você é o observador que observa esses sentimentos.

E, por falar em mente, você não é a sua mente. Eu sei que aqui eu vou perder muitos de vocês, pois é o ponto no qual a coisa fica subjetiva demais, incompatível demais com tudo que conhecemos. É provável que, daqui para frente, você pense “aí não, aí foi longe demais”, como eu mesma pensaria alguns anos atrás. Tá tudo certo, ninguém tem que concordar comigo, apenas queria advertir sobre uma possível resistência que geralmente aparece.

Você não é a sua mente. Você não é essa “voz” na sua cabeça que pensa, pondera, decide. Inclusive, é bem possível que essa “voz” na sua cabeça esteja te dizendo agora mesmo que você não tem uma “voz” na sua cabeça. Irônico, não?

Sua mente é influenciada, contaminada e induzida por uma infinidade de fatores externos (educação, sociedade, etc.) e internos (traumas, medos, etc.) E você não é nada disso. Você não é uma imposição social tanto quanto não é um medo ou trauma.

A mente é o resultado da ação do seu cérebro, uma mera disfunção bioquímica pode alterá-la: causar alucinações, impulsos agressivos e coisas ainda piores. Pela abstração da palavra, acabamos atribuindo mais ao conceito de “mente” do que deveríamos. Mente está ligada à atividade do cérebro humano, a questões intelectuais, cognitivas e comportamentais.

Mente não é alma, não é espírito, não é nada além da percepção do seu cérebro do mundo, que, por muitas vezes, é falsa, distorcida ou errônea. É a clássica frase: “a mente nos engana”. Quem já viu um único episódio do programa “Truques da Mente” sabe o quanto nossa mente/cérebro é imprecisa, manipulável e falha. Você não é o seu cérebro, muito menos a percepção de mundo do seu cérebro.

Porém se acreditamos que somos nossa mente, nos identificamos com isso e deixamos o volante nas mãos da mente, pulamos para o banco do passageiro. O resultado, obviamente, não é bom. Quando quem está no controle é manipulável, falho e nem sempre consegue ver bem a realidade, é questão de tempo até surgirem problemas.

O fato de poder observar a sua mente, o que ela acha, o que ela diz, o que ela julga, é a maior prova de que você não é a sua mente, é o observador que observa a sua mente.

Vai dizer que você nunca se pegou observando sua mente? Nunca sentiu um “nossa, hoje eu estou pessimista” ou “hoje eu estou tão irritado, o que houve?”. Se você observa, então você não é aquilo, é o observador que observa aquilo.

E é nisso que muitas pessoas se escoram para dizer que quando morremos não desaparecemos: nós não somos apenas nossa mente. Mas esta é uma discussão inútil, pois, a verdade nenhum de nós sabe (e fuja de quem acha que sabe, essa pessoa deveria ser menos arrogante). Portanto, vamos deixá-la de lado e prosseguir com o tema de hoje.

“Mas Sally, então, o que eu sou?”. Você não vai ficar feliz com isso, mas este texto não vai te dar a resposta, por um motivo muito simples: ninguém te ajuda em nada te dando uma resposta.

Não te ajuda por dois fatores: 1) está todo mundo nessa jornada e, no geral, estamos todos em busca, como você e 2) receber a resposta te privaria dessa jornada que, em última instância, é basicamente o grande propósito da nossa existência. A resposta só pode ser construída e compreendida se você passar por toda a expansão de consciência que é a jornada. Você não emagrece só por alguém te contar quais exercícios faz na academia, certo? Você pode pegar boas dicas, mas você só emagrece se você for lá e executar os exercícios diariamente. É isso.

Então, procure entender o que você é. Não quem você é, o que você é. Não procure com pressa, cobrança ou angústia. Apenas procure com leveza e curiosidade. Não procure fora, em coach, não em guru, em técnicas de terapias alternativas. Apensas procure dentro de você. As respostas estão todas, eu disse todas, dentro de você. É só silenciar a mente, olhar para dentro e ter a cabeça aberta o bastante para ver.

Para dizer que se soubesse que eu não ia responder não teria lido até o final como se fosse coerente eu te dizer o que você é, para dizer que não quer ter trabalho e vai aderir a uma resposta religiosa pronta ou ainda para dizer que você é um leitor do Desfavor (dentre as opções, essa nem é tão ruim): sally@desfavor.com

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Comments (6)

  • Subterranean Homesick Alien

    Sally, este texto mudou minha vida. Obrigado. Sempre tive este sentimento mas não sabia colocar em palavras.
    Foi algo que me ajudou a superar/lidar com ansiedades, e outras emoções de maneira melhor. Saber que eu sou um observador, e ver essas emoções passarem pela minha consciência sem reagir ou pensar que sou estas emoções.

    • Fico muito feliz!

      Exercite essa percepção de se observador e com o tempo ela vai se tornar algo natural. Eu estou exercitando também…

  • Uma das coisas que se aprende em Biologia é que os pensamentos e sentimentos são resultados de funções fisiológicas, assim como o xixi e o cocô. A diferença é que a descarga funciona.

  • Vai ver, o motivo de haver tanta gente infeliz nesse mundo seja justamente o fato de que a maioria jamais olhou pra dentro de si mesmo, e porque nunca se entendeu, também não faz a mínima ideia do que realmente é. Isso sem falar nos que até olharam pro seu próprio âmago, mas não gostaram nem um pouquinho do que viram…

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