Avenue 5

Ou, como eu resolvi aceitar o mundo moderno. Avenue 5 é uma série de humor da HBO Max estrelando Hugh Laurie, mais conhecido como o Dr. House. Estava com um mau pressentimento antes de clicar para assistir, ele foi confirmado… mas mesmo assim, é uma das melhores séries de humor dos últimos tempos! Como isso é possível?

Vamos situar: é uma série sobre um cruzeiro no futuro. Apesar de se passar numa nave espacial, a parte de ficção científica é apenas o ambiente da história, o gênero é humor e tudo gira ao redor das pessoas, não precisa entender nada de nada de ciência e tecnologia para aproveitar as piadas.

O que meio que me desanimou no começo, mas eu mantive em mente que se o House leu um roteiro de humor e topou participar, deveria ser algo bacana. Foi um tiro certo: assim que as personagens se estabelecem, a história começa a funcionar, e por consequência, a graça. Não é uma série de piadinhas e risadas enlatadas, o humor deriva quase todo do desenrolar caótico da situação na nave Avenue 5 e às reações das pessoas a isso.

Eu não sei exatamente onde colocar a comparação aqui, mas tem um quê de Idiocracy e Arrested Development na “incompetência capitalista” que dá a base da história. Não espere o exagero do filme ou a velocidade insana das piadas da série, mas com certeza você vai perceber como elas influenciam o roteiro.

E antes que você se empolgue demais: como toda coisa que eu gosto, não fez sucesso com o povão e mal chegou na segunda temporada. Termina na segunda temporada e não tem previsão de terceira por falta de interesse econômico numa continuação. Provavelmente as duas temporadas serão tudo o que vamos ver dela. Acho que o tema futurista desanimou o cidadão médio ou ao contrário da minha impressão, acharam as piadas muito difíceis de entender. Não achei NADA elitista, mas vai entender…

Então, qual o sentido de falar de Avenue 5? É aqui que voltamos ao meu temor sobre comédias do século XXI e a confirmação quase que imediata que tive ao começar a assistir. O estereótipo de todo homem branco ser um imbecil e/ou um covarde, toda mulher ser poderosa e toda mulher com pele escura ser um gênio além disso fica evidente de cara.

A indústria cultural americana parece ter se decidido que as coisas vão ser assim daqui para a frente. É um padrão de personalidade baseada em sexo e cor de pele que se repete sem parar, aparentemente como uma forma de reparação pela repetição de homens brancos heterossexuais como protagonistas de tudo no passado. Já falei sobre o tema inúmeras vezes no passado, é até complicado achar um novo ângulo.

Quer dizer… era. Avenue 5 me mostrou um jeito de ver as coisas: Hollywood e similares sempre foram preguiçosos nessa parte de escolher atores e atrizes para os papéis. No passado cada sexo e etnia tinha um estilo de personagem definido nos filmes, com raras exceções. Homem branco de herói, homem “colorido” de ajudante, mulher branca como objetivo da história e mulher “colorida” como enfeite/objeto de cenário. Tem exemplos de filmes e séries que não faziam isso? É claro que tem. Estamos falando só da média. A média tinha um problema de diversidade mesmo e não tem nada de errado de começar a chacoalhar esses hábitos.

O que me estranha agora é ver como no final das contas, a ideia de ter estereótipos continuou a mesma, só trocando sexos e cores de lugar. Toda vez que eu vejo uma mulher não-branca num filme ou numa série, eu sei que ela é a pessoa mais inteligente na cena. Avenue 5 é uma ótima série com um roteiro muito engraçado e faz exatamente isso. Todo homem branco da série é um imbecil, incompetente, covarde ou maluco. Todos fraudes, carregados por mulheres muito mais fortes que eles.

Novamente: como o roteiro é bom, você se diverte com as personagens do mesmo jeito. Claro que numa série cujos temas principais são ganância, falsidade e incompetência você tem que ter esse tipo de pessoa em destaque. Eu não estou reclamando que falta um homem branco heroico para resolver os problemas da história, estragaria totalmente a diversão, estou apenas falando que na hora de escalar o elenco, seguiram a cartilha da diversidade hollywoodiana do século XXI. Cartilha preguiçosa de definir pessoas por genitália e cor de pele.

E que provavelmente vamos ver isso se repetindo por muitos e muitos anos. Eu não acho que a indústria do entretenimento vai falir de vez por causa de lacração, as pessoas mais jovens estão crescendo com o estereótipo da mulher negra infalível e do homem branco incapaz, e quando chegar a sua hora de decidir com o bolso, vão estar super acostumadas com isso. A grande mídia cismou que lacração sozinha faria dinheiro, esquecendo que por mais que a demanda por isso tenha aumentado muito, ainda precisa entregar bons produtos para o público.

Não sei se Avenue 5 é um exemplo da mudança de paradigma no quadro geral, mas pelo menos para mim foi um ponto de revisão de conceitos: eles vão fazer isso de qualquer jeito, se você aceitar que filmes e séries raramente servem para gerar alguma mudança social no mundo e se concentrar apenas na diversão que te geram… você pode se divertir de novo.

Eu percebo que quase mordi a isca, achando que havia alguma discussão social profunda na escolha de atores e atrizes para esses papéis. Não tem, são apenas empresas querendo fazer dinheiro. Algumas vezes elas contratam gente boa para escrever, dirigir e atuar nesses conteúdos; outras vezes não. Tem uma minoria radical que quer politizar tudo, e se você não prestar atenção pode acabar incomodado com bobagens como a tendência da indústria cultural repetir estereótipos sem parar.

Avenue 5 foi uma série divertida assim que eu deixei de prestar atenção no sexo e gênero das personagens. Eu fico feliz que um roteiro desses passou para frente, que conseguiram fazer algo bem engraçado mesmo obedecendo as regras da lacração moderna… no final do dia, o que importa é você ter algo bacana para ver. Sim, eu sei que acabei de dizer que a série foi um fracasso de audiência e está num limbo sem previsão de volta, mas a maioria das séries que eu gosto é cancelada, mesmo no tempo que todo protagonista era um homem branco. O meu gosto por projetos sem futuro continua intacto.

Me resta aceitar que o novo paradigma de seleção de atores é apenas o preconceito de outrora com outras cores e genitálias, e curtir o material bacana que sai de tempos em tempos. O RH da indústria cultural sempre foi de uma preguiça monumental, eu só estou nessa pelo pessoal dos roteiros. E continua tendo gente muito boa escrevendo histórias e personagens, mesmo que resolvam lacrar depois. Parei de me importar.

Aliás, parei tanto que esse deve ser um dos últimos Des Cults meus por um bom tempo: resolvi não renovar porra nenhuma de assinatura de serviço de streaming. Não quero começar um movimento, só cansei de pagar para ver tão pouca coisa em cada um deles.

Seja como for, recomendo Avenue 5. Demora um pouquinho para pegar, mas quando o faz é bom o suficiente para ser cancelado por falta de público!

Para dizer que eu sou racista por perceber cores, para dizer que eu sou sexista por perceber sexos, ou mesmo para dizer que vai aderir ao movimento de não assinar streaming: somir@desfavor.com

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Comments (6)

  • Caio Revela Ser O Bolsonaro Balofo da Era POC

    Eu pensei em levar o estereótipo ao extremo, colocando o homem branco apalermado sendo morto pela mulher negra lacradora, numa história num gênero flertando entre o suspense e aquelas séries policiais.
    O que acha? 3:)

  • Obrigada pela dica, Somir! Vai entrar na minha lista. Também tô fora de pagar streaming, vou de Stremio quase sempre… E quanto à lacração, se a série for boa mesmo, também nem ligo.

    Obs: Você já assistiu Yellowjackets? Achei excelente, fiquei presa que nem com Severance

    • Lacração virou o status quo, que pelo menos nos entreguem coisas bacanas de ver.

      Não assisti, mas vou procurar! E eu vou me aposentar de streaming mesmo, se não for 4K eu nem clico.

  • “ain Somir tá cedendo pra lacrassaum”

    É a bola da vez. É a fórmula que tá funcionando agora.

    Se “lacração” não rendesse dinheiro, não investiriam nisso. É só manter a minoria politizada longe que até a obra mais woke possível funciona, pois o foco não é exatamente aquele lado chato comum de militante, o que exige que tu não tenha senso de humor e enxergue as coisas preto e branco.

    O foco nada mais é do que ganhar dinheiro, como visto no texto. Cada era tem seu conceito de “lacração”, inclusive. Se dá dinheiro, o bom e velho capitalismo fará sua parte – engana-se quem acha que capitalismo é coisa apenas pra homem, branco ou hétero.

    Aliás, tirar sarro do que é “anti-lacre” ou “contracultura” também é válido, ajuda a melhorar, inclusive.

    • Lendo seu comentário eu lembrei de algo que ia colocar no texto, mas… esqueci.

      Momento teoria da conspiração: Avenue 5 tem um casting tão perfeitamente “ano atual” que eu começo até a desconfiar que o pessoal da série sabia disso e fez tão na cara como uma piada. Porque como eu disse, não é um humor lá muito sutil… tem uma personagem chamada Karen… que é uma Karen.

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