FAQ: Coronavírus – 61

Temos atualizações sobre covid-19. Sabemos que o assunto da vez são os patriotas defecando na mesa do Alexandre de Moraes e estamos lisonjeados com todas as ofensas e ameaças que recebemos nos últimos dias, mas hoje é hora de falar sobre outra coisa: XBB 1.5, a Kraken.

O apelido carinhoso veio de um biólogo canadense que observou algo bastante perspicaz: ao não possuir nomes, o povo está perdendo a noção de que estamos lidando com “variantes” diferentes, cada vez mais adaptadas e evoluídas.

Então, mesmo que a OMS insista em chamá-las apenas por letras e números, parte da comunidade científica parece disposta a apelidar novas variantes por sua conta, usando o nome de criaturas mitológicas, para não gerar problemas para nenhum país, nação ou etnia. Kraken, segundo a mitologia, era um animal marinho gigante e agressivo. Acho justo dar um apelido que assuste ou remeta a perigo, talvez assim as pessoas tomem consciência do que está acontecendo.

Então, ainda que não seja a designação mais correta, concordamos que o apelido tem uma função didática, por isso, daqui para frente, vamos chamar a XBB 1.5 de “Kraken”.

Vale lembrar em que pé as coisas estão: no começo da pandemia, várias variantes brigavam para ver quem dominava (o que nós chamamos de “rinha de variantes”). Alfa, Beta, Gama, Delta… cada uma teve seu momento de glória e acabou destronada pela seguinte. Agora a realidade é outra: a variante Ômicron reina soberana já faz bastante tempo, o que temos são distintas linhagens dela, como se fossem aperfeiçoamentos de um mesmo modelo.

Um exemplo banal, para fins didáticos: vamos comparar com carros. Cada variante (Alfa, Beta, Gama, Delta) seria um modelo de carro: Fusca, Palio, Ka, etc. A variante Ômega também seria um modelo de carro, vamos supor, um Corolla. A Kraken (XBB 1.5) não deixa de ser um Corolla, é um Corolla com algo mais: bancos de couro, direção automática ou algum benefício que os modelos anteriores não tinham. Então, quando falamos da Kraken, falamos sempre da variante Ômicron, só que em uma versão melhorada.

A quem interessar possa, deixando nossa alegoria de carros de lado e falando tecnicamente, a XBB 1.5 é uma variante recombinante da Ômicron. Recombinante quer dizer que ela é uma junção, uma combinação de outras duas, no caso, a BA.2.75 e a BJ.1. Isso costuma acontecer quando uma pessoa é infectada com mais de uma versão de covid ao mesmo tempo, isso dá a essas variantes a possibilidade de se “misturarem” e formarem uma terceira.

Por isso sempre ressaltamos a importância de continuar fazendo o que está ao seu alcance para evitar o contágio: talvez você nem adoeça, talvez você nem tenha sintomas, mas pode jogar no mundo uma recombinante nova, que pode se juntar com outra recombinante em outro lugar e acabar gerando algo muito, mas muito ruim.

Ninguém sabe bem onde surgiu a Kraken e talvez nem seja muito ético dizer isso mas… ela surgiu em um período compatível com a grande explosão de casos na China. Considerando o número de pessoas que o país possuí, a vacinação muito precária e a abertura na política de “covid zero” que tentou segurar os casos só pelo isolamento, seria um cenário favorável para o vírus.

Até aqui, o upgrade padrão da Ômicron e suas derivações parece estar sempre voltado para maior transmissibilidade. É o que parece acontecer com a Kraken, ela parece ser ainda mais contagiosa do que suas antecessoras.

Por exemplo, nos EUA, ela era responsável por 20% dos casos e, em apenas uma semana, passou a ser responsável por 40% dos casos. Estudos indicam que ela dobra sua presença a cada 8 dias, como padrão. Hoje, a maior parte de casos vem dela. Obviamente, ela já chegou ao Brasil.

Ao que tudo indica, ela consegue ser ainda mais contagiosa do que as versões anteriores por ter sofrido uma mutação que a “aperfeiçoou” em uma região que exerce um papel muito importante no processo que o vírus realiza para se ligar às nossas células.

A quem interessar possa, tecnicamente falando, o que se sabe é que ela parece ter uma afinidade maior com o receptor ACE2, que funciona como uma “porta de entrada” do vírus em nossas células. Se antes tínhamos um invasor tentando arrombar a porta, agora temos um invasor que possuí a chave da nossa casa.

O lado bom é: não ficou mais letal, algo que seria bem pior. O lado ruim é: o escape vacinal está cada vez maior. Quantas vezes você já leu aqui que surgiu uma versão “mais transmissível”? Pois é, está cada vez mais fácil para o vírus escapar da vacina e contaminar o corpo. Se, nos primórdios as vacinas mais eficientes davam uma proteção de quase 90% contra contágio, hoje a melhor das vacinas não passa de 30%.

O que isso significa: os riscos de pegar são enormes, mas o dano que o vírus vai causar no seu organismo provavelmente não vai te hospitalizar nem te matar se você tiver pelo menos 4 doses da vacina e não tiver nenhuma comorbidade. Então, repetindo aqui pela milésima vez: o vírus não está ficando “mais fraco”, as pessoas estão ficando mais vacinadas. Basta pegar dados de países com má-vacinação e você verá que a Kraken mata muito mais do que o corona-raiz.

A forma de se proteger dela não mudou: evitar aglomerações, uso de máscara, 4 vacinas no braço (ou mais, quantas forem disponibilizadas, eu tenho 5 e passo muito bem, obrigada), ventilar ambientes, fazer o teste e se isolar caso você apresente sintomas, ainda que não sejam graves.

Eu sei que muitos podem estar pensando se não é excessivo se proteger de algo que provavelmente seu corpo consegue dar conta. Bom, quero te relembrar duas coisas: 1) quanto mais o vírus circula, mais chances ele tem de mutar e 2) Sequelas.

Quem é leitor do Desfavor está de saco cheio de escutar essa ladainha, mas é obrigação nossa repetir isso à exaustão: o vírus continua mutando e não sabemos como e quando ele vai mutar novamente. Até aqui nenhuma mutação conseguiu tornar as vacinas obsoletas nem aumentar os estragos que o vírus faz no nosso corpo, mas isso pode acontecer um dia. E, quanto mais pessoas se contaminam, maiores os riscos de isso acontecer.

Então, não estamos mais falando de quarentena, de deixar de trabalhar nem de nenhuma medida extrema. Estamos falando de cuidados simples, que te protegem contra muitas outras doenças respiratórias.

O narizinho não vai cair se usar máscara. Não é um sacrifício enorme. O bracinho não vai cair se tomar mais uma dose da vacina. Tem gente no mundo desesperada por se vacinar, andando quilômetros e mais quilômetros a pé em busca de um lugar que tenha vacina e brasileiro fica reclamando de ter que tomar mais uma dose? Tenham vergonha na cara.

E, claro, vale lembrar que mais da metade das pessoas que pegam covid, ainda que assintomáticos, ficam com algum tipo de sequela. Existe uma pós-verdade de que as sequelas geralmente não são graves, mas é hora da gente revisitar essa constatação.

O que é grave? Se algo não te mata, quer dizer que isso não é grave? Não necessariamente. Eu conheço pessoas que perderam o cabelo por causa de covid-19. É grave ficar careca? Clinicamente, não. Ninguém morre por ficar careca, mas garanto que ao menos metade de vocês achariam um impacto gravíssimo na sua vida, por questões estéticas ou sociais.

Uma das sequelas mais comuns que a Kraken deixa é a chamada “Névoa mental”. Ela gera confusão, perda da capacidade de concentração, lapsos de memória, queda brutal na produtividade e outras coisas igualmente desagradáveis que fazem sua mente e sua cognição padecerem. Ninguém sabe quanto tempo pode durar (há registros de pessoas que estão assim há mais de um ano).

Mata? Não mata. Mas se você precisa da sua mente para trabalhar, vai te deixar incapacitado para o trabalho por bastante tempo. Acredite, você não vai conseguir ler uma linha ou escrever um simples e-mail. Então, tenha consciência disso: sequela é uma grande roleta-russa, ainda que não seja letal, pode sim ser incapacitante.

A conclusão é que essa coisa de que só sequela grave justifica cuidados precisa ser repensada. Provavelmente você não vai ter uma inflamação no coração, cegueira ou qualquer outra coisa que seja considerada clinicamente grave, mas isso não quer dizer que não possa impactar a sua vida de forma muito sofrida. É muito mais fácil tomar alguns cuidados básicos do que lidar com sequelas que a medicina e a ciência ainda não entendem bem como tratar.

Além disso, ainda existe a possibilidade de sequelas a longo prazo que desconhecemos. Coisas que só vamos ver em 5, 10 anos. Que tal não se arriscar e não ser cobaia do que o vírus pode fazer com o seu corpo nas próximas décadas? Já existem estudos sobre declínio cognitivo precoce em pacientes que tiveram covid e os resultados não estão caminhando para um final esperançoso.

Pela milésima vez, deixamos aqui o lembrete de que vale a pena seguir se cuidando, ainda que te digam que é um exagero, ainda que te digam que são mentiras. Por sinal, as pessoas que mais dizem isso nos dão cada vez mais provas de insanidade, então, acho que é mais um sinal de que não convém escutar quem invade prédio público, defeca nos pertences de terceiros e se filma fazendo isso com muito orgulho. Muito obrigada, eu prefiro estar do lado de quem pensa o oposto dessas pessoas.

“Mas Sally, eu tive covid recentemente, não preciso usar máscara”. Precisa sim. E essa regra é antiga: Ômicron não imuniza contra Ômicron, seja ela Kraken ou não. Você pode pegar novamente sim e as chances de sequelas aumentam.

Vamos ser responsáveis, vamos ser civilizados, vamos pensar uma vez no coletivo e fazer a coisa certa? Use máscara, evite aglomerações, tome suas doses de reforço, tente ventilar os ambientes e se tiver sintomas, ainda que eles sejam leves, se isole e faça um teste.

“Mas Sally, ninguém faz isso…”. Não me importa. Faça você a sua parte. Os outros são problema dos outros. Seja a mudança que você quer ver no mundo. Faça o certo e ilumine o mundo através do exemplo. Não precisa convencer ninguém, não precisa patrulhar ninguém, apenas faça a sua parte e leve informação a quem quiser informação. É o máximo que podemos fazer.

Vamos ver se esse novo governo vai sair do discurso e abordar a pandemia de uma forma melhor que o anterior. Todos esperamos que sim.

Para politizar um vírus (e ter seu comentário barrado), para desmerecer algo que foi dito atribuindo a isso status de opinião pessoal minha (não é, é ciência) ou ainda para dizer que quer que a gente continue descendo o cacete nos patriotas cagões: sally@desfavor.com

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Comments (8)

  • Após todos esses anos de covid, que passei ilesa, tive a danada bem no Natal 2022…
    E os sintomas foram como uma gripe forte, começou uma dor de cabeça “esquisita” e depois dores nas costas que foram aumentando de intensidade ao ponto de nao conseguir ficar sentada, depois veio peso nos membros, paladar alterado e perda de apetite.
    Os sintomas mais ruins e incapacitantes duraram cerca de 3 dias, depois melhorei gradativamente, perdi um pouco de peso e senti a tal “confusão mental”, que ainda sinto.
    É difícil avaliar o que são sintomas prolongados pq tenho fibromialgia e tomo alguns medicamentos que tbm causam um certo lapso de memória e de “presença”.
    Mas tomei as 4 doses da vacina e acredito que isso me protegeu do pior, mas as sequelas são uma incógnita, nem os médicos saber ou msm relacionar :(
    Se cuidem!

    • Chegamos em um ponto onde não só os irresponsáveis pegam, os responsáveis também, pois é humanamente impossível ser perfeito todos os dias do ano por vários anos. Num descuido você coça o olho (e o vírus entra pela mucosa), num descuido a máscara sai do lugar e o ar de fora entra sem estar filtrado, etc.

      Mas, felizmente você pegou sem hospital colapsado, com todas as vacinas no braço, no melhor dos cenários. Então, seu esforço em se cuidar valeu à pena.

      A névoa mental é um terror, é uma sequela muito difícil de lidar e que demora a passar. A Kraken causa névoa mental em quase todo mundo. O que tem se mostrado mais eficiente até hoje é manter uma alimentação saudável tentando reduzir o consumo de alimentos que possam aumentar a inflamação (carne vermelha, embutidos, processados, etc.) e focando em alimentos que ajudem a reduzir a inflamação (legumes, verduras, frutas, carne branca).

      Algumas pessoa conseguem alguma melhora com suplementação vitamínica, se quiser, consulte seu médico sobre.

  • Vou contar minha experiência anonimamente.

    Engravidei no fim de 2021 e passei metade do ano de 2022 grávida. Mesmo profissional de saúde da linha de frente, estava ilesa do covid desde o início da pandemia. No início de julho meu marido ficou “gripado”, nos isolamos. Fiz o teste por estar grávida: positivo.
    Fui totalmente assintomática. Zero zero zero sintomas mesmo. Nem uma dor de cabeça, nem um nariz coçando, nada.

    15 dias depois, fui internada às pressas pra antecipar o parto porque minha pressão subiu e eu fiz uma coisa raríssima chamada síndrome HELLP – basicamente meu corpo estava destruindo minhas células sanguíneas e meu fígado.

    Minha gravidez estava zerada, eu não tive nenhum sintoma, nada de enjoos, nada de cólicas, uma maravilha! Concordo com cada vírgula do texto da Sally sobre o lado negro da gravidez, mas posso dizer que eu sou a exceção que confirma a regra. Me sentia mais bem disposta, fiz atividade física até o último dia, minha mobilidade melhorou, capacidade pulmonar, tudo. Eu sinceramente, nunca me senti tão bem quanto na gravidez.

    Tudo isso pq minha obstetra disse, após o parto, que os casos da síndrome Hellp aumentaram após o início da pandemia.
    Ou seja, em mim, sem nenhuma doença prévia, com alimentação adequada, sono adequado, atividade física adequada, a covid assintomática quase matou minha filha e a mim.

    Não deem bobeira, pessoal… eu podia ter virado uma estatística. Minha obstetra foi muito competente pedindo exames depois da minha covid. Sendo que eu não sentia nada, a síndrome foi detectada no início por esses exames. Se tivesse esperado mais alguns dias, talvez o desfecho fosse outro.

    • Cleimar da Silva

      Isso significa que o vírus da COVID, a exemplo da bactéria da Sífilis, pode causar danos a longo prazo em seus afetados.
      Não estou surpreso com isso.

  • “Vamos ver se esse novo governo vai sair do discurso e abordar a pandemia de uma forma melhor que o anterior. Todos esperamos que sim.”

    Acho que até vai. Até porque não tem como ser pior nisso do que o Bolsonaro. Mas também acho que a PeTezada vai tratar desse assunto com as mesmas corrupção, desorganização, insuficiência e incompetência de sempre.

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