Zoológico de gente.

As cenas da tragédia humanitária na reserva dos yanomamis em Roraima chocaram não só o país como o mundo. Muitas crianças morrendo de desnutrição e doenças tratáveis, água contaminada pelo garimpo ilegal, situação aberrante mesmo. Espero que muita gente seja punida exemplarmente, mas até antes disso, fica uma dúvida: o que a sociedade quer fazer de verdade com os tais dos povos originários?

Porque no século XXI, deixar isolados os povos indígenas é na melhor das hipóteses inocência. Não é mais nem questão de uma decisão ética e moral, porque salvo raríssimas exceções, essa gente já foi contatada pelo mundo moderno. Em bom e chulo português: a merda está feita.

Em algum grau, virtualmente todos os seres humanos vivos hoje em dia tem alguma noção sobre a civilização. Durante vários séculos, foi missão de conquistadores e religiosos europeus contatar todo ser humano possível e imaginário. Não viam como interferência, mas sim como destino. E nem foram eles que inventaram isso: presume-se que ir se misturar com outras tribos seja algo natural mesmo, nada mais explicaria nosso desenvolvimento social rumo a cidades, estados e nações.

Até por isso notícias de supostos primeiros contatos do “homem branco” com nativos até então completamente isolados ganham o impacto que ganham: é uma raridade. Eu já até escrevi um texto (faz teeempo) sobre o que enxergo como ética nesse tipo de interação, que seria se decidir pela integração por causa dos avanços tecnológicos em medicina, nutrição, conforto e informação e os sociais como direitos humanos que conquistamos ao nos unirmos. O índio vai perder muito da sua cultura e da sua “pureza”? Vai, mas na minha conta mental, eles saem no lucro com acesso ao mundo moderno.

Mas o tempo me tornou mais sereno e aberto a ouvir outras opiniões: eu compreendo o ângulo de não interferir com quem não pediu interferência. Os males da civilização sempre vêm junto, e pode-se argumentar que a integração eliminaria uma cultura que fez a escolha de não se misturar com o resto da humanidade. É uma questão ética complexa, se me colocarem para decidir eu decido pela integração e o preço que vier disso. Mas se a sociedade em geral preferir manter esses povos isolados, vida que segue. Existem méritos no lado oposto também. Menos, mas existem.

O que me incomoda é não fazer nem uma coisa, nem outra. E aí acabamos com situações como a dos yanomamis: um povo que está integrado o suficiente para depender do Estado, mas não integrado o suficiente para se defender da criminalidade. O Brasil é rico e organizado o suficiente para não ter cenas como as que vimos nos últimos dias. Não somos exemplo de sociedade avançada, mas desse básico já passamos sim. O país não tem capacidade de erradicar a fome, mas já pode evitar mortes pela fome consistentemente. É um passinho só distante do abismo, mas é distância suficiente para não ser tolerável ver o povo yanomami naquela situação.

E sim, é importante bater nesse ponto: por mais que você fique puto(a) da vida com a situação no Brasil, aquele nível de criança esquelética morrendo de fome está abaixo do mínimo esperado. Não é resultado dos mesmos males sociais que atingem todos nós, não é a mesma coisa que a mãe de cinco na favela tendo dificuldade de alimentar os filhos, mas conseguindo alguma coisa com vizinhos e projetos sociais, é miséria humana primal, daquelas que não podem ser minimamente toleradas no Brasil de 2023. Aquilo não faz parte dos problemas básicos brasileiros.

Aquilo é uma combinação maldita de corrupção e ideologias confusas. Tem muito mais ângulos dos que eu vou abordar aqui, ainda nem sabemos se esse tema volta no Desfavor da Semana de acordo com os desdobramentos, mas eu quero focar na ideia torta de tratar reserva indígena ora como foco de desenvolvimento social, ora como zoológico de gente. Sim zoológico de gente: o indígena nas reservas é um incapaz para a legislação brasileira. Em tese tem todos os direitos humanos, mas não tem agência completa.

Aí, ficamos com tribos que tem contato constante com a civilização lá fora, mas que não tem o mesmo tipo de poder de cidadão que a maioria de nós. O governo define “cuidadores” para eles, e como vimos, numa quantidade muito abaixo da necessária, e em troca podemos observar sua cultura “original”. Os yanomamis estão numa área cinza entre brasileiros e bichos, que eu acho absurdo também. Justo que não se dê direitos de vender as terras para um povo que não teve acesso ao mesmo conhecimento sobre a sociedade que a maioria de nós, mas bizarro que não exista um plano de desenvolvimento para eles.

Não dá para isolar eles de novo. Mesmo que você seja do time “deixa eles quietos”, já não é mais o caso. Os yanomamis estão “presos” dentro da sociedade moderna, com um pé na floresta e um pé no sistema político e econômico brasileiro. Não funciona desse jeito. A taxa de natalidade deles já é baseada no contato com a civilização brasileira. As expectativas dos jovens já estão modificadas pelo acesso à cultura das grandes cidades.

Espero que as autoridades entreguem os alimentos e os remédios que eles precisam, espero que os corruptos que ajudaram a situação a ficar assim sofram com consequências sérias, mas espero muito mais que fique registrado o absurdo do que aconteceu, e que é muito mais do que garimpeiro malvado, é o contato com o mundo lá fora mal regulado.

Os yanomamis e diversas outras tribos muito aculturadas pela sociedade moderna precisam de um plano de integração. Não dessa confusão ideológica de interferir às vezes e torcer para que os bandidos da região (muitos deles indígenas também) deixem os povos originários intocados. Bastou um governo amigo dos garimpeiros para vermos cenas de guerra civil africana em pleno Brasil! Não ficou claro o grau de exposição dessa gente? O quão perto eles ficam de um desastre com essa mentalidade confusa de tratar como gente ou como bicho de acordo com o interesse do momento?

Quer discutir como lidar com tribos muito mais isoladas? Tudo bem, é parte do jogo trocar ideias, especialmente ouvindo as pessoas mais impactadas, mas os povos que já foram “corrompidos” pela selva de concreto não são mais parte dessa conversa. É absurdo que eles continuem no meio dessa bagunça ideológica.

Meteram a colher na vida dos yanomamis por séculos, aconteceu o que aconteceu. Não são mais índios isolados, são brasileiros tratados como cidadãos de segunda categoria. Claro que não pode ser o jeito bolsonarista de enfiar mil madeireiros e garimpeiros em cima deles e esperar que os fortes sobrevivam, mas pode ser um plano de integração baseado em educação, saúde básica e desenvolvimento econômico de dentro para fora. Essas reservas precisariam ser divididas em áreas de proteção ambiental do Estado e áreas de desenvolvimento na mão dos índios, para que eles tenham dinheiro e poder para se proteger da criminalidade no LONGO prazo.

Se eles não estão prontos agora, vão estar em algumas gerações, desde que se desanuvie os céus na questão de intervenção da sociedade moderna na vida deles. Agora, são dois crimes horríveis contra eles: o abandono dos “cuidadores” por causa de corrupção e imbecilidade bolsonarística, mas também o crime horrível de tratar essa gente como se não fosse gente. Não gosta da ideia do homem moderno estragando a cultura dos índios? Volte 500 anos no tempo e afunde as naus portuguesas. Infelizmente, para muitos povos, não existe mais uma opção.

É integração ou tragédia humanitária. Não é para derrubar a Amazônia inteira e fazer um estacionamento no lugar, é para entender a diferença entre os objetivos ambientais do Estado e o direito de ser humano desses povos. Não faz sentido tratar yanomami como mais um dos bichos da floresta. Não são. A maioria tem uma ideia avançada sobre o resto do mundo, pelo menos para a média do que consideramos um povo indígena.

Índio não é bicho, índio é gente. Gente que foi pega no fogo cruzado do desenvolvimento humano, que na média ficou atrás da curva por escolhas que nem sabemos bem se foram deles. Provavelmente não, estão nesse limbo entre atrações da reserva natural e seres humanos completos pela falta de consenso sobre o que fazer com eles. A fase de se sentir culpado pelos erros de antepassados já acabou, agora é questão de entregar resultados.

Vamos lá entregar necessidades básicas, dar uns tiros nos garimpeiros, e continuar tratando índio como animal selvagem? O simples fato daquelas cenas tenebrosas terem aparecido já demonstra como o método de lidar com eles está errado. Não é possível ter esse tipo de cena no Brasil moderno. Repito e repito: o país é desigual, é cheio de bandidos, é bagunçado, mas aquelas cenas passam totalmente do ponto onde realmente estamos como nação.

Não é só bandalheira, é uma mentalidade muito errada que cria essa situação. Ou trata esse povo feito gente, ou eles nunca vão ter os direitos de gente.

Para dizer que está torcendo pelos cassinos na Amazônia, para dizer que não sabia que tinha tanto metal pesado na cena nortista, ou mesmo para dizer que é só culpa do Bolsonaro (nunca é só culpa dele): somir@desfavor.com

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Comments (7)

  • É conveniente para os hipsters do sul maravilha se venderem como defensores dos indígenas defendendo a manutenção de tais zoológicos de gente. Para a população indígena em condição mais privilegiada… Também!

    Com sorte, dá até para angariar vantagens na base da demagogia, assim como ocorreu no caso das cotas raciais, que é vendida como uma reparação histórica, mas não passa de uma política de caráter meramente TOKENISTA.

  • Minha opinião é que devia dar autonomia e soberania aos povos indígenas. Que o governo permita que formem as próprias federações, e que sejam mantidas e ampliadas as parcerias com as lideranças dos povos para que o governo federal seja responsável pela saúde, segurança e alimentação de subsistência.

    • NUNCA foi feito nada direito nesse acampamentão. Sequer sua “descoberta” foi coisa bem feita. Brasil é um erro geo-político-social (até Bangladesh ou Mauritânia são mais consistentes como nação), mas como deixaram chegar no tamanho paquidérmico a que chegou, então agora o negócio é gerenciar a trolha pra que não regrida até os tempos pré-colombianos.

  • Tem que passar um pente fino nessas ONGs aí. O que tem de funça encostado, desvio de verba e estrangeiros* usando narrativas ambientais pra sabotar e pilhar o Brasil não está no gibi. Nem precisa ser patriota ou conspirador pra ver isso.

    *basta ver discursos de políticos como o Macron. Uma coisa sobre a França que reparei nesses últimos tempos é que no imaginário deles aqui é um lugar místico que em algum momento perderam e continuam querendo uma casquinha. É esquisito mesmo, nunca deram a mínima para os territórios norteamericanos, desprezam Quebéc até hoje, mas não largam o osso da Guiana.

    • Excelente observação. Gringo do primeiro mundo NUNCA tem boa intenção quando o negócio é explorar lugares do segundo/terceiro/… mundos sob a desculpinha de “evangelizar”, “descobrir novos mercados consumidores” (a menos que seja o tipo de parceira CARACU – eles entram com a cara e nós com o cu) ou mesmo “expandir horizontes”.

      Quebec virou primeiro mundo igual à França. Não dá pra ferrar lá porque o povo é esperto (no mínimo, se acham franceses também).

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