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Conteúdo original?

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Vgfyy1 hagh2 jjah999 hp Jasee661? B1fsgp, 8hgak pygfrak7. Não entendeu nada? Bom, isso é conteúdo original. Tenho certeza de que se você fizer uma pesquisa em todo o material produzido pela humanidade até hoje, não vai achar nenhuma sequência exata de letras e números exatamente igual às primeiras frases deste texto. Infelizmente, elas também não têm nenhuma utilidade.

Com as inteligência artificias invadindo o campo da criatividade, primeiro com as imagens e agora até mesmo com a linguagem, vamos ter alguns problemas para resolver com direitos autorais, e provavelmente até com o conceito de originalidade. O que é um conteúdo original que pode ser protegido? Onde a linha entre inspiração e plágio é cruzada?

Legislações ao redor do mundo tem respostas diferentes para essas perguntas, e em diferentes graus de precisão, encontram alguma forma de definir que tipo de produção de conteúdo pode ser protegida por direitos autorais ou não. Além disso, regulam como o uso desse material criativo pode ser feito por terceiros. Os americanos têm o conceito de “fair use”, com uma porcentagem do material podendo ser usada até mesmo em projetos com fins lucrativos sem incorrer em direitos autorais, desde que esteja comentando sobre a obra.

Nem faz sentido se aprofundar na legislação, porque em cada país ela diz uma coisa. Além disso, em alguns ela é levada a sério, em outros tem camelôs em cada canto vendendo pirataria a céu aberto. Mas tem algo que vai atingir todo mundo ao mesmo tempo, independentemente do cenário jurídico local: inteligências artificiais simulando o processo criativo humano.

Porque aí vamos começar a discutir o que é conteúdo original em linhas gerais. Até a chegada desses sistemas de criação digital, o processo criativo era uma caixa preta. A ideia ou expressão artística de uma pessoa não podia ser desconstruída até achar o que a inspirou. Existem muitos casos bem documentados de cientistas que descobriram a mesma coisa ao mesmo tempo, sem estarem em contato ou sequer se conhecerem. Dou esse contexto porque é difícil saber o que um ser humano viu ou não viu antes de produzir um conteúdo. Existe sim a chance de algo que parece ser copiado na verdade foi fruto de criação simultânea.

No caso do computador, o conteúdo inicial é conhecido. Inteligências artificiais generativas como as que produzem imagens e textos fazem seu treinamento em cima de uma base de dados de origens definidas. Mesmo que digam que foi “coletada da internet”, isso significa que existe um link original para cada pedacinho de informação utilizado.

Quando você pede para o computador desenhar o Mickey no estilo do Picasso, pode achar na base de dados original dele onde foi que ele pegou imagens do Mickey e das pinturas do Picasso. Inclusive saber exatamente quais foram essas imagens. A construção final da imagem é uma produção original, mas sabemos exatamente o que foi usado nela. É com base nisso que vários artistas então se unindo para gerar uma legislação sobre o uso de suas obras no desenvolvimento de arte por inteligência artificial. Não só a máquina pode criar coisas nos estilos que eles usam, como também podem criar coisas novas quase idênticas ao que eles fariam.

Já era um problema com as imagens, mas quando o ChatGPT entra na jogada, a coisa começa a ficar ainda mais complexa: humanos tem uma certa facilidade para perceber semelhanças entre imagens, a percepção de um estilo vem quase que por instinto, nossos cérebros se amarram em reconhecer padrões. Agora, com ideias e estilos de escrita?

Se a inteligência artificial escreve um texto usando fontes aleatórias da internet, ela está plagiando ou ela está produzindo conteúdo como um ser humano qualquer? Lembrando que não estamos falando só de livros, a tecnologia para transformar em áudio já está madura e a dos vídeos está chegando rapidamente. Produzir um texto pode significar um discurso ou mesmo um roteiro de filme. Concatenar palavras e gerar significados com elas é algo que afeta todos os pontos da nossa cultura.

O dia que um computador criar um desenho “perfeito” do Mickey Mouse e colocar num canal de YouTube, vamos ter alguma facilidade de reconhecer que existe sim uma lei que defende os direitos da Disney sobre sua personagem. Mas se o computador for instruído a chamar o rato de Melecão e pintar ele de verde, pode manter basicamente o mesmo roteiro e estilo visual sem estar diante de uma infração de direitos alheios.

Esse é o poder de criar ideias ao invés de simplesmente imagens. Se a gente barrar a inteligência artificial de fazer obras derivativas de ideias existentes, estamos barrando o conceito de obras derivativas de ideias existentes. E aí, criação se torna ilegal. Porque não tem para onde escapar, nem o ser humano é uma ilha, ele é impactado por conteúdos de outras pessoas a vida toda, e ele transforma essas inspirações em algo considerado novo.

Mantendo o combo de exemplos anterior, vamos considerar Picasso: sem a guerra civil espanhola e o bombardeio da cidade de Guernica, ele não teria a inspiração para pintar a obra homônima. A ideia de sofrimento e terror não foi criada por ele, ele poderia ter direitos sobre a forma como transformou essas ideias em uma pintura, mas não sobre qualquer conceito expressado nela. Até porque entraríamos numa sequência insana que terminaria com os direitos autorais sendo disputados pelos soldados que lutaram na guerra.

Ideias não são protegidas, aplicações específicas delas sim. Isso acontece porque ideias todo mundo pode ter, basta ter uma capacidade básica de pensamento. E nem precisa ir muito fundo nessa coisa de pensamento, uma ideia é basicamente o choque de dois conceitos dentro do cérebro. A relatividade pensada por Einstein e a realização que uma pedra machuca se jogada com força pelo Uga há cinquenta mil anos atrás são ideias.

Todo mundo tem direito de ter ideias. Não se regula conexão de informações dentro de um cérebro porque nem temos como fazer isso (ditadores já teriam feito se fosse possível), sem conhecimento perfeito sobre todas as informações recebidas por uma pessoa, é impossível saber de onde veio uma ideia. A não ser, é claro, que quando ela coloque essa ideia em prática ela gere um resultado idêntico a outra coisa que já existe. E mesmo assim, em dúvida, pró-réu: ninguém pode garantir que a pessoa não bolou aquilo sem nunca ter visto o que se diz que ela copiou.

Só podemos olhar o resultado dessas ideias e tentar definir quem fez primeiro, porque quem pensou primeiro… não vamos saber, nunca. Estamos todos de acordo que não tem como regular ideias, apenas o resultado delas?

Se a inteligência artificial entregar um resultado que nos pareça uma cópia de algo já existente, nossas leis já funcionam. Não era sobre a ideia, era sobre a exploração (comercial ou não) de alguma criação. Quem chega primeiro tem o direito.

O problema é que como a inteligência artificial usa um processo (que até onde sabemos) é parecido com o nosso, o de conectar informações prévias para desenvolver um novo material, por pura probabilidade ela não vai produzir conteúdo idêntico aos já existentes. A chance do ChatGPT escrever exatamente a mesma sequência de letras que você escreveu é de uma em um daqueles números incontáveis. Mesmo que o que você tenha escrito antes fizesse parte do material de estudo do computador.

Para correr atrás dos direitos autorais nesse universo de conteúdo criado por máquinas, vamos ter que rever esse conceito básico de não proteger ideias. Porque o que as máquinas estão fazendo é literalmente a mesma coisa que fazemos, mesmo que usem mecanismos diferentes. O cérebro humano é melhor em focar num resultado esperado e limitar ideias completamente sem sentido, mas estamos todos buscando a mesma coisa: ideias coerentes que possam ser compreendidas por outros seres humanos.

Para impedir que o computador faça isso, temos que nos impedir de fazer isso. Eu não consigo pensar em nenhum jeito de proteger direitos autorais de obras derivativas criadas por máquinas no futuro. Em todos os cenários imaginados, basta mudar algumas letras ou pixels para deixar de ser uma cópia. Pode proibir o uso do Mickey, mas o Mackey e/ou o Mockey vão acabar escapando uma hora ou outra. O conceito de um camundongo falante não pode ser protegido, é só uma ideia.

O que muita gente não percebe é que um dos principais protetores de propriedades intelectuais é a dificuldade de imitação. Não dá para fazer um filme quase igual aos Vingadores sem gastar centenas de milhões de dólares, então nem vale o risco. Agora, se a sua máquina puder criar um filme completo no estilo dos Vingadores em algumas horas, você pode soltar dois ou três por dia e deixar para a Disney o ônus de provar que você está infringindo seus direitos autorais.

Se estiverem saindo mil filmes praticamente iguais aos Vingadores, com o Hork e o Capitão Eslovênia como protagonistas, todos os dias… só uma inteligência artificial teria condições de lutar contra isso. Aí estamos falando de sistemas automatizados de análise e aplicação de leis, sem contato humano. Não nos vejo colocando as leis nas mãos de máquinas tão cedo. Os direitos autorais provavelmente vão ruir como conceito bem antes disso.

Essa não é uma questão legal mais do que uma questão tecnológica. Ainda parece que existe algum senso de controle porque a velocidade de produção de conteúdo automatizado é baixa o suficiente para as pessoas terem a ilusão que isso pode ser controlado. Estamos falando de talvez em uma ou duas décadas termos filmes longa metragem criados apenas para você, com uma história que você já deu indicações de gostar e várias cenas de produtos que o anunciante pagando por ele quer te vender. E no pacote plus, as atrizes estão todas peladas. Tudo bem, elas não existem, embora sejam muito parecidas com mulheres que você indicou achar atraentes no seu histórico, sejam elas famosas ou não.

Direitos autorais são uma rolha segurando um vulcão prestes a explodir. Não estou fazendo juízo de valor se isso vai ser melhor ou pior, estou apenas dizendo que quem está preocupado com o tema precisa achar soluções alternativas, e rápido. Conteúdo derivativo é o futuro, as redes sociais são basicamente isso e se tornaram famosas como se tornaram.

O direito de posse de uma produção intelectual faz sentido num mundo onde só algumas pessoas podem fazer algo parecido, mas quando uma máquina faz dez mil versões por minuto da sua especialidade? E quanto mais dez mil delas estão produzindo ao mesmo tempo? Máquinas tem ideias sim, e numa quantidade absurdamente maior que a gente. Muitas delas não prestam, especialmente as originais, afinal, as minhas primeiras frases são originais, mas não servem para nada a não ser neste texto.

O futuro tem toda a cara de ser o território de quem sabe transformar ideias em funções práticas. O “cara das ideias” vai se tornar obsoleto numa velocidade absurda nos próximos anos. O que se faz a partir delas é que conta, isso ainda não é o campo das inteligências artificiais. Ainda.

Para dizer que isso problema de você do futuro, para dizer que eu já devo estar treinando a minha para escrever estes textos, ou mesmo para dizer que as primeiras frases do texto eram mais simples coerentes que o resto: somir@desfavor.com

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