Sociedade atacada.

Aconteceu de novo. A notícia é super recente e pode reaparecer no Desfavor da Semana de acordo com o desenrolar do caso. Um maluco invadiu uma creche e matou 4 crianças e feriu outras cinco, uma ainda em estado grave pelo que se sabe até agora. Será que tem como evitar esses crimes bárbaros?

Sim, como provavelmente vamos mencionar se voltarmos ao tema no futuro, e não, como eu vou argumentar agora.

Sim e não é uma resposta irritante, eu sei. Mas ela é importante nesse caso, porque o que é possível é reduzir o número de ataques covardes e aleatórios com boas políticas públicas e aumento de qualidade de vida generalizado, mas não é possível acabar com eles de uma vez.

Quando você analisa um problema com a expectativa de eliminá-lo de vez, pensa de um jeito. Quando você está focado em reduzir o máximo possível o problema, pensa de outro. Acreditar que é possível impedir que malucos ataquem pessoas indefesas na sociedade atual é acreditar em algo inalcançável. E aí, todas as soluções partem da premissa errada.

É aquela mentalidade de dieta milagrosa: a pessoa acha que o objetivo é emagrecer uma só vez e depois está tudo resolvido. Não está, afinal, enquanto a pessoa estiver viva, vai poder voltar a engordar. E aí temos o efeito sanfona, com muita gente engordando mais ainda depois que emagrece com a dieta e volta ao seu normal.

O que emagrece de verdade é mudança de hábitos. Melhor do que uma dieta, é uma alimentação balanceada aliada com exercícios físicos. Se estiver na cabeça da pessoa que ela não pode eliminar o problema e sim mudar sua forma de agir para não deixar ele reaparecer, consegue o resultado. É a ideia de que não existe resposta mágica que faz com que a pessoa conquiste um resultado positivo.

Quando falamos de atos violentos do tipo que aconteceu hoje, não existe dieta milagrosa. Não tem prisão perpétua, não tem pena de morte, não tem censura na internet ou qualquer outro tipo de canetada que possa evitar que pessoas com problemas mentais sérios achem uma brecha para causar sofrimento nos outros. Pode ser a sociedade mais idealizada que ainda não resolve o problema fundamental que alguns seres humanos simplesmente agem de forma que consideramos insana.

A ilusão de controle infecta políticas públicas e percepção do povo, criando soluções mágicas para problemas que não podem ser eliminados. O máximo que eu vejo acontecendo na humanidade é uma virtualização que separe a vida orgânica da digital, criando pessoas com várias vidas como num videogame: mesmo se matarem, só recomeça no último ponto salvo. Fora isso, o risco de ser vítima de um maníaco ou maníaca sempre vai existir.

O que não quer dizer que vamos todos morrer nas mãos de alguém assim, mas a chance sempre vai estar lá. Se conseguiram matar o presidente dos EUA em pleno século XX, acho difícil que algum de nós tenha chance de segurança absoluta nesse mundo. É perigoso correr atrás de um objetivo impossível.

Vivemos num tempo onde bilhões de pessoas vivem muito próximas umas das outras, todas dependendo de uma rede de confiança absurda para funcionar minimamente bem. E podemos ver isso em exemplos simples: você come comida feita longe dos seus olhos. Você atravessa a rua na frente de máquinas de mais de uma tonelada que podem te esmagar. Quase todo mundo ao seu redor tem acesso a alguma arma ou ferramenta que pode te matar. Faz parte da realidade estar sob risco constante de alguma pessoa agir de forma inesperada.

Não quer dizer que tenhamos que desistir de enfrentar o problema de ataques aleatórios, só quer dizer que a primeira coisa a aceitar é que não vai ser possível eliminar isso da sociedade. Muito se engana quem acha que controlar armas e internet vai colocar uma pá de cal na situação, primeiro que como estamos vendo, basta a pessoa querer e focar em vítimas indefesas como os dois mais recentes fizeram; segundo que nem a China controla a sua internet de verdade, nem mesmo com todas as leis e agentes públicos focados em supressão conseguem evitar comunicação entre gente maluca e radicais.

Se você achar que a solução do problema está a uma ou duas atitudes governamentais de distância, vai ver tudo se repetindo vez após vez. Semana passada eu falei sobre sintoma e doença baseado no texto da Sally sobre o tema (não se corrigem sintomas), hoje eu estou focando numa outra questão fundamental: tem gente que não vai seguir nenhuma lógica social que consideramos básica, e essa gente nasce todos os dias. Pior: a maioria delas não vai chamar atenção suficiente antes de cometer um crime horrível.

Vivermos aos milhões em cidades lotadas é um caminho sem volta para esse tipo de problema. As pessoas não se conhecem, elas são obrigadas a confiar em estranhos, muita gente “some” no meio da multidão, a comunicação de qualquer ideia maluca passa por baixo dos radares da maioria… é uma questão fundamental da humanidade moderna.

Em tempos passados, com populações menores e mais espalhadas, essencialmente rurais, o maluco ou maluca tinha muito menos acesso e confiança “grátis” a outras pessoas. Fomos obrigados a aceitar estranhos, e por mais que isso seja uma caixa de Pandora ideológica, fomos obrigados a aceitar os diferentes como se fossem iguais.

Sim, no passado nem tão distante do começo do século passado, crianças viviam meio como bichos soltos no mato. Os adultos não ligavam muito, porque por mais que já estivessem incluídos em cidades, não eram cidades tão grandes e não tinha tanta mistura assim com locais afastados. Quase todo mundo tinha uma reputação muito bem definida com a comunidade local. Os pais eram mais inocentes sobre os perigos de deixar os filhos soltos no mundo, mas também tinham mais confiança verdadeira em outros adultos que poderiam ter contato com essas crianças.

As pessoas tinham nome, tinham família, tinham história na comunidade. Os estranhos precisavam se apresentar e serem aceitos pelos vizinhos, senão viravam párias sociais. Isso acabou em boa parte das grandes cidades modernas. Não só as pessoas perderam a capacidade (matemática mesmo) de conhecerem seus incontáveis vizinhos, como um mundo mais conectado gera grupos de afinidade por interesses, não por proximidade geográfica.

O grau de confiança real, isto é, confiança em pessoas que você conhece e convive, foi diminuindo absurdamente por questões logísticas da vida em grandes cidades; mas ao mesmo tempo, criamos uma relação de confiança implícita no outro por absoluta necessidade de funcionar como sociedade. Você não sabe mais quem é a professora da sua criança, quem é o médico que te atende, quem é o motorista do seu transporte… você só confia neles porque não tem outra alternativa.

Numa sociedade de confianças implícitas é muito mais difícil prever o que vai acontecer. E para complicar ainda mais, espera-se do ser humano do século XXI tolerar todo tipo de diferença, por mais que não consiga se colocar no lugar do diferente e fazer isso por empatia. Eu não acho que é um plano maligno das elites para destruir a coesão social, que fique claro, ninguém se organiza nesse nível no mundo real; o que eu argumento aqui é que o que entendemos como sociedade foi modificado bruscamente pelas necessidades da economia moderna, e estamos uns dez passos atrás na mentalidade.

As pessoas estão sendo forçadas a viver num mundo que não é natural para elas. Progressistas berrando que tem que aceitar tudo de diferente, conservadores berrando que estamos indo para o abismo. O cidadão médio, com razão, fica bem nervoso nesse processo. Uma boa parte da humanidade vai se anestesiando para lidar com isso (remédios, vícios, vida virtual), outra começa a se radicalizar para ver se consegue resolver algum problema.

E o resultado não parece ser dos melhores. Eu acredito que já passou da hora de enxergarmos a vida em sociedade de outra forma, como uma grande tribo obrigada a cuidar do máximo de pessoas possíveis para reestabelecer um mínimo de confiança real. A moda ideológica é nos dividir em grupos cada vez menores, bolhas de confirmação de crenças anteriores que enxergam toda a vida em sociedade como uma guerra por poder. Não só ficou mais difícil ter confiança real no outro, como a ideologia do século XXI dita que temos muito mais inimigos que aliados.

Vai terminar bem? Dado muito tempo, e eu falo de muitas décadas ou talvez alguns séculos: é bem provável que sim. O ser humano se adapta a novas realidades desde sempre, e por mais insensível que isso possa parecer: podemos absorver esse número de mortes no quadro geral da espécie. Mas como sempre, existem jeitos menos dolorosos de se adaptar às novas realidades. Quanto mais cedo o ser humano médio das cidades entender que a saúde física e mental do estranho é essencial para viver melhor, mais rápido entramos numa era melhor da nossa história.

Não muda o fato que a pessoa mais importante para cuidar é você mesmo, mas adiciono aqui a realização de que se você é obrigado a confiar em estranhos para sobreviver, o bem estar deles é a diferença entre a vida e a morte. Não dá mais para achar que vai viver numa comunidade de pessoas confiáveis ou parecidas o suficiente para serem previsíveis, isso é sonho infantilóide de radicais que acham que podemos voltar a ser uma humanidade essencialmente rural e manter os avanços tecnológicos extremamente complexos que utilizamos no dia a dia.

Até entendo um pouco quem quer ir morar no mato e viver de forma muito mais simples com pessoas compatíveis (mesmo que muita dessa gente ache que compatibilidade é cor de pele…), porque pelo menos abrem mão da sociedade moderna para ter esse grau de confiança mais real no outro.

Mas se você é que nem eu e não tem menor vocação para capinar e já não vive mais sem a dose diária de informação sem fim da internet, é bom começar a ser mais realista sobre a sociedade que se criou para permitir isso: uma de gente progressivamente mais apertada física e psicologicamente que vai gerar uma quantidade enorme de malucos assassinos se não fizermos nada, ou vai gerar uma quantidade tolerável de malucos assassinos se entendermos que a era do individualismo já passou.

Eu usei um atentado para defender renda universal e mais medidas “comunistas” como admitir de uma vez por todas que precisamos de milhões de novos trabalhadores focados em qualidade de vida de outros seres humanos? Sim. Você pode até discordar das soluções que eu ando pensando, mas o mais importante aqui é você enxergar o mesmo problema: muita gente muito junta achando que a sociedade não mudou de vez nas cidades. Não tem como sugerir soluções do mundo antigo, onde bastava matar o maluco da vila ou contratar mais um soldado para enfrentar os bandidos.

As soluções do mundo novo tem que partir do princípio da inevitabilidade da radicalização ou da facilidade do doente mental de causar estragos, porque isso não vai mudar. Ou você pensa em reestabelecer confiança real com cidades menores, ou você lida com a confiança implícita criando muito mais mecanismos para cuidar das pessoas que você não enxerga no seu dia a dia. O resto é ilusão de controle.

Melhor do que nada, provavelmente. Mas ilusão de controle que vai continuar frustrando as pessoas a cada vez que um desses crimes horríveis acontecerem apesar das medidas que políticos preguiçosos e cidadãos em pânico sugerirem.

Para dizer que é um texto amargamente otimista, para dizer que é um texto inocentemente pessimista, ou mesmo para dizer que por você pode desligar a internet que já deu o que tinha que dar: somir@desfavor.com

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Comments (20)

  • Não dá pra voltar atrás e refazer

    Pena de morte, sim. São atos danosos e irreparáveis, difícil voltar atrás e reparar o mal causado.
    Os retardados vão pensar 3 vezes antes de sair fazendo merda.
    Ja fui bem idiota em sair fazendo coisas que hoje condeno.
    Já toquei campainha e saí correndo, hoje percebo a idiotice em fazer isso e o caos que causa
    pra quem tem que ir ver quem eh que toca. (Falta de chinelo na bunda, diria minha avó)
    Ja roubei flor de jardim alheio e hoje sinto a dor de ter uma flor arrancada e morta de seu lugar de origem
    (Faltou chinelo de novo)
    Coisas pequenas e tolas da infância e juventude, hoje percebo que eram erros que poderiam ter sido evitados.
    Alguém sofreu com o que fiz, e se alguém tivesse me dado um toque eu não teria feito.
    Certo que não era taooooooo grave assim como o que acontece atualmente, mas era errado fazer, e eu fiz.

    • Os retardados vão pensar 3 vezes antes de sair fazendo merda.
      Adivinha o que nunca acontece na prática em países com pena de morte?

    • Prisão perpétua, ou pelo menos mais que 30 anos, já seria o suficiente. Pena de morte no Brasil só iria acontecer com manifestantes pacíficos e internautas que fazem memes e críticas que ferem o ego dos políticos. Nenhum traficante, coroné ou celebridade seria condenado.

      • Eu vi (ninguém me contou, eu vi) o caso de um preso que cumpriu 30 anos de prisão. Estuprava, torturava e matava. Como todo psicopata, era um ótimo mentiroso e exercia uma enorme liderança. Nos 30 anos que passou preso ensinou muita coisa para a centena de presos que conviveram com ele (a rotatividade em 30 anos é enorme). Ensinou como enganar a polícia, como parecer confiável para as vítimas e muitas outras coisas que prefiro nem comentar. Passados os 30 anos foi solto (tinha 50 anos) e não demorou nem uma semana para que volte a estuprar, torturar e matar.

        Resumo: vocês brasileiros pagaram casa, comida e roupa lavada para esse sujeito por 30 anos (um preso custa mais de dois mil reais por mês ao cofres públicos) para que ele ensine a centenas de pessoas como cometer crimes com mais eficiência e no final das contas ele saiu a mesma merda que entrou (talvez até pior) e continuou cometendo crimes.

        Pena de 30 anos não é suficiente.

      • Pena de morte te coloca em rota de colisão com o Acordo de San José do qual o Brasil é signatário desde os anos 90.
        PS.: Pra turminha dita progressista que acha engraçado ver a cara de cu dos reaças da turma que caiu na canoa furada do bolsonarismo e que toma partido de medidas na linha de redução da maioridade penal e aplicação de pena capital, bem, a descriminalização do aborto também entra em rota de colisão com o mesmo acordo.

    • Realmente, com tantos incidentes ocorrendo num período tão curto, dá a impressão que os terroristas estão numa “corrida” pra ver quem vai fazer o maior atentado da história do Brasil. Tomara que essa previsão esteja errada.

    • Vejo verdade em suas palavras, infelizmente. A bananalândia sempre teve o péssimo costume de copiar os modismos ideológicos dos EUA. Agora, estão copiando também o que há de pior no comportamento rasteiro deles. Quando rolar um Columbine tupiniquim, vai ser uma tristeza recordar desta postagem.

  • O que vai acontecer é o sujeito ser considerado doente e conseguir um hotel…digo… cela especial sustentada pelos pais das vítimas através de impostos, depois ser solto, ser protegido por ONGs, pelo STF e o caralho a 4. E não vão fazer nada pra caçar grupos e perfis terroristas. Mas vai você fazer uma piada boba ou criticar político na internet… acham até sua mãe. País dos bandidos.

    • Me sinto horrível por concordar, S., mas deve acontecer isso mesmo. Estou tão chocado e triste com essa tragédia que não sei bem nem o que pensar ou o que dizer…

    • O atual governo de El Salvador é uma baita amostra de que os Estados só não combatem o crime porque não querem, o caos e o medo são convenientes.

      • Cuidado com a bolha: tem gente de dentro de El Salvador dizendo que o que o Bukele deu uma de PSDB e fez acordão com as gangues para pacificar o país.

  • Continuo achando que a solução de curto prazo é banir a merda do discord, que é onde tem a maior concentração de malucos. A maioria desses Zé bunda nem sabem mexer em VPN e ocultar IP pra acessar lugares mais obscuros. 99% some do dia pra noite.

  • O ensino é uma merda, o ambiente escolar é uma merda. O aprendizado é ruim se não for uma escola de elite. E agora isso. Ainda tem motivos pra deixar uma criança frequentar a escola hoje em dia?

    Se até países onde as escolas são boas, como Noruega, é permitido por lei a opção de homeschooling. Só shitholes com pezinho no autoritarismo e na teocracia, como Turquia e Arábia Saudita, que proíbem os pais de cometerem a audácia de cuidarem dos próprios filhos.

    • Embora eu tenha alguma simpatia libertária pelo seu ponto de vista, não me parece ser uma questão realmente impactante na sociedade em geral. Estamos falando de menos de uma fração de porcento da população brasileira com condições de assumir a educação dos filhos. Não é como se tivesse uma demanda represada de gente querendo tirar filhos da escola, não?

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