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Aposta na pobreza.

Aposta na pobreza.

| Somir | | 8 comentários em Aposta na pobreza.

Felipe Neto está experimentando a sensação de ser vidraça nesse momento. A pedra que se arremessava em qualquer oportunidade de sinalizar virtude agora é uma das caras do escândalo da Blaze, mais um dos inúmeros sites de aposta que tomaram conta do Brasil nos últimos meses. O influenciador foi uma das figuras principais da campanha de divulgação da marca, mas agora tenta esconder a parceria. Poderia ser um texto falando mal dele, mas eu quero ir mais fundo: sites de aposta são mais uma iteração de um longo processo de exploração de populações vulneráveis.

Não sei quão profunda vai ser a discussão sobre casas de aposta online no Brasil, porque existem muitos interesses econômicos envolvidos. Existe uma verdade pra lá de inconveniente por trás disso tudo, uma que as celebridades ganhando para divulgá-las e políticos interessados em fazer dinheiro (com esquemas ou impostos) podem querer fingir que não estão vendo: esquemas para ficar rico rápido são uma armadilha cruel para as pessoas mais marginalizadas desse mundo.

Basta observar quantas formas de loteria existem no mundo atualmente e qual a parcela da população que realmente está rica para perceber a discrepância. Obviamente não é um caminho confiável para gerar e acumular riquezas. Traduzindo uma expressão do inglês: apostas, pirâmides e esquemas financeiros do tipo são um “jogo de soma zero”. Ou seja, um onde o dinheiro tem que sair da mão de uma pessoa para cair na mão de outra. Não existe valor adicionado à sociedade, ele só troca de dono.

Não custa dizer o óbvio: na absurda maioria das vezes, a loteria não vai te premiar. Quando existe a figura do sorteio, as pessoas parecem entender isso, mas quando esse tipo de jogo de soma zero usa uma maquiagem diferente, engana muita gente. Na prática, o dinheiro continua saindo dos bolsos de uma pessoa para cair nos bolsos de outra. Não se constrói muito com esses sistemas de troca de dinheiro.

Já consigo imaginar alguns de vocês argumentando que idiotas e dinheiro não foram feitos para ficarem juntos, e que perder dinheiro em apostas e cassinos é uma boa lição para fazer as pessoas aprenderem, certo? Certo… e errado. Se os efeitos negativos dessa mentalidade de loteria estivessem bem divididos entre a humanidade, eu também ficaria desse lado mais libertário da discussão, quem quer perder dinheiro que perca!

Mas o mundo não é tão simples. As pessoas não partem dos mesmos princípios e existem sim pessoas mais vulneráveis a esse tipo de golpe. Eu não sou muito fã do Estado interferindo nas liberdades pessoais do cidadão, mas eu gostaria de um pouco mais de coerência já que vão interferir. Não podemos vender cigarros ou bebidas alcoólicas para crianças, não podemos vender drogas para ninguém, não podemos nem mentir sobre os benefícios de algo legal que estamos vendendo, afinal, existe uma lei contra estelionato.

E essas regulações partem do mesmo princípio: nem sempre as pessoas têm capacidade de compreender as consequências de seus atos, seja por imaturidade, seja por risco de dependência física ou psicológica, seja até mesmo por não ter conhecimento suficiente para perceber uma informação falsa. Como nossa sociedade depende muito de confiança para fazer a economia funcionar, até de um ponto de vista muito prático é importante proteger as pessoas de seus próprios erros.

Como de costume, eu prego um certo equilíbrio: o Estado tem que escolher suas batalhas. É vital que ele coíba a venda de remédios falsos, mas é muito discutível que ele tente cercear liberdade de expressão, por exemplo. Se você parar para pensar, existe sim um público especialmente vulnerável a qualquer tipo de promessa fantasiosa: o mais pobre. Não porque nascem diferentes do resto, mas porque vão acumulando desvantagens durante a vida. E uma das desvantagens mais comuns é a do desespero por uma sorte melhor na vida.

E aposto que você achou que eu dizer ignorância como a desvantagem mais comum. Sim, ela faz parte dessa equação, mas quem coloca a pessoa marginalizada no caminho desses “comportamentos lotéricos” é o desespero. Ignorante todo mundo é, só depende do tema. Mas eu, pessoa que não é rica mas que tem rede de segurança financeira, não sou vulnerável a assumir riscos desnecessários para ter uma chance na vida. Eu posso escolher apostar de uma posição muito mais sólida.

Será que podemos dizer o mesmo de quem não tem dinheiro para comprar comida se não receber um salário por um mês que seja? Realidades diferentes criam sensos de risco diferentes. Se você já está vivendo no limite, a corda-bamba é sua realidade. Não é como se pegar dinheiro emprestado para apostar em jogo de futebol fosse algo muito assustador. O que é uma dívida para quem tem vinte outras?

O desespero que é alimentado por exemplos de pessoas vivendo em extrema riqueza, ostentando sem parar nos meios de comunicação, acaba virando algo natural para a pessoa. Talvez ela nem perceba como toma decisões desesperadoras o tempo todo. Viver no limite vira regra. E é aí que coisas como criminalidade, drogas, promiscuidade e apostas começam a atingir desproporcionalmente a parte mais pobre da população.

Eu argumento que tem algo de moralmente errado em criar e divulgar sites de aposta num país como o Brasil. Porque se fosse só ignorância sobre as chances abismais de ganhar dinheiro com isso, vá lá. Isso pode ser aprendido com alguns tapas na cara da vida. Sobrariam apenas aqueles que realmente ficam viciados em jogos, e talvez isso desse para ser controlado com programas de reabilitação e atenção para saúde mental.

Mas desespero? Desespero não é algo que se aprende ou desaprende, é algo que depende muito do seu ambiente para ser controlado. Desespero é a sensação de que a pessoa precisa pular um abismo para chegar do outro lado, sem nenhuma ponte à vista. Quanto tempo alguém consegue viver num país tremendamente desigual como o Brasil sem ter a mente corroída pela ideia de que só um golpe de sorte pode fazê-la chegar aonde quer?

E quanto disso não é verdade? Existem exemplos de pessoas que saíram de ambientes muito pobres para conquistar a riqueza, mas preste atenção em quanta gente faz sucesso e dinheiro por causa de parentes ricos e/ou bem relacionados; por causa de conexões, corrupção e… sorte. Será que é ignorância achar que no Brasil você precisa ganhar uma aposta bem difícil para sair do buraco? Eu acho que não.

Montar casas de aposta e cassinos no Brasil é especialmente escroto. Você vai acabar ganhando dinheiro em cima de gente que está apostando o pouco que tem por não ter a menor ideia de como se dar bem de forma diferente. Eu não vejo tanta diferença assim de vender drogas para crianças. Tem algo na vítima que a impede de enxergar onde está se enfiando e quais as consequências disso.

E não é algo que possamos só ensinar para não acontecer de novo. É relativamente simples dizer para a criança não botar a mão no fogo, porque se ela te desobedecer, rapidamente percebe a besteira que fez. Mas considerando quanto tempo demora para cobrar a conta, impedir ela de sequer começar a fumar é a melhor alternativa. Novamente, maldito Estado se enfiando nas decisões das pessoas, mas se você for pesar na balança custo e benefício, nesse caso funciona.

Só que quando você coloca uma barreira de 18 anos para começar, as coisas ficam muito mais cinzas. Crianças e adolescentes não deveriam estar apostando, mas não é curioso como escolheram muitos influencers que conversam com esse público para divulgar a Blaze, por exemplo? É a fase mais vulnerável de um ser humano para sugestão alheia, e toda indústria de sucesso pensa na renovação constante do mercado consumidor.

Mesmo que os criadores e divulgadores de sites de aposta não estejam ativamente tentando explorar as parcelas mais indefesas da nossa sociedade, é isso que eles acabam fazendo. É gente desesperada ou viciada que fica colocando dinheiro sem parar nesses sites, dinheiro que acaba na mão de golpistas como estamos vendo nas últimas investigações sobre o futebol, ou na mão de alguns sortudos. O que sempre dá certo é a plataforma e os influencers envolvidos pegando uma parcela desse dinheiro de desespero.

Apostas são um problema no mundo todo, porque o ser humano médio é terrível com probabilidades e porque uma enorme parcela da população está vivendo nesse estado de desespero constante. O problema não é a celebridade perdendo 1 milhão na live, são as milhares de pessoas perdendo mil reais à toa. Dinheiro que impacta a vida delas e que faz muita falta quando perdido.

Sem contar que estimula essa mentalidade de soma zero: que não existe a possibilidade de criar valor, apenas de tirar dos outros. Mas é claro, esse grau de aprofundamento é típico problema de primeiro mundo, aqui embaixo o que mais me preocupa é como o setor das apostas está conseguindo se enfiar dentro da cultura brasileira, de gente que não tem dinheiro para apostar e de mentes muito vulneráveis à promessa mentirosa de ficar rico ou conseguir uma renda extra.

Imagino que não precise dizer isso para o público médio do Desfavor, mas talvez possamos fazer alguma diferença repetindo a mesma coisa quando estivermos falando do assunto: site de aposta é cassino, e cassino só funciona porque as pessoas perdem mais do que ganham. Só é permitido porque quem cria, divulga e passa lei para deixar isso acontecer está tirando dinheiro de pobres desesperados.

E ninguém liga para pobres desesperados. O que só os deixa mais desesperados… pare de achar que é só otário querendo dar uma de esperto, quase todos os problemas dessa parcela da população são elevados ao cubo por essa falta de visão de futuro. Cassinos são proibidos no Brasil (e em vários países decentes também) por um motivo: predam os mais pobres e/ou marginalizados e não entregam nada em troca.

Soma… zero.

Para dizer que eu sou comunista, para dizer que as pessoas vão aprender com o tempo (não vão), ou mesmo para dizer que está adorando ver lacrador se lascar: somir@desfavor.com


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