Corruptofobia.

A Câmara dos Deputados aprovou nesta quarta-feira (14) um projeto que propõe criminalizar a discriminação de pessoas “politicamente expostas”, como políticos, ministros do Poder Judiciário e detentores de cargos comissionados. O projeto ainda tem que ir ao Senado. O texto foi aprovado por 252 votos a favor e 163 contrários. LINK


Quem disse que os políticos brasileiros não têm prioridades? Desfavor da Semana.

SALLY

Expectativa: criação de leis contra discriminação de grupos socialmente vulneráveis. Realidade: lei para favorecer políticos e seu entorno.

Esta semana vimos ser colocado em votação, em regime de urgência, um Projeto de Lei que define como crime a “discriminação” de “pessoas politicamente expostas”. Sabe o que isso significa? Vamos resumir para você

Você pode pensar que “Pessoas politicamente expostas” é sinônimo de político filho da puta, mas não. É pior do que isso. Consideram-se pessoas politicamente expostas “todas aquelas que, nos últimos cinco anos, exercem ou exerceram, no Brasil ou no exterior, algum cargo, emprego ou função pública relevante ou se têm, nessas condições, familiares, representantes ou ainda pessoas de seu relacionamento próximo”.

O leque é enorme. Chefes do Executivo (presidentes, governadores e prefeitos e todos os vices), Ministros, assessores, membros de todo o Poder Judiciário do Ministério Público e do Tribunal de Contas da União, vereadores e deputados, dirigentes de partidos políticos e até militares. Além de todos os seus familiares, representantes e “pessoas do seu relacionamento próximo”.

Pois bem, todas essas pessoas estão protegidas de “discriminação” por esta lei. Como se estas pessoas detentoras de enorme poder, status e bens não pudessem se defender sozinhas. Mas calma que piora, quando a gente analisa o que seria essa “discriminação”.

Dentre as muitas condutas previstas como “discriminação”, uma merece receber mais atenção do que as outras: proíbe negar abertura de contas bancárias, concessão de crédito ou de outro serviço a qualquer pessoa física ou jurídica que seja “politicamente exposta”. Sim, essa é a pior parte desse projeto de lei escroto.

Eu sei que o mais comentado essa semana foi a parte que “proibia falar mal de político”. Eu concordo que é um absurdo que isso seja sequer discutido e colocado em votação, porém, essa não é a parte mais preocupante. Inclusive, essa parte foi cortada, não foi aprovada, foi retirada, portanto, podem parar de falar nela.

Provavelmente, ela só foi colocada ali para tomar toda a atenção do público, para que ninguém repare no “pequeno detalhe” bancário. A parte que realmente interessa olhar (e que, curiosamente, nem a mídia está batendo) é a financeira.

Ao ameaçar o gerente do banco com pena de prisão ou ao ameaçar banco com uma multa absurdamente alta, se dá carta branca para que políticos condenados por crimes de corrupção, seus familiares e assessores abram quantas contas quiserem, na hora em que quiserem, como quiserem. O resultado disso é a criação de uma lei que irá dificultar absurdamente a investigação e punição dos crimes de corrupção, inclusive o crime de “rachadinha”, aquele tão recriminados no governo anterior, que o atual governo prometeu combater.

Isso é muito grave. Estão blindando de diversas formas políticos corruptos (eufemismo, eu sei) e seu entorno, só faltou usar o termo “corruptofobia”. Uma lei criada por políticos corruptos para beneficiar políticos corruptos. E o povo não para de bater na tecla “não vou poder mais falar mal de político” em vez de olhar para o que interessa.

Essa lei foi votada de supetão, em regime de urgência (qual é a urgência disso, me diz?) e tarde da noite. Não tem qualquer chance de isso ser bem-intencionado. E estão todos de mãos dadas: bolsonaristas e petistas votaram a favor.

A militância petista ainda teve a coragem de ensaiar um “mas o PT não tem culpa pois não tem maioria no Congresso”, mas, quando o placar da votação foi divulgado, tiverem que se recolher. 43 parlamentares do PT votaram a favor, quase um quinto dos votos favoráveis veio do PT.

Francamente, eu não sei o que é mais decepcionante: político meter lei para proteger a si mesmo de “discriminação” em regime de urgência ou o povo engolir a isca e focar apenas no não poder falar mal de político.

Supostamente, grupos que precisariam de proteção contra discriminação (assumindo que se ache válido fazê-lo) são grupos vulneráveis, não cidadão que ganha mais de 30 mil, tem toda a proteção do aparato estatal e status de “autoridade” no país. Bora discutir isso? Não, claro que não, responsabilizar políticos por seus crimes virou corruptofobia!

Vocês aí, militontos, não estão com vergonha de ver essa cambada de arrombados criando lei para favorecer a eles mesmos? Não se sentem traídos? Vão continuar polarizando e dizendo “ain pelo menos não é o bozo”. O Bozo é você, meu querido, no grande circo Brasil, o palhaço é o povo!

Toda semana o grau de indecência política sobre mais um degrau. Toda semana algo extremamente grave que atenta contra o Estado Democrático de Direito acontece e passa em branco. Parece que se não tiver um deficiente mental bravateando que com um soldado e um cabo se fecha o Congresso o povo não sente a democracia ameaçada.

Políticos estão se blindando e cagando para o povo. Se essa lei passar, vai valer para todos os políticos que estão por vir, vai conceder a eles o status de intocáveis, vai institucionalizar corrupção e torná-la quase impunível. Vai, militante, solta sua fala: “pelo menos não é o bozo”. Francamente, tem horas que dá até saudade de ver aquela anta suja e burra no cercadinho falando “cuestão”.

O desmatamento na Amazônia continua assustador, indígenas continuam morrendo, metade da população continua cagando em uma vala por não ter saneamento básico e os grupos realmente vulneráveis continuam sofrendo. O que esses arrombados fazem? Uma lei para proteger a eles mesmos e viabilizar corrupção, dificultando a investigação.

E ainda fizeram questão de incluir todos os demais grupos que poderiam impedi-los, como o Judiciário, por exemplo, estendendo o benefício a eles, para que todo mundo participe dessa baixaria. Mas tá tudo bem, não vamos criticar o PT, tá tudo certo do partido ter votado em massa a favor dessa atrocidade. O amor venceu!

“Ain Sally, mas isso não me afeta diretamente, além do mais, sempre roubaram e sempre vão roubar”. Sabe aqueles filmes nos quais o herói cai em uma armadilha na qual as paredes do quarto onde ele está começam a se fechar lentamente até esmagá-lo? São vocês. Como a parede ainda não está prestes a esmagar, todo mundo está tranquilo. Mas, acredite, em algum momento a parede vai te esmagar.

Tem que parar isso agora, enquanto ainda dá tempo. Tem que abrir mão dessa crença infantil de que o PT é um contraponto válido para o Bolsonaro e que é diferente dele. Não sei se vocês repararam, estão seguindo exatamente os mesmos passos do Bolsonaro, desde colocar cercadinho com aliados até usar e abusar do orçamento secreto, e agora a novidade: jogar bait para distrair as pessoas, de modo a que elas não olhem para o que realmente estão fazendo.

Mas, não adianta falar: influencer, mídia e político vão continuar inflando essa “discussão” do “não poder mais falar mal de político” para todo mundo ir na onda e opinar, deixando passar a questão bancária abaixo do radar. Então, fica aqui o recado apenas para o nosso leitor: esse trecho sobre “não poder falar mal de político” foi removido do projeto de lei, esqueçam ele.

E, um último aviso: dessa vez não vai ter oposição para fazer frente, pois a oposição se beneficia. Não vai ter STF para vetar, pois o STF se beneficia. Incluíram na porra do projeto de lei todos os grupos que poderiam de alguma forma melar esse projeto de lei, até o Ministério Público. Então, é com vocês. Ou o povo faz barulho (como fez na taxação das comprinhas de site chinês) ou dão uma baita carta branca para político roubar impunemente – hoje e sempre.

Muita atenção daqui para frente: nem sempre o importante coincide com o que é foco de discussão ou polêmica em redes sociais.

Para dizer que prefere ficar amigo de um político para também ser beneficiado por essa lei como “pessoa próxima”, para dizer que o brasileiro merece tudo de ruim que está para acontecer ou ainda para dizer que o povo cai em bait de site de fofoca imagina se não cairia nesse: sally@desfavor.com

SOMIR

A já folclórica incompetência do político brasileiro às vezes esconde o quão esperta essa classe pode ser. Depois de quatro anos do Executivo tomado por gente muito tosca, a gente pode até esquecer que quando os poderosos querem uma vantagem, eles podem ser muito eficientes.

E por vezes até mesmo sutis.

Nem parece que aquelas antas que planejam golpe de Estado por WhatsApp e são pegos com dinheiro na cueca são capazes de truques como o realizado nesse projeto de lei. Porque como a Sally já comentou, vimos um sendo tentado com sucesso: colocaram um artigo que penalizaria de forma muito mais pesada quem falasse mal de políticos, familiares e amigos de políticos. Isso era tão obviamente errado que atraiu a atenção de todo mundo.

A Câmara de Deputados, acuada pela opinião pública, fez a coisa certa e suprimiu esse absurdo do texto final. Uma vitória da democracia e uma lição aprendida pelos deputados: o povo não vai tolerar que eles sejam tornados uma minoria intocável por causa da sua exposição política. Imagina só comparar políticos ricos com gente que realmente sofre preconceito na vida?

Bom, aqui eu pego uma tangente que tem a ver com a minha profissão: de tempos em tempos eu tenho que lidar com clientes mais chatos. Cliente chato não é aquele que pede alteração nos materiais que entrego, e sim aquele que acha que sabe mais do que o profissional que contratou. As alterações que ele pede são desnecessárias e claramente tem um componente de ego envolvido, é como se a pessoa se valorizasse ao criticar o que o outro faz.

Por isso, eu acabei aprendendo um método de lidar com essas pessoas: o erro óbvio. O erro óbvio é algo que você deixa na arte enviada para o cliente aprovar sabendo que é um erro. Pode ser um texto num lugar meio estranho, um desenho fora do padrão, uma escolha estranha de cor… vale tudo desde que seja algo incômodo ao olhar de qualquer pessoa.

Esse erro óbvio atrai toda a energia do cliente chato. Você sabe o que ele vai criticar, e ele vai ficar feliz por ter achado algo para criticar. Isso evita que a pessoa cisme com coisas importantes do material publicitário e a protege de estragar a função da coisa toda. Afinal, não é porque o cliente é chato que eu vou deixar ir porcaria para a rua com o meu nome atrelado.

O que eu fui aprendendo com o tempo é que isso não é só um truque de pessoas que trabalham com design, é um método testado e aprovado para lidar com quase tudo na vida que vai ser julgado por terceiros. É meio como funcionam truques de mágica: você direciona a atenção da pessoa para uma coisa aleatória enquanto faz o que realmente quer fazer. O erro óbvio é tão eficiente que eu tenho até vergonha de admitir que levei para outros aspectos da minha vida, até mesmo os mais emocionais.

Porque no fundo, a maioria das pessoas nem liga muito para erros. Erros são parte da vida e raramente não podem ser corrigidos. Julgar e criticar tem muito a ver com ego e afirmação pessoal, coisas que realmente mexem com nossos estados mentais.

Quando os deputados deixam algo tão cretino na lei, estão querendo esconder da nossa visão o que realmente é importante. Ficamos tão empolgados com o combate ao artigo bizarro, o erro óbvio, que deixamos de dar atenção ao que passou aprovado por oposição e situação: pressão política contra instituições financeiras e empresas de todo o tipo que tentavam se livrar de manter laços com gente notoriamente corrupta.

Eles aguentam ouvir uns xingamentos no avião se puderem girar o dinheiro da corrupção entre amigos e familiares de forma mais eficiente. E agora podem ter uma lei para dar carteiradas diretas ou indiretas em quem não quer se enfiar nos esquemas deles, seja por honestidade pura, seja por terem contratos com o governo que não querem ver derrubados por suspeição no futuro.

É mais uma arma para garantir seus interesses, fisiologismo de marca maior que tenta recriar uma casta de intocáveis, casta que passou aperto nos tempos de Lava-Jato e não quer saber de passar de novo por todo aquele trabalho de ir para o tapetão para se salvar. Passou perto, viu? O atual presidente ficou preso por um bom tempo, o país parecia que ia começar a combater os esquemas deles.

Claro, como fica claro no uso de “atual presidente” no parágrafo anterior, sabemos que eles conseguiram se safar e retomar o poder. O grupo que tinha entrado para assumir os esquemas de corrupção perdeu as últimas eleições, mas deu seu jeito de ficar por perto do dinheiro público. Tanto que a votação foi bem majoritária a favor do projeto, esquerda e direita felizes com o prospecto de facilitar esquemas futuros e pulverizar mais ainda a distribuição do dinheiro roubado do Estado, dificultando investigações futuras.

Quando todo mundo esquecer do erro óbvio que eles usaram para nos distrair, o Senado aprova e o ex e atual chefe de um desses esquemas de corrupção sanciona para alegria geral de parentes e amigos de quem vai criar os próximos ralos de dinheiro público no Brasil.

Eles são burros demais para enriquecer ao mesmo tempo que entregam um bom serviço público ao povo, mas não o suficiente para não criar algumas distrações na opinião pública enquanto passam os projetos que realmente os interessam: os que os beneficiam diretamente.

Para dizer que o erro óbvio é na hora de votar, para dizer que o seu político de estimação é diferente, ou mesmo para dizer vai começar a usar essa tática para tudo: somir@desfavor.com

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