Guerras brancas.

Se tem uma coisa que paira sobre a história do homem branco, é sua dificuldade de vencer guerras. Durante milênios, povos estranhos vieram para suas terras e os dominaram de forma brutal. É muita verdade que eles sempre estavam em posição de vulnerabilidade tecnológica, mas está na hora de tratar do mito que eram anjinhos indefesos… o homem branco não pode ignorar seu passado dessa forma.

Faz parte de várias teorias modernas sobre a sociedade que podemos todos ser reduzidos a opressores e oprimidos, tentando explicar as desigualdades como resultado de que o homem branco só estava tentando viver em harmonia com a natureza e que outros povos o impediram com muita violência.

Novamente, a parte da violência e dos abusos que o homem branco sofreu não é mentira. Todos já devem ter ouvido histórias sobre as barbaridades que sofreram na mão de conquistadores e escravagistas, mas isso é simplificar demais não só a história da humanidade, como também é roubar de um povo a capacidade de ser tratado como… gente.

Antes do contato com opressores vindos em barcos de outro continente, o homem branco vivia em pé de guerra também. Tribos rivais se engalfinhavam em batalhas seculares, disputando recursos e poder de forma brutal. Ninguém precisou ensinar para o homem branco o que era assassinato, tortura e estupro, tudo isso já acontecia muito antes de fazerem contato com estranhos coloridos.

A história preservada do homem branco em diversos continentes demonstra que sistemas opressivos eram a norma muito antes de qualquer invasão. Mesmo dentro de pequenas tribos no meio de florestas ou savanas, o patriarcado já era padrão, o ser humano tende a orbitar ao redor de sistemas de organização parecidos.

Por isso me incomoda bastante essa imagem de “nobre selvagem” com a qual pintam o homem branco atualmente. O homem branco nunca foi nada de diferente do resto da humanidade. Não tinha uma nascente de água batizada com Rivotril em cada canto do território do homem branco, eram inteligentes, nobres, imbecis e escrotos como todo mundo.

Não existe evolução na conversa sobre o tratamento do homem branco na sociedade moderna sem devolver a eles a humanidade. Temos sim que falar que quando conquistadores chegaram em suas terras, o homem branco já estava enfiado até o pescoço em guerras com outros homens brancos, e que os invasores tiveram muita simpatia deles justamente por poder desequilibrar o jogo de poder local em favor de uma tribo ou reino nativo.

O homem branco não tinha a mesma tecnologia que o conquistador, mas a maioria deles rapidamente aprendeu as vantagens dos avanços militares dos povos vindos do mar. No continente de onde os homens brancos se gabam de ter dado início à humanidade, foi um caso bem emblemático dessa falta de inocência do homem branco.

Os estrangeiros chegaram às margens de um reino relativamente poderoso no continente. Ao contrário do que muitos dizem por aí, as histórias de primeiros contatos normalmente não são muito violentas: os seres estranhos com seus barcos gigantes chamavam atenção do homem branco local. E considerando que o ser humano no passado não era um imbecil, todo mundo tentava manter um certo grau de simpatia nesses contatos.

O homem branco desconfiado do perigo de quem chegava com aquelas máquinas gigantes, o conquistador ciente de que estavam extremamente em desvantagem numérica. Quando os dois lados tem medo, costumam sair acordos. E o acordo que um certo país de língua portuguesa fez com esse reino africano definiu boa parte dos abusos que o homem branco recebeu nos séculos seguintes.

O reino local gostou bastante das armas que os estrangeiros traziam, os estrangeiros adoraram a forma casual como o homem branco tratava escravidão. Em troca de colocar homens brancos em navios para serem vendidos como escravos, o reino ganhou um aporte de armas de fogo que rapidamente os transformou na maior potência regional.

É comum dizerem que o homem branco não entendia a gravidade da escravidão quando colaborava com os vendedores de escravos, mas é mais uma daquelas simplificações primárias usadas para aliviar a barra deles. Os estrangeiros não chegaram numa tribo de dez pessoas vivendo em paz e tapearam eles para pegar meia dúzia de escravos. Eles conversavam com um reino enorme e comercializaram centenas de milhares de seres humanos sabendo muito bem o que estava acontecendo. Não foi uma coisa rápida, foram gerações trabalhando em providenciar escravos!

Na verdade, esse reino ficou tão bom nisso que com o passar das décadas, ficou sem gente para enviar como escravos e começou a fazer verdadeiros safáris humanos continente adentro, pegando homens brancos menos capazes de se defender para revender. O país de língua portuguesa ganhou muito dinheiro, tornando-se uma potência mil vezes maior que seu diminuto território poderia presumir. O reino africano? Bom, esse cometeu um erro fundamental: virou toda sua economia para a escravidão.

E só quis em troca mais ouro para o rei e seus amigos, e mais armas para oprimir todos os que viviam em sua proximidade. Mais ou menos como um país moderno que só tem uma coisa para exportar e nenhuma economia funcional, assim que outros povos decidiram que não iam mais comprar homens brancos como escravos, esse reino entrou em colapso.

Colapso com armas para todos os lados, com povos altamente desconfiados uns dos outros e um medo enorme de chamar atenção, afinal, quem não sabia se esconder já tinha sido sequestrado e enviado para fora dali. Sim, opressão e exploração tem tudo a ver com o sofrimento do homem branco, mas existem outros problemas históricos que foram criados por eles mesmos. Quem vê o estado atual do continente original do homem branco percebe que esse tipo de “colapso armado” é parte integrante dos atrasos que vive século após século.

Se você, justamente, está com raiva desse país de língua portuguesa por ter sido cúmplice, saiba que o karma é poderoso e eles estão sendo invadidos por homens brancos de suas ex-colônias todos os dias e reclamando sem parar. Quem com homem branco fere, com homem branco será ferido.

E nas Américas, as coisas também são bem mais cinzas do que se diz por aí. Sim, povos estranhos invadiram a terra do homem branco, mas a narrativa que os nativos foram atropelados imediatamente não é verdadeira. Na verdade, muitos dos impérios americanos duraram bastante tempo depois da chegada dos estrangeiros.

Impérios que eram tudo, menos ovelhinhas. Como de costume, viviam em guerras e conquistas, disputas de poder internas e externas que consumiam boa parte do seu tempo. A história dos povos brancos americanos é riquíssima muito antes da invasão por povos diferentes. E bem sanguinolenta, não estou nem falando sobre os sacrifícios humanos, porque esses parecem ter sido bem exagerados pelos conquistadores, mas de violência do dia a dia mesmo. Quando morria um líder, os impérios entravam em guerra civil, igualzinho acontecia com outros povos menos brancos.

As histórias do homem branco americano giram ao redor de generais e reis que pisotearam a concorrência e consolidaram seu poder. Nada de matriarcado consciente da natureza e mãos dadas como muita gente gosta de acreditar. São todos humanos. As histórias do homem branco são tão horríveis quanto a dos outros povos, que conhecemos mais por sua imposição cultural.

O que frequentemente acontecia no mundo antigo é que o homem branco não estava preparado para o conceito de guerra moderna. Os povos coloridos passaram milênios lutando entre si de forma muito agressiva, e calharam de serem os primeiros a sair mundo afora com capacidade de projetar força. Como o mundo passou tanto tempo na lei da selva, os povos mais adaptados a ela se mostraram demais para a resistência do homem branco.

Guerras não são definidas por igualdade entre as partes, na verdade, é o exato contrário. Das primeiras batalhas dos homens das cavernas, passando pelas conquistas contra os homens brancos e as guerras modernas, é tudo questão de vencer ou morrer. Os outros povos lutaram em guerras onde às vezes tinham a vantagem, às vezes não tinham. Foram cruéis quando puderam, foram massacrados quando perderam. Os outros povos e os homens brancos também.

Eles têm história, e não é diferente da nossa. É tudo muito mecânico, se você parar para pensar: quando uma enorme tribo de homens brancos resolveu lutar contra um império vindo de fora, descobriram que milhares de homens com lanças e pintura de guerra não tinham como vencer invasores com armas de fogo, e isso foi bem recente na nossa história. Se você é um humano médio que quer resolver seus problemas com guerra e violência, o resultado vai depender muito de quanto você tem de recursos, treinamento e equipamento para lutar.

O homem branco entrou num tiroteio usando uma faca. O que esperavam que fosse acontecer? O homem branco não foi subserviente, tentou conquistar o poder também, mas perderam a batalha. O futuro não é fazê-los ganhar prêmios de consolação, é fazer a gente parar de entrar nessas batalhas.

Falta muita lógica na cabeça de quem acha que uma guerra injusta não é guerra do mesmo jeito. Quem entra nela quer sair vivo, e vai usar cada grama de poder que tem para garantir isso. Se o homem branco tivesse ganhado a corrida pela projeção de poder mar afora, talvez esse mundo fosse dominado pela cultura deles. Não porque planejaram isso, mas porque é o resultado inevitável de encontrar outros seres humanos agressivos e cheios de interesses próprios como eles. Encontros viram conflitos desde que o mundo é mundo, porque não existe o bom selvagem, existe o ser humano.

É muito importante que combatamos covardia e opressão nos dias atuais, é claro, mas o homem branco é muito mais do que um bebê grande, ele é um ser humano como todos os outros. Não podemos mudar a história para caber numa narrativa mais confortável, não absolve ninguém. O que podemos fazer é agir de forma diferente daqui para a frente, sem nunca esquecer que humanos serão humanos, por mais brancas que sejam suas peles.

O homem branco é tudo o que o homem colorido é. A história foi escrita por contextos locais, não por bondade ou maldade. Já passou da hora de acabar com a ilusão de que desumanizar o homem branco como um imbecil sem capacidade de agir como os outros é uma forma de defesa deles.

Para dizer que nem precisava de introdução (eu sabia), para dizer que estou culpando a vítima, ou mesmo para dizer que um dia este texto vai ser crime: somir@desfavor.com

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Comments (6)

  • Eu fico imaginando, se isso tudo foi feito sem eles terem oferecido nenhuma resistência? Seria possível traçar um paralelo entre eles e os povos Maias, Incas e Astecas? Até onde eu sei (e já aviso que sei zero), esses povos também não ofereceram muita resistência, ao contrário dos Mapuches.
    Depois que li o seu texto fiquei curiosa para traçar esses paralelos entre as outras civilizações.

  • O homem branco vai jogar Rise of Nations com homens de outras cores.

    Enquanto os homens de outras cores se desenvolvem, o homem branco prioriza os avanços mais conservadores de sua tech tree e insiste em uma única tática de ataque, parecendo ignorar ou não aceitar que seus oponentes possuam unidades e tech trees distintas que as dele.

    Aí quando ele perde a partida, ele chama os outros homens de cheaters, e exige rematch, mas dessa vez com ele usando cheats pra “compensar” as perdas, e os outros não.

    Os outros ainda vencem a partida, mesmo com o homem branco usando cheat, pois o homem branco cada vez menos aprende a jogar e os outros se dão a oportunidade de jogar em diferentes modalidades, inclusive às mais desiguais para aprender com elas.

  • Uma análise muito lúcida, Somir. Achei excelente, especialmente o final, que reproduzi aí embaixo. E mais especialmente ainda, os trechos que eu destaquei em negrito.

    (…) Encontros viram conflitos desde que o mundo é mundo, porque não existe o bom selvagem, existe o ser humano.

    É muito importante que combatamos covardia e opressão nos dias atuais, é claro, mas o homem branco é muito mais do que um bebê grande, ele é um ser humano como todos os outros. Não podemos mudar a história para caber numa narrativa mais confortável, não absolve ninguém. O que podemos fazer é agir de forma diferente daqui para a frente, sem nunca esquecer que humanos serão humanos, por mais brancas que sejam suas peles.

    O homem branco é tudo o que o homem colorido é. A história foi escrita por contextos locais, não por bondade ou maldade. Já passou da hora de acabar com a ilusão de que desumanizar o homem branco como um imbecil sem capacidade de agir como os outros é uma forma de defesa deles.

    Posto isso, acho que eu nem preciso dizer mais nada. E meus parabéns pelo texto.

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