Pergunta Carregada.

Depois da notícia da morte de mais de cem refugiados palestinos enquanto buscavam comida nos caminhões de ajuda humanitária… você está de que lado dessa guerra?

Guarde sua resposta um pouco. Vamos falar primeiro sobre uma ferramenta de retórica chamada Pergunta Complexa, ou como eu prefiro chamar, Pergunta Carregada. Toda pergunta pode ser complexa por uma série de motivos, mas quando você fala “carregada”, você está mais perto da ideia por trás do termo: é uma pergunta que carrega junto uma premissa, e que se você não prestar atenção em como vai responder, admite a premissa mesmo sem querer.

“Vai se encontrar com sua amante?” – pergunta a mulher ao ver o homem pegando a chave do carro. Se o homem responder que não, não está dizendo que necessariamente não tem uma amante, apenas que não está indo se encontrar com ela. A pergunta coloca a premissa que ele está traindo e segue em frente.

Mas nem todo exemplo é simples assim, esse tipo de pergunta aparece muitas vezes na nossa vida, boa parte muito mais eficiente em camuflar a premissa. Não precisa nem ter intenção de usar essa tática, sai meio que por instinto quando estamos argumentando com outras pessoas. A pessoa quer afirmar uma coisa e sai desse jeito.

Outro exemplo clássico é quando alguém te pergunta se você gosta de bandido quando fala sobre direitos humanos. A premissa que a pessoa enfia na conversa contra sua vontade é que direitos humanos são relativos, podem ser ligados e desligados de acordo com a nossa vontade de momento. Ela pode até acreditar nisso de coração e não estar tentando nenhuma manipulação, tanto que as pessoas que reclamam dos “direitos humanos” normalmente não são exemplos de inteligência apurada. Não muda a lógica da coisa: a pergunta já vem com uma afirmação, ou você gosta de bandido ou você defende os direitos humanos.

Uma escolha que ninguém precisa fazer. O que nos leva de volta à pergunta do começo do texto: depois de ver os últimos acontecimentos da guerra entre Israel e Hamas, você está de que lado?

Oras, eu não preciso estar de um lado. A afirmação que a pergunta carrega é a de que você precisa defender um grupo ou outro numa disputa. É isso que você quer fazer nessa situação horrível? Porque não é o que eu quero. A premissa é que a guerra precisa acontecer e que você precisa fazer parte de um dos lados. Não é verdade, e eu posso provar com uma variação da pergunta, usando a mesma tática:

Depois desses meses de guerra, você quer matar crianças israelenses ou palestinas?

Se você não tem nenhum problema grave de psicopatia, a resposta seria que você não quer matar nenhuma criança, independentemente de onde elas nasceram. A pergunta ainda te manda escolher um lado, mas como a consequência é muito mais pesada, você consegue enxergar mais claramente a premissa enfiada na pergunta.

Quando te “mandam” escolher um lado com uma Pergunta Carregada, você aceita toda a violência horrível de terroristas e militares sem questionar. E é isso que eu enxergo como importante no texto explicando a tática de retórica utilizada pelos mais radicalizados: eles criam a ilusão de que você não pode ser contra o horror da guerra e do terrorismo sem justificar alguma violência no processo.

O polarizado defendendo Israel cegamente tolera crimes de guerra, o polarizado defendendo os moradores de Gaza tolera o terrorismo do Hamas. Ambos são intoleráveis. Você pode estar nesse campo de pensamento sem nenhum problema, é mentira que você precisa chacoalhar uma bandeira ou outra. Ser contra a barbárie por si só é uma posição válida. E eu diria que é a única posição válida.

Direitos humanos não protegem bandidos, eles protegem pessoas. Bandido é uma definição que você pode colocar em qualquer um, com ou sem provas. Pessoa é algo inalienável, todo mundo é humano independente do seu gosto pessoal. Se ficar provado que Israel atirou contra refugiados buscando comida depois de meses passando fome, é um crime de guerra horrível que precisa ser punido de forma duríssima. E mesmo que tenha sido um pânico generalizado que tenha causado as mortes e não execução de civis, ainda é resultado de ações perigosas do exército invasor.

Você pode ficar totalmente contra a forma como Israel escolheu reagir contra os ataques terroristas e ainda sim condenar o Hamas pelo terrorismo. Você pode ficar totalmente contra as ações terroristas do Hamas e ainda sim condenar Israel pelos milhares e milhares mortes de civis. Escolher um lado é um truque argumentativo de quem está radicalizado e quer mais gente no seu time.

Da forma como eu entendo, é mais uma etapa da incapacidade de resolução de conflitos no Oriente Médio: da forma como as coisas acontecem, é impossível que a luta entre os povos locais termine aqui. Novas gerações de israelenses e palestinos vão crescer com a certeza que o outro lado não vai parar antes de exterminar totalmente seu povo. Israel não vai dar o passo extra de cometer o genocídio completo dos palestinos, os palestinos não vão conseguir evitar que Hamas ou outros grupos terroristas façam de sua missão de vida se vingar dos israelenses, evitando qualquer acordo de paz duradouro.

É um conflito de escolhas impossíveis. Israel não pode simplesmente aceitar ataques contra seus civis, os palestinos de Gaza vivem sob uma ditadura de grupo terrorista. A maioria das pessoas dos dois lados da fronteira nem queriam entrar nessa briga, simplesmente caiu na cabeça deles. Se você está com sua vida ameaçada é totalmente compreensível tomar o lado que majora suas chances de sobreviver; mas se você é um observador externo, o que diabos você está fazendo ao escolher um lado?

Ou mesmo achando que existem só dois lados. Eu estou falando sobre Perguntas Carregadas justamente porque se você não prestar atenção, compra uma premissa aleatória como verdade. Não é para ter lado de Israel, neutro e lado do Hamas apenas. Existem incontáveis níveis entre uma coisa e outra. Que inclusive podem ficar mais ou menos compatíveis com a sua visão de mundo com o passar dos meses, semanas, dias…

A gente é contra tudo o que é contra e a favor a tudo o que é a favor, criar uma imagem em cima da pessoa por concordar ou discordar de uma coisa não muda a essência da pessoa. Com boas informações e liberdade de expressão as pessoas podem ser mais coerentes e confiáveis nas suas visões de mundo, com Perguntas Carregadas vindo de todos os lados, só incentivamos radicalização e pior ainda: a noção de que o ser humano aleatório do outro lado da sua cerca não é humano.

Uma dessas perguntas carregadas pode surgir agora: “você acha que o Lula estava errado?”, como se mais uma tragédia humanitária na Faixa de Gaza fosse a validação da incrível besteira dita pelo presidente brasileiro algum tempo atrás. É uma tentativa de te arrastar para um dos lados enfiada no meio de uma desonestidade intelectual. Uma Pergunta Carregada. Quem não leu o texto sobre a questão ser especificamente a comparação com o Holocausto que ele fez, pode ler aqui.

E como nos livramos desse tipo de armadilha? O mais simples é dizer que não entendeu a pergunta. Básico da comunicação: quando precisar de esclarecimento, peça esclarecimento. Burro é quem se enfia em discussões inúteis e aceita o papel de espantalho numa argumentação que não lhe pertence. Certo sobre o quê? Lado de quem? O que isso significa para você?

A maioria de nós tem um compasso moral e ético, aprendido com o passar dos anos depois de analisar o que sentimos e o que os outros parecem sentir. A agulha que aponta para morte de inocentes por “causas maiores” é a que precisa ser arrumada, não a de quem não está ligando para qual a cor da bandeira que se balança por aí.

A situação em Gaza é uma ofensa ao senso de ética e moral que eu tenho, não importa quem esteja certo ou errado. A partir disso, a gente pode analisar quem está fazendo o quê, por qual motivo, e eventualmente até fazer o juízo de valor sobre as escolhas de cada lado. Só não pode ficar confuso que o único lado humanitário é aquele que não quer a morte de inocentes que não escolheram entrar em combate. E que nenhum assassinato do tipo, por ação ou falta dela, se justifica no final das contas.

A situação na região é complicada por um motivo: está todo mundo certo e todo mundo errado ao mesmo tempo, você pode ter empatia com quem não aguenta mais terrorismo e ter empatia com quem paga com a vida a ação do grupo que agia como ditadura em Gaza. Você pode achar que Israel abusa dos palestinos há décadas e é muito leniente com os seus radicais, você pode também achar que o Hamas é ideologicamente podre e assassino e que os palestinos se acomodaram com sua presença e muitas vezes aplaudiram seus crimes até eles tomarem todo o poder.

Dito isso, ninguém merece ser degolado e estuprado por um bando de terroristas e ninguém merece ficar preso numa área bombardeada sem recursos básicos por causa desses terroristas. É simples não ter um lado no sentido de quem te faz esse tipo de pergunta carregada faz.

A primeira coisa a se pensar nessa questão é a rejeição à barbárie, tortura e violência. Isso já aniquila a premissa cretina de que você precisa achar que um lado é o bem e o outro é o mal. Não precisa. O terror, vindo de quem venha, não é justificável. Não engula premissas com as perguntas que responde, elas são venenosas.

E sério… é só dizer que não entendeu a pergunta. Isso deixa a pessoa tentando te manipular furiosa, mas quem só está perguntando de coração aberto vai esclarecer numa boa. Peça esclarecimento até admitirem o que querem que você seja forçado a dizer. E aí, é só não dizer.

Para perguntar se eu apoio os crimes de Israel, para perguntar se eu apoio os crimes do Hamas, ou mesmo para perguntar se eu quero matar criancinhas: comente.

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Comments (8)

    • Eles se odeiam muito mais do que nos odeiam. Israel estava começando a ter uma guinada lacradora antes dos ataques do Hamas. Muita da cultura que vem de Israel faria os bolsominions colocarem fogo na bandeira azul e branca. E a Palestina tem um longo histórico de diversidade religiosa, o atentado das olimpíadas de Munique foi feito por palestinos cristãos! Até por causa de Jerusalém, é um povo com alguma cultura de convivência. A fúria desses dois povos é um contra o outro muito antes de qualquer outra coisa. O Hamas é horrível, mas é um horrível diferente do Estado Islâmico, por exemplo.

      • Em se tratando de antagonismos, sugiro visitar a Igreja do Santo Sepulcro, em Jerusalém. Lá tem uma antiga escada de madeira de uma obra não iniciada na borda da janela da direita da fachada principal da Igreja, deixada lá desde 1757, uma vez que as SEIS igrejas cristãs que têm direito sobre o Santo Sepulcro, desde então, não conseguem chegar a um mínimo de consenso sobre qualquer iniciativa em relação ao local, por menor que seja (o último infeliz que tentou tirar a escada, um monge, foi excomungado).

        Para facilitar as coisas, nos anos 1960, o então Papa Paulo VI determinou que a escada só poderia ser tirada quando todas as igrejas cristãs resolvessem todos os problemas entre elas. A começar por determinar quem é o dono da escada…

  • O que me entristece nem é essa polaridade (burrice sempre vai existir), mas o fato que a região está há tantas décadas em contante violência que provavelmente só transformando um dos lados em tapete vai resolver os conflitos (e dados outros países no entorno, se for a Palestina a virar campo de golfe podemos ter mais gente entrando na guerra).

  • Lembra um pouco o conceito de sequestro da amígdala.

    E esses povos vão continuar brigando independente do que nós achamos, melhor focarmos nas crianças que sofrem no nosso próprio país, e não são poucas, que estão no nosso alcance.

  • “O polarizado defendendo Israel cegamente tolera crimes de guerra, o polarizado defendendo os moradores de Gaza tolera o terrorismo do Hamas. Ambos são intoleráveis. Você pode estar nesse campo de pensamento sem nenhum problema, é mentira que você precisa chacoalhar uma bandeira ou outra. Ser contra a barbárie por si só é uma posição válida. E eu diria que é a única posição válida.”

    Perfeito, Somir. Mais claro do que isso, impossível. Concordo totalmente, especialmente com os trechos desse parágrafo que eu destaquei em negrito. Em nenhum conflito humano, em tempo algum, jamais houve, há, ou haverá um lado que seja 100% certo e outro que seja 100% errado. Essa simplificação tola e perigosa de “o bem contra o mal” é só clichê de filme. Na vida real, existem muito mais nuances e é tudo muito mais complicado. O mais triste, contudo, é que muitos não conseguem – ou não querem – enxergar as coisas dessa forma. E há outros tantos que, cegos pela própria ignorância e imersos nessa merda de polarização radical que só cresce no mundo, não te entenderiam nem se você desenhasse.

    • Exatamente, W.O.J.

      Talvez soe ingênuo e utópico, ainda mais por eu ter passado muitos anos estudando guerras e relações internacionais, mas gostaria que a humanidade evoluísse além da necessidade de tanta violência. Temos inteligência artificial e várias tecnologias que seriam sonhos distantes décadas atrás, guerras soam tão… primitivas. Não deixa de ser patético que não consigamos resolver alguns problemas sem usar desse grau de violência.

    • O que me deixa mais triste é que não faltam recursos e energia para a barbárie e para a polarização. Se essa mesma intensidade fosse aplicada em qualquer coisa minimamente positiva…mas aí os governos alegam falta de recursos e as pessoas, de energia…

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