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Incomparável.

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| Somir | | 30 comentários em Incomparável.

“Mas, por que foi tão sério Lula comparando o que Israel está fazendo com os palestinos de Gaza com o que Hitler fez com os judeus?”

Vamos lá: você pode achar sério ou não, isso é livre. Mas você pode achar qualquer coisa séria ou não… tem gente que acha que tortura não é coisa séria, tem gente que acha que abrir demais as pernas no metrô é coisa séria. Se a gente quiser falar sobre o tema nesse nível de subjetividade, vamos girar em falso. Para que não fiquemos todos enroscados nessas questões filosóficas sobre o que é bom, ruim, importante, inútil… existem leis. Elas colocam linhas guias para a gente não começar a viajar demais nas discussões.

Ontem eu tive uma longa discussão com a Sally sobre uma questão filosófica na fala de Lula, num resumo muito porco, eu estava argumentando que a comparação com o Holocausto era bizarra porque aumentava além do razoável a crítica ao que Israel fazia; e não porque fazia do Holocausto algo menor. Eu estava pensando em escrever o texto nessa linha. Mas na conversa com ela eu percebi como era de uma subjetividade perigosa para o assunto. Perigosa e inútil.

Eu já escrevi antes sobre a bizarrice da negação ao Holocausto, especialmente naquelas que usam como argumento que “não foram 6 milhões”. Por que é bizarro? Porque não existe um número onde a coisa deixa de ser um crime horrível de extermínio frio e calculista de seres humanos por motivos torpes. Mesmo que você faça alguma ginástica mental e se convença que os nazistas exterminaram dez vezes menos judeus do que os dados oficiais dizem, os nazistas se tornam pessoas boas?

E foi aí que eu percebi o paralelo: discutir se eu acho que no fundo Lula estava piorando a ação de Israel ou “melhorando” o que Hitler fez é completamente inútil para o cerne da questão, é argumentar se os nazistas mataram 6 milhões ou 600 mil. Não modifica o problema fundamental e não nos oferece formas práticas de lidar com o tema.

A legislação ao redor de como se pode ou não se pode falar sobre o Holocausto tem um objetivo prático: estabelecer que essa foi a pior coisa que a humanidade já fez e deixar marcado na história que para lá a gente nunca pode voltar. É mais do que uma informação sobre o passado da espécie, é um selo que colocamos no passado para sinalizar perigo. A humanidade passa informação sobre veneno de uma geração para outra, evitando que outras pessoas sofram com isso.

A ideia é que ninguém resolva tirar o aviso de veneno do frasco, porque o tempo passa e as gerações posteriores não vão ter memórias de passar mal com o veneno. Tornar a conversa sobre o holocausto cada vez mais subjetiva é mexer no rótulo de veneno e trocar a caveira por um emoji aleatório. É confundir uma mensagem que tem que ser clara.

Tem um texto antigo aqui no Desfavor, da Sally, que fala sobre as outras tantas vítimas daquele momento histórico. E eu concordo com ele: os judeus tendem a concentrar demais aquele horror nos números deles. Eu acho válido abrir a conversa do Holocausto para colocar as outras milhões de pessoas que pereceram naqueles anos horríveis, porque isso é deixar o rótulo de veneno mais chamativo. O que o bom senso e as diversas leis ao redor do mundo sobre negação do Holocausto e similares tem em comum é não deixar tirar o rótulo de veneno. Justo querer discutir se tem que ser vermelho ou amarelo, mas nunca querer descaracterizar ele.

Essa é a lógica por trás das regras, escritas e não escritas, sobre como falar do Holocausto. Muita gente quebra essas regras, e elas nem são regras em alguns países desse mundo… em boa parte do Oriente Médio é comum negar que existiu e dizer que foi pouco ao mesmo tempo! Lula soltou essa frase dizendo que só tinha visto algo parecido com o que Israel estava fazendo com os palestinos no caso de Hitler com os judeus porque estava diante de uma plateia com muitos muçulmanos. Falando para esse público, você provavelmente recebe uma salva de palmas por comparar Israel com o regime nazista.

Mas o mundo é maior que uma plateia eventual. Por uma confluência de fatores, a frase ganhou destaque e virou arma na mão do governo israelense, que concorde você ou não com o que estão fazendo, está em guerra e especialmente mais sensível a qualquer crítica que o de costume. Então, sim, podemos fazer uma análise política sobre o que moveu o governo israelense a fazer o que fez, podemos até ser cínicos sobre as verdadeiras motivações deles.

Só que isso não muda a lógica da coisa. A frase de Lula foi péssima e séria porque é assim que boa parte do mundo civilizado resolveu tratar do tema. Em alguns países europeus, a comparação de qualquer coisa com o Holocausto está tipificada como crime. Não é subjetivo. Você pode querer filosofar sobre o contexto quanto quiser, não muda o fato. O fato é que uma pessoa do alto das suas capacidades intelectuais e com alcance global fez a comparação entre uma coisa que não era o Holocausto com o Holocausto. Se fosse um ditador árabe genérico, teria um peso diferente, mas Lula é representante de um país que se vende como democrático e pelo menos em tese respeitador dos Direitos Humanos.

Você não vai ver nenhum líder de país minimamente organizado falar algo do tipo, porque eles sabem que as regras não permitem. Se você não quer ser visto como um buraco atrasado e brutalizado, não fale coisas que só presidentes de buracos atrasados e brutalizados falam. Lula está sendo cobrado por dizer algo que não se diz se você faz parte dos países que evoluíram.

Pense o que pensar, não tem jeitinho brasileiro para falar de Holocausto dessa forma no clube de países desenvolvidos. Nem mesmo o Putin ou o Xi Jinping falam essas coisas! E olha que eles podem basicamente tudo em seus países. É sério porque Lula quebrou uma regra que alguém na posição dele tem obrigação absoluta de saber.

“Mas eu não concordo com a regra!”

Ok, mas não muda o fato que a regra existe. E não muda o fato que ela existe por uma lógica razoável. Se você entende que o que os nazistas fizeram foi realmente o ponto mais baixo da humanidade, faz sentido colocar um baita de um aviso de perigo em cima da memória. Qualquer alternativa tem que levar isso em consideração, se a sua discordância faz com que as novas gerações não percebam o desastre que foi aquilo, você não está melhorando o mundo. Está só tirando o aviso de veneno do veneno para alguém abrir a garrafa de novo. Se tem jeito melhor de lidar com a memória do Holocausto, não é a mesma conversa sobre coibir as ações de quem diminui sua importância e permita que a humanidade se envenene novamente.

Eu tenho uma alma super libertária na questão de liberdade de expressão e mesmo assim dá muito trabalho achar um caminho que mantenha o aviso de perigo nessa parte da história humana e que permita discurso totalmente livre sobre o tema. Atualmente a regra é essa. Se surgir algo melhor que deixe as pessoas mais livres para se expressar, serei defensor. Porque tem isso, mesmo que você ache que tenha uma grande ideia sobre como equilibrar as coisas, ainda precisa convencer o resto do mundo civilizado.

“Mas Israel está tirando vantagem disso!”

Ok, mas não muda o acontecimento nem mesmo a lógica que existe por trás da reação negativa à fala de Lula. É que nem reclamar que o time adversário fez gol de falta depois de você dar uma rasteira no atacante deles… se não quer lidar com cobrança de falta contra o seu gol, não cometa faltas. Lula não é criança nem incapaz, ele sabia o que estava falando, ele fez a besteira sabendo que estava fazendo besteira, só deve ter achado que não ia dar tanta repercussão negativa.

Se não quer ser julgado por comparar alguma coisa com o Holocausto, a única alternativa é não comparar algo com o Holocausto. A partir do momento que Lula fez isso, abriu as portas para o escrutínio. Não existe liberdade sem responsabilidade. Que todos possam falar o que quiserem, mas que ninguém seja imune à crítica ou à lei por isso.

“Mas Israel está massacrando os palestinos!”

Ok, mas não é o Holocausto. Não é nem perto do Holocausto. A SS não tocava sirene antes de bombardear, não considerava se o judeu era combatente ou não, não dava satisfação de nada. Os nazistas entravam nas casas dos judeus, pegavam eles pelos cabelos, jogavam na rua e matavam. O objetivo era literalmente exterminar um povo, não era uma guerra contra um grupo de judeus armados, era massacre da forma mais horrível que já vimos.

Tem muito o que criticar na forma como Israel está fazendo a invasão da Faixa de Gaza e como estão morrendo civis na luta contra o Hamas, mas a comparação é errada por tornar a ação dos israelenses muito mais desumana do que realmente é, dando munição para antissemitas inflamarem a massa ignorante; e é errada por dar uma aura de luta minimamente válida para o nazismo. Eles não estava reagindo a um ataque terrorista brutal nem mesmo preocupados com judeus tentando jogar foguetes sobre suas casas, os nazistas planejaram matar os judeus e simplesmente começaram, fazendo isso de forma industrial.

Não tem ângulo de comparação. O Holocausto é o selo de veneno na garrafa e tem que ser deixado lá desse jeito. Se Lula tivesse ficado no seu script criticando o governo israelense, era uma posição política como a de diversos outros países. Até mesmo os EUA estavam subindo o tom da crítica, prevendo um desastre na invasão de Rafah, a última cidade que sobrou mais ou menos inteira na Faixa de Gaza.

Não precisa ser a favor das ações de Israel para perceber que o presidente brasileiro quebrou uma regra e cruzou uma linha que estava lá por um motivo. Se deixar isso passar, qual a mensagem? Que pode tirar o selo e deixar esse povo cada vez mais polarizado achar que o nazismo nem foi esse terror todo? Foi. Foi horrível de uma forma que traumatizou uma espécie violenta como a humana. O tempo passou e muita gente já nasceu num mundo sem esse trauma, sobrou a regra sem o peso emocional que ela tinha para boa parte do mundo.

Posso até entender que você não entenda a gravidade de comparar o que acontece em Gaza com o que Hitler fez no século passado, afinal, o tempo passa. Mas não é desculpa para não se informar, ou no mínimo perceber que se colocaram o selo de veneno nessa história, que não é para abrir e tomar um gole! Até porque esse tipo de veneno ninguém toma sozinho…

Para dizer que eu sou extrema direita por defender os judeus, para dizer que está errado quem você menos gosta, ou mesmo para dizer que preferia a discussão filosófica: comente.


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