Enquanto o Brasil prestava atenção nos bolsonaristas malucos, Lula sancionou uma lei que pode fazer com que algumas piadas sejam um crime mais severo que, por exemplo, sequestro.

Não é piada, a pena por sequestro ou cárcere privado, por si só, vai de um a três anos de prisão. A pena por injúria racial subiu para de dois a cinco. E ela pode aumentar de um terço à metade se um de nossos infalíveis juízes tupiniquins interpretar que essa injúria ocorreu “em contexto ou com intuito de descontração, diversão ou recreação”.

Ah, é crime inafiançável e imprescritível! Homicídio e estupro prescrevem, injúria racial não. O motivo do endurecimento das punições e o aumento da gravidade é que pelos olhos da legislação brasileira, injúria racial se tornou a mesma coisa que racismo.

“Mas não era a mesma coisa?”

Não. Racismo, até dia 11 de janeiro de 2023, era o crime de impedir acesso de um ser humano aos seus direitos constitucionais por causa de raça. Você não pode escolher quem tem direitos humanos de acordo com a pele, não pode impedir alguém de ir e vir, de ter proteção da lei, de ter acesso aos programas públicos, etc. O que eu acredito que ninguém aqui discorde: é um crime sério com o qual não se brinca. Seres humanos não podem ser separados de seus direitos fundamentais, e nenhuma desculpa é válida, ainda mais uma superficial e estúpida como preconceito racial.

Injúria racial, por sua vez, era uma ofensa grave ao ponto de um juiz exigir punição, mas ainda era apenas uma… ofensa. Piorada pelo contexto racial, o que eu acho razoável, mas ainda era o crime de injúria. A equiparação aprovada pela lei diz que uma injúria racial é tão séria quanto qualquer outro contexto onde se define o conceito de racismo.

O que aconteceu foi que uma pessoa impedindo um negro de entrar na sua loja aberta ao público especificamente porque a pessoa é negra está equiparado a um torcedor cretino chamando um jogador negro de macaco no estádio. Em tese a legislação sobre racismo fala sobre qualquer tipo de atitude discriminatória baseada em raça, mas na prática todo mundo sabe que isso se aplica especificamente para negros. Não adianta entrar com ação contra a Magalu por causa do programa de trainees negros, por exemplo. Nem durante o governo Bolsonaro isso ia pra frente, imagine só agora…

Não estou reclamando das agruras de ser um homem branco heterossexual, concedo o ponto que na ordem de urgência dos direitos humanos, não é o meu grupo que está com pressa. Claro, vamos colocar energia na questão do preconceito contra os negros primeiro, não é o problema. Mas, é importante estabelecer que essa lei tem um público-alvo bem definido. É sobre os negros. A imagem escolhida para a divulgação da notícia no site oficial do Senado é literalmente um punho negro fechado.

Isso é para dizer que os responsáveis pelo projeto (para passar e ser aprovado pelo presidente é muito mais do que o trabalho de uma só pessoa) olharam para o Brasil e acharam que precisávamos corrigir uma injustiça: a de que uma ofensa de fundo racial contra uma pessoa negra não era tão séria quanto literalmente impedir o acesso de uma pessoa negra a um dos seus direitos básicos. Segundo eles, a injustiça está corrigida.

Segundo pessoas como eu, essa gente é maluca ou mal-intencionada. Você pode muito bem ser contra o racismo e enxergar claramente como as duas coisas não são equiparáveis! Ameaçar de morte não é matar. Sou contra ameaça e assassinato ao mesmo tempo, mas não é complicado perceber que o grau dos dois crimes é bem diferente. Falar baixaria para uma mulher que não está consentindo não é estupro. Ambos reprováveis, mas é só perguntar para qualquer mulher o que ela escolheria caso tivesse que passar por um ou por outro para descobrir como um crime tem menor potencial ofensivo que o outro.

Pelo ângulo da maluquice, eu enxergo o clima social atual de histeria como substituta de educação. Cultura de cancelamento e demonstrações superficiais de valor em rede social. Eu não duvido que muita gente que comemorou essa lei realmente não tenha mais esse filtro na cabeça: não sabem separar níveis de ofensividade, é tudo ou nada. Para essa gente que se perdeu no caminho da justiça social, eu consigo perceber a incapacidade de diferenciar pernas muito abertas no metrô de violência doméstica.

É culto, é gente com problema mental de verdade, padrão patriotas do acampamento. Mas ao contrário do que seu feed de notícias te diz, essa gente é minoria. A maioria das pessoas parece só se importar quando precisa ou quando vai levar vantagem. E aí entra o ângulo da má intenção.

Perceberam que eu ainda não entrei no mérito da piada? O texto começou falando sobre piadas terem penas maiores que sequestro, mas eu só falei sobre linhas gerais. Não quero ser acusado de não prestar atenção no quadro geral antes de dizer que tem algo de MUITO podre na definição de que quando a suposta injúria racial acontece em contexto de entretenimento, a pena aumenta.

Sally já tinha me falado sobre um conceito jurídico chamado animus jocandi, que é a percepção do Estado sobre a expressão do cidadão ter motivos humorísticos. É mais complexo do que isso, mas podemos dizer que é o governo dizendo que sabe que piadas existem. Não dá para achar que tudo o que uma pessoa fala é verdade absoluta sobre o que pensa, às vezes é apenas uma expressão artística ou algo que achou divertido dizer.

Se o juiz entende que era uma piada e que o contexto era claro sobre isso, é muito difícil que uma fala humorística seja tratada como… verdadeira. A aberração aqui é que na sanha de fazer pose e provavelmente calar vozes dissidentes, o governo brasileiro acaba de transformar piada em algo MAIS sério que dizer algo sério.

Espera, deixa eu me repetir para marcar esse ponto: a pena para quem fazer uma piada considerada racista é maior do que a pena de quem diz algo racista com toda seriedade e convicção. Pegaram o animus jocandi e inverteram o significado. O discursante da reunião da Ku Klux Klan está numa posição jurídica mais segura que um comediante de stand-up. Manda um aviso para o Léo Lins terminar os shows dele dizendo que é racista de verdade e odeia negros do fundo do coração, assim a pena dele vai ser reduzida.

E as sutilezas da lei não passaram por mim: o juiz tem que entender que por causa do contexto humorístico um racista honesto tentou disfarçar seu ódio dizendo que era piada. Em tese, a lei quer pegar quem usa a desculpa que “era humor” e abusa do tal do animus jocandi para se livrar de consequências. Na prática, só abre brechas para perseguir humoristas que usem o discurso “errado”, porque o juiz já tinha que identificar se era uma piada ou não.

Não era como o Hitler pudesse chegar na frente de um juiz brasileiro e dizer que estava só fazendo piadas sobre os judeus, com o juiz sendo obrigado a soltar ele! Os lacradores mais malucos podem até achar que essa brecha existia e que todo dia racistas escapavam rindo da lei brasileira, mas não era uma bala de prata contra punição por falas ofensivas contra negros! O juiz tinha que entender o contexto para separar piada de coisa séria.

O juiz ainda tem que fazer a mesma coisa. A diferença é que se o juiz quiser ferrar um humorista, jornalista ou influencer, ele pode fazer isso com muito mais força. O contexto de humor podia reduzir a intensidade da ofensa, agora ele aumenta. Tem gente mal-intencionada por trás disso sim. Os humoristas brasileiros que acham que humor tem limite são todos defensores do Lula, os humoristas brasileiros que não acham que o humor tem limite não vão perdoar o novo presidente.

Lula vai apanhar dos humoristas mais propensos a serem pegos na armadilha dessa lei e vai ser elogiado pelos que vivem pedindo desculpas por respirar muito forte perto dos lacradores. Muito conveniente que essa lei surja agora, não? Se os juízes brasileiros forem competentes e imparciais, não era para ter discussão além do começo do meu texto, sobre a gravidade percebida dos crimes.

Como não podemos contar com um Judiciário realmente independente, estão abertas as portas para perseguição de detratores do governo Lula. Não se esqueçam que apesar da fala simples e dos erros de português, Lula é dez vezes mais inteligente que o Bolsonaro. Ele nunca vai ser visto pedindo intervenção militar no meio de um bando de imbecis úteis, mas vai usar suas armas para consolidar poder, especialmente agora que os malucos patriotas entregaram a opinião pública de bandeja na mão dele.

Essa lei não existe para pegar um humorista específico, ela é só uma carta na manga. Coisa de quem entende o jogo muito melhor que o ex-presidente. Quando alguém começar a sair da linha, é só jogar os holofotes numa piada que envolva negros (uma parte enorme da população brasileira que é impossível de ignorar em qualquer repertório sobre o Brasil) e colocar o carimbo de racista nessa pessoa. Não de comediante que ofendeu alguém, mas um racista mesmo, equiparado a alguém que quer a morte ou separação dos negros da sociedade brasileira.

Quem vai decidir se você é uma pessoa que falou algo escroto ou se é um dos maiores párias de uma sociedade moderna é um juiz qualquer. Que pode ser pressionado de cima pra baixo, que pode acordar com dor nas costas, que pode achar que as piadas daquele comediante não têm graça e está ajudando a sociedade calando-o… a lei também tem que regular quanto poder o Estado tem sobre o cidadão. Um juiz não poderia ter esse tipo de poder, mas agora tem. Tem e ainda sob o verniz de um grande avanço social.

Ah, e embora eu esteja falando bastante sobre racismo contra negros, a lei é mais “esperta”: “o juiz deve considerar como discriminatório qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência”. Perceberam o termo “grupos minoritários”? É, deixaram bem vago, e eu tenho certeza de que foi de propósito. Se não der para pegar o dissidente por uma piada, é só procurar por outra e dizer que os ofendidos eram um grupo minoritário. Todo mundo pode ser grupo minoritário se o juiz quiser te pegar. Fácil assim. Aberto assim.

Mas quem está falando mal disso só pode ser racista, misógino, homofóbico, transfóbico… né? Pois é. Esse é o truque: se esconder atrás de algo que não pode ser criticado. O modelo Lula de controle é diferente, a gente passou muitos anos falando disso. Ele e sua turma vão usar causas sociais para colocar várias ferramentas de controle onde precisam delas. Não vão ficar usando descaradamente, pelo menos eu acho que não tem esse nível de tosquice, mas o projeto de poder parece ser o mesmo da última vez. Verniz democrático numa tremenda cara-de-pau autoritária.

Seja como for, fica o aviso: no Brasil, piada é levada a sério e coisa séria é tratada como piada, agora oficialmente sancionado pelo governo.

Para dizer que está com saudade do Bolsonaro (não tenha político de estimação), para dizer que vai virar nazista para diminuir sua pena, ou mesmo para dizer que ainda acha que estou mentindo e isso não pode ser real: somir@desfavor.com

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Comments (26)

  • Fazer o L ou fazer arminha não fazia quase nenhuma diferença

    Inclusive a lei 7716/89 poderia ser, com todas as suas reformas, ser questionada do ponto de vista constitucional por motivos irmãos dos que levaram o então presidente José Sarney a vetar o artigo 15 de tal lei, que já apresentava em seu texto original excessos já extrapolando a sua cobertura inicial, haja vista a mensagem de veto presente aqui.
    Mas com um STF que faz ativismo judicial ao arrepio da lei, arbitrariedades em favor de grupos de intere$$e com forte lobby nos bastidores da política suja estão liberadas.

  • Complicado esse tipo de coisa! Aliás, saudades da época lá dos idos de 2012, em que havia aquelas páginas de humor no Facebook como “censor3d” e “como eu me sinto quando…”. Hoje, pra qualquer coisinha já implicam, tudo é motivo de problematização, tudo é motivo pra discutir e gerar briga. O mundo acabou ficando chato desse jeito.

      • Sim, o mundo fica chato, injusto, não resolve o problema social que supostamente a lacração impõe, e assim vai, só ladeira abaixo…

    • Fazer o L ou fazer arminha não fazia quase nenhuma diferença

      Problematização gera engajamento e dá lucro. Você não entendeu? Se não entendeu, é otário.

        • Fazer o L ou fazer arminha não fazia quase nenhuma diferença

          Quem disse que o problema social em si interessa, a não ser, é claro, para promover a turminha oportunista que usa da questão para autopromoção?
          Estamos na era da militância do eu. O pessoal militante carrega nas tintas de propósito se achando muito importante com questões como racismo, machismo, capacitismo, etarismo, homofobia, transfobia, gordofobia e outras formas de discriminação, mas sempre com vistas a tirar proveito da situação em benefício próprio.
          Grandes empresas e políticos tem nisso uma grande oportunidade de fazer sinalização de virtude, sendo que conglomerados como a Disney, a Natura, o Magazine Luiza e o Bradesco são bons exemplos nisso.
          Inclusive os pregadores do neomarxismo que infestam como gremlins as redes sociais também entram na mesma onda egóica como pretensos ativistas sociais, faltando pouco a se parecerem com evangélicos neopentecostais, com a diferença que enquanto os neopentecostais culpam o diabo, os neomarxistas culpam o capitalismo por todas as mazelas possíveis e imagináveis do ponto de vista social.

    • “Hoje, pra qualquer coisinha já implicam, tudo é motivo de problematização, tudo é motivo pra discutir e gerar briga. O mundo acabou ficando chato desse jeito”. Sem dúvida, Ge. Concordo totalmente.

  • No que isso ajuda grupos minoritários?

    Negro vai continuar sendo morto em favela, gay expulso de casa pelos pais, mulher apanhando de marido, deficiente sem tratamento…

    Não sei, mas parece que lacrador ou gente de baixa autoestima vai usar essa lei anti-piada para que se ofendam com qualquer coisa, assim como religiosos usam a “liberdade de crença” e “escarnecer minha fé é crime” quando confrontados dos seus fundamentalismos.

  • Eu não estou nem aí, o povo brasileiro trocou pátria e família por picanha, que aguente as consequências.

    Que o severino médio pague impostos altos pra financiar a Venezuela, passe fome, beba água suja e veja sua filha sendo abusada por travecos no banheiro público, e que depois seja preso por fascismo se denunciar. Esse povo não merece nada além de sofrimento e humilhação.

    • Essa lei foi criada no Governo Bolsonaro, tá? Não tem santo, nenhum lado quer liberdade de expressão.

      O Governo da vez vai escolher se usa isso contra o direitisticamente correto (Porta dos Fundos fazendo piada com religião) ou contra o esquerdisticamente correto (Leo Lins fazendo piada com gorda). Mas o embrião sempre foi silenciar quem não reza pela sua cartilha, seja ela qual for.

    • Preocupante esse pensamento. Então violência e abuso podem rolar soltos se seu político de estimação não venceu?

      Então não é mesmo por “valores morais”, Deus ou odiar o que é mal. E claro, como se um político fosse capaz de ser a personificação desses atributos.

      • Parem de pagar de santinhas, vocês e outros vira-latas aqui já escreveram coisas piores sobre o Brasil e o tal brasileiro médio.

          • Até aqui no Desfavor tem lambe botas do Bolsonaro. Só faltou falar da mamadeira de piroca pro combo de asneiras ficar completa…

            • Vocês precisam chegar a um acordo: somos petistas ou bolsonaristas?

              Já que gente limitada só consegue conceber outro ser humano encaixado em uma das duas polaridades, ao menos cheguem a um acordo, pois é no mínimo engraçado que, em uma mesma semana, recebamos comentários dizendo que lambemos o saco do Lula e as botas do Bolsonaro.

            • Absolutamente ninguém acreditou nessa coisa de mamadeira de piroca, isso é lenda urbana da esquerda pra desviar das críticas a coisas reais ditas e feitas pela esquerda.

  • Agora se você não for aquele tipo patético de humorista “zorra-total-disculpa-por-ser-ômi” pode pegar cadeia.

    Praticamente qualquer tipo de piada vai acabar enquadrando algum “grupo minoritário” e caindo no raio de ação da lei.

    Considerando que calha da maioria desses humoristas nível Leo Lins e Danilo Gentilli serem claramente anti-PT, é uma lei que vai ser bem útil pra segurar opiniões que vão de encontro aos interesses do partido. Criminalizaram dissidência sem dizer com todas as letras “dissidência é crime”.

  • “Seja como for, fica o aviso: no Brasil, piada é levada a sério e coisa séria é tratada como piada, agora oficialmente sancionado pelo governo”.

    Só essa última frase e os três primeiros parágrafos já são para afzer a gente desanimar. E, retomando um velho costume meu aqui no Desfavor, ja repassei o link desta postagem para todo mundo que eu conheço. Só espero não atrair para cá um monte de maluco para despejar chorume em comentários que, obviamente, não serão aprovados.

    • Fazer o L ou fazer arminha não fazia quase nenhuma diferença

      Se essa lei foi concebida foi considerando que no caso das pessoas que utilizavam do “politicamente incorreto” para autopromoção, se utilizava constantemente do animus jocandi para se evadir de responsabilidades do ponto de vista legal.
      É mais ou menos na mesma linha moralista da medida que fez com que o CONAR banisse nos comerciais de cerveja animações na linha da tartaruga e do siri com o nananana extrapolando que tais animações poderiam influenciar as crianças (que não são o público-alvo principal dos comerciais de bebidas alcóolicas) no sentido das mesmas consumirem o produto.
      Claro, quem se antecipou nadou de braçada, mas quem ficou na rabeira ficou alijado da possibilidade de usar isso pra tirar vantagem da situação.
      E um ponto importante: Ainda que as peças publicitárias convencionais de 30 segundos possam ter um potencial de influenciar nas decisões de compras dirigidas pelo público infantil ou infanto-juvenil, influencers na linha de Luccas Neto ou mesmo a utilização da imagem de personagens de programas infantis e infanto-juvenis (ou algo que se assimile a eles) nas embalagens de produtos são mais relevantes no sentido de direcionar a decisão de consumo em favor de um produto em específico.
      Um conselho para os pais: Se não querem ter problemas com gastos desnecessários, o recomendável é NÃO LEVAR CRIANÇAS PARA O SUPERMERCADO. Era uma regra na época de pandemia de COVID (que no Brasil quase ninguém respeitava), mas é algo que deveria ser levado a sério na situação atual também.

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