Desinformação de guerra.

Ontem uma explosão matou muita gente num hospital dentro da Faixa de Gaza. Não há certeza sobre o número de vítimas. Não há certeza sobre o tamanho do estrago. Não há certeza sobre quem fez o ataque. Não há certeza nem se foi um ataque. A guerra moderna é travada em vários campos, e um deles é a informação.

Claro, desde que o ser humano é ser humano, informações são manipuladas por diversos interesses, especialmente numa situação de guerra. Milhares de anos atrás já mentiam descaradamente sobre quem venceu uma batalha, sobre as atitudes do inimigo, sobre suas motivações, etc. Não é a mentira que é novidade nesses últimos anos, é a velocidade com a qual ela se espalha para confundir todo mundo ao redor da guerra.

Guerras são decididas por um grupo limitado de pessoas, e o povo ao redor delas acaba cooptado a participar. Eu tenho dificuldades de pensar num caso em que a maioria decidiu entrar em guerra e seus líderes só obedeceram a vontade popular. Ela sempre surge de cima para baixo, e por isso, por mais poder que líderes tenham numa sociedade, alguma forma de apoio é essencial para desenvolver o conflito armado.

Novamente, propaganda para convencer o povão a apoiar uma guerra não é novidade, e até mesmo os argumentos são pra lá de reciclados: é importante desumanizar o outro lado, pintá-lo como um bando de bárbaros que querem matar ou oprimir você e as pessoas que te importam. Complicado convencer alguém a ir arriscar a vida numa batalha se ela não tiver nada em jogo na disputa. E é claro, a guerra precisa de muito investimento de tempo e recursos da sociedade, algo que não vem sem um bom incentivo.

Então, desde sempre foi importante criar alguma narrativa para justificar a guerra. E essa narrativa sempre passa por tentar valorizar a sua causa e transformar a causa adversária em algo indefensável. Tudo muito óbvio, certo? Porém, tem algo no meio dessa obviedade que muita gente não vê: narrativas existem para te arrastar para dentro da guerra. A pior coisa que pode acontecer para um desses líderes empurrando o embate violento entre dois povos é neutralidade. Seja interna ou externa.

A guerra precisa de gente que acredita na guerra. Porque o ser humano ensina para suas crianças, desde muito cedo, que não é uma boa ideia resolver as coisas na base da violência. Pelo menos os seres humanos que não foram totalmente brutalizados. Por mais que reclamemos do péssimo comportamento do ser humano, de alguns séculos para cá a ideia de que o mundo fica melhor sem gente se matando por qualquer motivo realmente se difundiu. Ficamos menos brutalizados.

E ainda mais depois do banho de sangue das duas guerras mundiais do século passado, começamos a ver a possibilidade cada vez mais real de qualquer conflito escalar até chegar em nós. Quando mais globalizados ficamos, mais caras ficam as guerras. Caras em recursos humanos, inclusive. Exércitos de milhões, com milhões de mortes.

A indústria da guerra precisa apelar cada vez mais para manter suporte. E é aí que radicais vão ganhando plataforma para infectar o povão. Sem essa noção constante de perigo vindo “de fora”, fica muito mais difícil justificar os riscos e os custos da guerra. É aí que faz muito sentido misturar jornalismo com propaganda, e de preferência num ritmo tão alucinante que torne difícil que alguém consiga parar para pensar no tema.

Ontem a coisa passou de um ataque deliberado dos israelenses para matar 500 civis num hospital para um foguete vindo de Gaza que explodiu no estacionamento e provavelmente não matou nem uma fração disso. E em cada passo da verificação do acontecido, o mundo reagiu de forma intensa, com todo tipo de radical explodindo em fúria com a certeza de ter a versão definitiva do acontecimento.

Isso é mais que desinformação, isso é conscrição: cada pessoa que dá sua versão e reação emocional sobre o que ambos os lados da guerra informam está entrando num dos exércitos. E eu nem estou falando isso de forma conspiratória, muito embora sangue e fúria geram mais cliques e visualizações, estamos vendo muito da mídia formal e informal cobrindo a guerra realmente acreditando numa das causas.

Essa velocidade de informação, com dez versões e provas contundentes pipocando na rede social por minuto, faz com que muita gente perca completamente o filtro da realidade, mais interessadas em ter uma opinião do que ter uma informação confiável. A guerra moderna te soterra em versões e opiniões antes de você ter qualquer chance de verificar informações. É assim que você entra para um dos exércitos, provavelmente sem perceber.

A partir do que eu já tenho de informação, tem muito o que criticar em Israel e Hamas, mas eu tento manter clara na minha mente a ideia de que o pior de tudo é a guerra. São as pessoas que são pegas no meio dessa confusão histórica de ódio e vingança por coisas que nada tem a ver com suas vidas cotidianas. Não quero entrar num dos exércitos, porque acima de tudo eu sou contrário à guerra. Guerra é sempre uma escolha trágica, um fracasso da humanidade diante das dificuldades de viver em sociedade.

E se eu puder te sugerir algo, que seja não aceitar o chamado para fazer parte de um ou de outro exército. Esse chamado não é mais algo direto como um pôster do Tio Sam dizendo que o país precisa de você, as coisas ficam mais sutis na era da internet. Avalanche de informação não comprovada acaba te arrastando para dentro da guerra, porque você fica com necessidade (ilusória) de ter uma opinião forte sobre cada um dos atos dela.

Mesmo que sejam… mentira. E aí começa uma parte ainda mais insana da história: depois que você cai no golpe da conscrição como agente de propaganda de um dos lados, a tendência é que o próprio conceito de verdade vá ficando mais e mais negociável. O que é uma mentirinha para defender o lado certo, não? E como você sabe que muita gente mente nesses casos, dá para justificar fácil a desconfiança de uma informação que não colabora com a sua “causa”.

A parcialidade pode ser uma escolha consciente, mas atenção, não é o único jeito de ser cooptado para a guerra de informação. Se você entrar no ciclo de histeria com as notícias pipocando sobre uma guerra, especialmente se você tem acesso aos dois lados, é muito provável que escolha um lado para chamar de verdadeiro e um para chamar de falso. Deve ser fisiológico: o cérebro não sabe o que fazer com tanta informação e define um padrão de quem está certo e quem está errado para economizar energia.

Eu senti isso ontem, e estava conversando com a Sally sobre a questão: é cansativo tentar saber quem está falando a verdade, se é que alguém está. Em questão de minutos, a internet estava cheia de provas que foi um crime de guerra israelense, que foi um erro dos palestinos, e até mesmo que foi tudo armado por eles para jogar a culpa em Israel. Não eram pessoas colocando dúvidas no ar, era um monte de gente afirmando com fotos e vídeos. Até mesmo a imprensa tradicional, com gente que vive de confirmar informações, ficou perdida.

Às vezes o mais simples é entrar para um dos exércitos, porque isso dá alguma paz para a mente. Se você pode confiar sempre num dos lados e ter certeza da mentira sempre no outro, você não precisa de tanta energia mental para acompanhar a situação. Israel, Hamas e todos os outros participantes dessa guerra de versões querem te alistar, porque nada melhor do que apoio numa ação tão custosa e impopular como uma guerra. Ainda mais se for de graça, porque quase nada vem de graça nesses casos.

Mas eles não tem superpoderes de controle mental: as pessoas começam a repetir propaganda por conta própria, seja por necessidade de se valorizar como defensores do “lado justo”, seja por pura estafa mental de tentar fazer senso de duas máquinas de propaganda te atingindo ao mesmo tempo. Israel pode até ter mais recursos para isso, mas o Hamas e seus apoiadores regionais não são criadores de camelo ignorantes. O mundo moderno chegou lá, mesmo que não da forma ideal.

É todo mundo muito capaz de montar narrativas, e como as pessoas consomem narrativas sem parar, o banquete está servido. Se você não se esforçar para buscar fontes confiáveis ou mesmo para pesquisar de verdade a veracidade do que a propaganda de guerra te diz, é muito provável que você aceite esse chamado de alistamento militar para um dos lados e comece a contribuir para o esforço. Muita gente que provavelmente não defenderia uma guerra com tanta gente se matando acaba entrando no clima bélico sem ter nenhuma barreira de pensamento crítico na frente.

Pudera: é uma tática militar antiga cansar o adversário até ele fazer uma escolha ruim. Nem todo bombardeio é para destruir um alvo específico, às vezes é só para desmoralizar e cansar o inimigo. Os aviões permitiram essa tática com bombas, a internet permite essa tática com propaganda. E como não existe bunker contra essa artilharia, nos resta lidar com os impactos.

Existem versões mais lógicas sobre o que aconteceu no hospital em Gaza, mas não existe perícia profissional autônoma para comprovar qualquer versão. Raramente isso acontece numa guerra. Você vai ler, ouvir e ver versões e mais versões. Guerra de informação cujo objetivo é te colocar num dos exércitos, consciente ou inconscientemente.

De uma certa forma, toda guerra é mundial agora. Vai ficar cada vez mais difícil não se alistar, mas se você prestar atenção e mantiver uma linha guia de rejeição à violência, provavelmente consegue escapar da manipulação. Eles dependem disso para continuar mandando pobres coitados para a morte em nome de interesses pessoais, enfeitados ou não de fé.

O melhor resultado possível de uma guerra é não ter guerra. E para não ter guerra, nada melhor do que não ficar aumentando o tamanho da tropa dos dois lados.

Para me chamar de isentão (sou contra matarem inocentes, isentíssimo), para dizer que torce pela briga, ou mesmo para dizer que tem certeza sobre o que aconteceu (claro que tem, você está na internet): somir@desfavor.com

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Comments (10)

  • Eu tenho dificuldades de pensar num caso em que a maioria decidiu entrar em guerra e seus líderes só obedeceram a vontade popular.

    Acho que o mais próximo disso foi a Alemanha nas vésperas da Primeira Guerra Mundial. Pelo menos é o que diz o livro “A Sagração da Primavera”, de Modris Eksteins.

  • Badalhocas Perdidas

    A primeira vítima de qualquer guerra é sempre a verdade. Só que, agora isso ficou muito pior, com a internet dando voz a qualquer um, com teorias conspiratórias e achismos sendo tomados como fatos e com bombardeio incessante e inescapável de informação enchendo a cabeça de todo mundo.

    • É que não foi “qualquer um”.
      Foi O Globo, a Folha de São Paulo, IG, Terra, Estadão, UOL e muitos outros afirmando “Israel bombardeia hospital e mata mais de 500 pessoas”.

      • Sim, Sally. Mas eu acho que o Badalhocas aí em cima falou em “internet dando voz a qualquer um” como uma constatação e não como referência direta a este caso específico do ataque ao hospital. Concordo com você que diversos órgãos da chamada “grande imprensa” foram, no mínimo, muito irresponsáveis ao noticiar o ocorrido de forma enviesada, apressada e sem verificação; mas ele também está certo em dizer que, desde que o grosso da comunicação humana passou a ser feito online, ficou fácil para qualquer paspalho espalhar e/ou acreditar em fake news. E o que não falta neste mundo, infelizmente, é gente fazendo péssimo uso da internet. De um lado, há os palermas cândidos replicando as maiores abobrinhas sem pensar meia vez e, de outro, existem os mal-intencionados inventando as mais grotescas lorotas movidos por interesses escusos.

  • Ironicamente, tinha um hospital quanto ao qual tinha aviso para ser evacuado o quanto antes. Se for esse, por mais covarde que tenha sido o ataque, não foi sem aviso.
    E qualquer semelhança com a polarização forçada por aqui entre lulismo e bolsonarismo NÃO é mera coincidência.

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