Introdução – Guerra branca.

A semana temática segue em frente comemorando o Dia da Exclusão Social aqui no Desfavor. E como a Sally já explicou, dessa vez estamos trazendo a discussão que tivemos internamente para vocês. Teoricamente eu nem precisaria de uma introdução para o meu, mas é uma boa oportunidade de “renovar os votos” da nossa relação com temas polêmicos.

No clima social de hoje, o tema que vou abordar amanhã pode ser considerado de mau gosto ou até mesmo preconceituoso, mas a minha preocupação é sempre com a Sally: além dela ter o superpoder de sempre ir na ferida, todo mundo parece mais macho quando está reclamando do texto de uma mulher. Eu normalmente escapo ileso e nem acho que precise preparar ninguém para ler o que vou escrever, mas…

Tem uma expressão recente muito popular: “furar a bolha”. Significa ir além do público que já está acostumado com você e tentar dialogar com pessoas que normalmente não te dariam atenção ou mesmo uma chance de ouvir seus argumentos. O Desfavor se tornou uma bolha nesses quase 15 anos de vida, bolha de gente que nem sempre concorda com a gente, mas que tem o tipo de foco de atenção e interesses compatíveis com os nossos. Não escrevemos tanto assim por postagem, mas é bem mais do que a maioria das pessoas consome no dia a dia.

Dentro dessa bolha, existem membros de diversas outras bolhas. Quando estamos batendo na direita conservadora, algumas pessoas se sentem representadas. Quando estamos batendo na esquerda lacradora, outros gostam do que temos a dizer. A nossa proposta, por mais que Sally e eu tenhamos mudado como seres humanos nesse meio tempo, ainda é a de falar o que não pega bem falar com as amarras da sociedade atual. E como nós dois temos um senso de humor bem peculiar, normalmente de forma debochada.

Essa semana temática nasceu do ambiente que vivemos em 2023: o Brasil diante de uma “guerra ideológica” das mais superficiais, e um governo que deixa passar leis como aquela nojenta “antipiada”, que transforma humor em agravante para definir punições… na lei e na decisão bizarra daquela juíza que fez censura prévia contra o Léo Lins, estava definido por tabela o único público que poderia ser criticado no Brasil: homens brancos heterossexuais (e provavelmente só do Sudeste e do Sul).

Então, estava pronto o combo: vamos fazer piada sobre o fato de ter só um público passível de críticas no país. Falar de tudo de um jeito leve e debochado, nossa linha editorial do jeito que sempre imaginamos. No fundo, é bem simples. Mas na prática, quando eu li aquele texto da Sally, eu desconfiei que gente menos articulada ou mal-intencionada poderia colocar ele dentro da “sua bolha”.

O que aconteceu? O texto introdutório deu muito mais confusão que o texto “perigoso” em si. Quer dizer que nos preocupamos à toa? Eu acho que não. Porque ele só provou a nossa hipótese: as pessoas se preocupam mais com o que acham que vão sentir ao lidar com opiniões diferentes do que realmente se preocupam na hora do vamos ver. A introdução serviu para demonstrar esse efeito psicológico tão comum, mas tão danoso para a nossa convivência com o diferente. Tocar o terror em alguém que algo muito assustador está chegando gera muito mais medo do que lidar com o problema. A antecipação do medo é um dos males do milênio, tenha em vista quanto Rivotril se vende por aí.

A gente pode e deve lidar com temas considerados “tabus”, porque ficar imaginando o problema na sua cabeça é receita de sofrimento. E essa cultura de bolhas de reafirmação de ideias prévias alimenta isso. Como a pessoa passa o dia comparando reações de gente exagerada, se acostuma com a ideia de exagero. Está dizendo que a cultura de um ou mais povos é só mais uma das inúmeras coisas ridículas que a humanidade sobrevaloriza? Então só pode querer dizer que ODEIA tudo daquele povo.

Se tem uma coisa que fazemos com muita consistência aqui é rir de quem se acha muito importante. Nós dois somos anônimos porque achamos ridículo cultos de personalidade e toda essa palhaçada de influencer, somos opiniões no vácuo, ideias que vocês podem pegar ou não. A própria ideia de fazer textos introdutórios é mais uma dessas brincadeiras com o conceito de dissociar ideia de pessoa. Cada um aqui pode imaginar o que de pior tinha na cabeça e depois comparar com o que estava escrito de verdade. Será que você foi pior que o texto dentro da sua cabeça?

E se foi, de onde veio isso? A nossa teoria é que as bolhas de pensamento radical que se formaram na nossa cultura modificam tudo o que tocam: se algo que você escreve ou diz parece estar dentro da bolha que você defende, é automaticamente do bem. Se parece estar dentro da bolha do seu adversário, é praticamente o Hitler dizendo. E isso é um problema sério, porque vai deixando as pessoas com medo de abordar certos temas, senão vão ser julgadas da mesma forma que os extremistas de um lado odeiam os extremistas do outro.

É por isso que os bolsonaristas não ligam para a corrupção de quem está na bolha deles e é por isso que os lulistas não ligam para a corrupção de quem está na bolha deles. É tudo perdoado por compartilhar da bolha, e qualquer pensamento “centralizador” vira pecado mortal. Se você fala de direitos humanos, é comunista. Se você fala de vitimismo de minorias, é fascista.

Sim, já falamos desses temas mil vezes, mas agora queremos usar o exemplo dos dois textos anteriores para exemplificar como isso acaba reduzindo a discussão sobre temas importantes e alienando quem fica com dúvidas sobre o melhor caminho a seguir: não pode pensar, tem que seguir uma cartilha OU outra. E nisso, o pior: a presunção da intenção do outro. Não só a pessoa fica furiosa por falarem algo levemente diferente do que ela resolveu acreditar, como também parte da certeza de que só pensam diferente porque querem destruir o mundo.

Eu não amo nem odeio homens, mulheres, brancos, negros, heteros ou gays, porque são só humanos, humanos que variam muito em suas vidas, intenções e ações. É gente que faz coisas nobres e coisas horríveis, às vezes até na sequência uma da outra. Estamos escrevendo esses textos para renovar o acordo que temos com vocês: nós gostamos de escrever sobre temas impopulares e rir do excesso de importância que o ser humano se dá. Não somos imunes ao preconceito e especialmente ao erro, mas não estamos na sua bolha. Não gostamos da sua bolha e nem das regras de conduta que ela exige.

Se acharmos que estamos entrando numa bolha, vamos sair espetando para todos os lados, porque o próprio Desfavor não vai ter mais graça se a gente se sentir preso a um tipo de discurso ou outro. Como a sociedade está mudando e o aceitável está mudando junto, de tempos em tempos precisamos dar gritos de independência. Vamos falar de tudo o que der na telha, e se você quiser presumir nossa intenção, saiba que é problema seu e só seu.

Quer apontar uma falha de pensamento ou uma informação errada na qual nos baseamos? Manda ver. Somos vozes anônimas mesmo. Quer inventar da sua cabeça qual a nossa intenção e o que pensamos de verdade por trás dos nossos textos? Volta para sua bolha, porque você não vai ser feliz aqui. Não estamos do lado do seu político de estimação, não estamos seguindo o dogma da vez, não estamos aqui para te fazer se sentir certo sobre sua visão de mundo.

Primeiro porque fazer isso é muito chato, segundo porque nos reservamos ao direito de cutucar qualquer tema incômodo e até mesmo mudar de ideia no meio do caminho quando quisermos. Se fosse pelo ego, estaríamos tentando ser gurus e provavelmente com algum sucesso. Nós resolvemos nos apresentar como ideias, e como vemos um mundo cada vez mais alérgico à troca de ideias, está na hora de reforçar essa filosofia.

Quando alguém vier nos encher a paciência presumindo nossas intenções muito além do que escrevemos de verdade aqui, vamos apontar para essa semana temática como resposta. Este é o acordo de intenção do Desfavor para 2023: foda-se a sua bolha. E se mudarmos de ideia com o passar dos anos, voltamos para explicar a nova lógica.

Somos suficientemente articulados para explicar o que estamos pensando em cada momento, abrimos mão de gente tentando explicar pra gente qual a nossa intenção com cada texto.

Até amanhã!

Para dizer que eu não gero polêmica por ser chato, para dizer que lê mentes e discorda, ou mesmo para dizer que poderíamos ter usado esses textos para tirar sarro de mais gente: somir@desfavor.com

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Comments (4)

  • Somir, um dos grandes problemas nesse negócio das bolhas de extremistas que apontam dedos acusadores para os inimigos é que seus membros não entendem direito a informação que recebem e só repetem as frases-feitas e os dogmas das suas respectivas cartilhas. Esses radicais – muitos dos quais são daquele tipo que a Sally já chamou daqui de “Pessoas Quer Dizer” – acham sempre que é o “outro lado” que “tem que estudar pra parar de falar merda” e dependem que alguém (políticos de estimação, gurus, pastores, etc.) “interprete” a realidade para elas. Com os cérebros embotados por causa de tanta doutrinação das suas bolhas, tais pessoas não leem textos por inteiro, conseguindo apenas “pescar” aqui e ali meia-dúzia de palavras-chave, cujos significados são nebulosos e variam de acordo com que a visão torta de mundo que lhes é impingida.

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