A tragédia no Rio Grande do Sul gerou uma outra enchente de desinformação. Muita bobagem, e ainda pior, muita gritaria politizada para controlar a opinião pública. E parece que funcionou…


Desfavor da Semana.

SALLY

Na última década vimos o cenário político polarizado girando em torno de notícias falsas, as “Fake News”. Um lado falava que o outro distribuía mamadeira de piroca nas escolas, ou outro dizia que a facada era falsa pois não tinha saído sangue da ferida.

A sociedade evoluiu, ainda que a pequenos passos, e surgiram mecanismos, ainda que rudimentares, para lidar com esse problema.

Agências de checagem, mídia combativa e filhos ensinando seus pais e avós que tudo que aparece online deve ser presumido como falso. Bem ou mal as pessoas estão cientes da existência de Fake News agora. Não que estejam imunes a ela, mas já tem a consciência do mecanismo.

Como eu disse, as pessoas não estão completamente imunes a notícias falsas, mas já tem a informação sobre como pesquisar no Google para saber se isso é verdadeiro ou não.

Pesquisam quando aparece algo que vai de acordo com seu viés de confirmação? Nem a pau, engolem na hora e replicam até para o Papa. Mas… quando é algo a favor do seu inimigo, aí sim as pessoas estão começando a pesquisar, movidas pelo ódio, para desmenti-lo, para fazê-lo passar vergonha, para desmascará-lo.

Então, espalhar notícia falsa não é mais tão fácil como era uma década atrás. Na minha humilde opinião, isso gerou uma necessidade de sofisticar a ferramenta e acredito que está em teste uma versão beta que, se colar, vai ficar no lugar da boa e velha fake news: a Bait News.

Bait que dizer isca. Bait News é uma notícia ou premissa verdadeira usada como uma isca para vender uma mentira.

Explico melhor: antes se questionava a veracidade do fato, agora os fatos parecem ser cada vez mais incontroversos (ambos os lados concordam com sua veracidade). Agora o que passou a ser distorcido é a interpretação do fato.

Um exemplo: os inquéritos para apurar “ameaça à democracia” e até “fake news” dos quais falamos no sábado passado. Ninguém contesta que os influenciadores de fato falaram aquilo, está nas redes sociais para quem quiser ver. O que se faz é pegar uma fala como “os blindados do exército viraram submarinos debaixo d’água” ou “o estado foi moroso e incompetente” e atribuir a essa fala uma ameaça à democracia ou a condição de fake news, pelo seu conteúdo.

Quando se diz que alguém falou ou não alguma coisa, quando se debate sobre se alguma coisa aconteceu ou não, qualquer um pode pesquisar e reunir provas para saber se é verdade. Mas, quando se pega uma fala notoriamente verdadeira e dela se depreende algo (como por exemplo, um ataque à democracia), aí fica muito mais difícil questionar, pois se entra no campo da cognição, do subjetivo, do abstrato.

Além do fato da cognição não ser o forte do brasileiro médio, é preciso levar em conta que o sentido de uma fala tem o valor que a sociedade atribuí a ela. Muitas coisas que podiam ser ditas sem problema na década de 80 hoje são repudiadas, pois a sociedade construiu uma aura ofensiva sobre aquilo.

Então, quem vai dizer se algo é ameaça ou não, se é ataque ou não, se é mentira ou não, é a sociedade. Se for uma sociedade majoritariamente de esquerda, vai conseguir emplacar que falar que blindado virou submarino é crime e merece ser investigado em inquérito. Quando a maioria determina que algo é socialmente nocivo o bastante para virar crime, ela impõe isso à minoria.

No momento, está sendo imposto no grito. Quem não concorda que certas falas são notícia falsa contra o governo ou ameaça à democracia está sendo silenciado no grito, na ameaça, na coação: fascista, bolsonarista, racista, machista, etc. Se a coisa evoluir, o silenciamento virá pela mão da lei mesmo.

E não vejo a menor condição do brasileiro médio discutir, refutar ou argumentar sobre o significado de algo. As pesquisas da coluna “Ei, Você” deixam bem claro que compreensão de texto e raciocínio não são seus pontos fortes.

Então, temos como mecanismo silenciador de críticos uma premissa verdadeira, usada como isca para empurrar uma conclusão tosca, truncada, distorcida para atender aos interesses de um grupo (não se engane, tanto esquerda como direita vão fazer uso).

Esse mecanismo será bem difícil de detectar por algum tempo, pois as pessoas estão adestradas a procurar pela veracidade da fala ou da informação e, se ela de fato for verdadeira, se presume que a fala é legítima.

Um exemplo para fins didáticos: se eu te digo que cães latem e gatos miam por estarem tentando cantar, com o mindset atual, a pessoa vai lá verificar se um cão realmente late e se um gato realmente mia. Ao comprovar essa premissa, automaticamente presumirá que o resto é verdade. E não é. Não há qualquer indício que leve a crer que animais, apesar de latirem ou miarem, estão tentando cantar. Mentiras permeadas por verdades, um clássico, com uma nova roupagem.

Isso, meus queridos, tende a se transformar em um inferno, pois implica ter que argumentar com pessoas muito mal-intencionadas e/ou com o brasileiro médio. Ambos os casos serão estressantes e improdutivos.

Nós estamos torcendo muito para que as Bait News não colem, não emplaquem, não sejam úteis para os fins de propaganda política. Mas, ao que tudo indica, a moda vai pegar.

E se pegar, esquece. Não existe forma de desatolar o país dessa lama. Já é difícil sair da areia movediça normalmente, imagina ter que sair dela quando se é tetraplégico! O grau de cognição, coerência e lógica do brasileiro médio indica que o atoleiro será permanente.

Por isso, deixamos dois conselhos para vocês: 1) Além de verificar a veracidade, coloquem o foco também na interpretação do que está sendo dito e 2) saia do Brasil, isso vai virar um caos ainda mais revoltante e tumultuado.

Caminhamos para um período turbulento, no qual a lógica, a coerência e a argumentação serão muito avacalhadas, diante de uma plateia que, majoritariamente não tem qualquer condições de detectar isso ou impedi-lo.

Os poucos que perceberem gritarão desesperados tentando avisar aos demais e serão ignorados ou até esculhambados. As cabeças pensantes acabarão caladas, seja por coração, seja por desânimo.

Boa sorte aí para vocês.

Para dizer que se der um microfone para o Somir ele vira rei do Brasil para dizer que o brasileiro vai perder mais direitos individuais do que mulher no Afeganistão ou ainda para dizer que o horror venceu: comente.

SOMIR

É importante partir do princípio que o cidadão médio não quer mentir e não quer ser uma pessoa ruim. Isso não quer dizer que a pessoa vai fazer coisas que consideramos positivas, é claro. Como sempre dizemos aqui, mesmo gente com boas intenções faz coisas horríveis.

Em tempos de polarização e politização de basicamente tudo, ainda vale a pena pensar nessa base: eu acredito de verdade que a maioria das pessoas acha que está contribuindo para um futuro melhor ao participarem do circo que é a discussão política moderna.

A confiança inabalável que está ajudando começa a criar uma sensação de que não tem problema “quebrar uns ovos para fazer a omelete”. A pessoa desliga a sua preocupação com veracidade dos fatos se a ideia por trás do que diz parece colaborar com sua posição política.

Não tem problema se é por um bom motivo. No final das contas, a pessoa ainda acha que está fazendo o bem. E isso costuma ser o suficiente para ela repetir o comportamento quantas vezes forem necessárias. A pessoa que acredita estar fazendo uma coisa boa pode ser mais perigosa do que aquela que sabe que está fazendo algo errado.

Com a popularização do termo e do significado das Fake News, o mecanismo precisou ser atualizado. Como pega mal ser descoberto numa mentira descarada, ou pelo menos dá munição para o adversário, chegamos na era da Bait News, como a Sally bem explicou.

Iscas para politizar algum fato. E a partir do momento que você para de discutir o que está acontecendo para discutir quais as intenções e implicações do fato, o grau de subjetividade torna tudo mais complicado de lidar. Até as agências checadoras de fatos podem ser derrubadas se o cerne da questão não é mais uma escolha binária entre verdade e mentira.

E aí juntam-se os dois fatores: as pessoas continuam acreditando que vale tudo nessa luta pelo futuro da sociedade, e ao ficarem discutindo versões ao invés de fatos, não é mais possível chegar numa conclusão. O exército de influencers do governo atual conseguiu empurrar a discussão para uma conversa sobre democracia e necessidade de controle das redes.

O exército de influencers da direita, confuso por falta de liderança e verbas públicas, não conseguiu trazer a conversa de volta para as falhas do governo federal, e ainda sofreu com o monte de malucos atribuindo à fúria divina as desgraças do estado. Muita gente acredita, mas é péssimo para angariar simpatia estar junto com quem culpa a vítima e trata uma desgraça dessas como punição divina.

E o Rio Grande do Sul continuava debaixo d’água. Os fatos ficaram mais ou menos estáveis, mas as versões começaram a divergir para tirar a discussão sobre quais foram os erros do Estado (em todas as esferas) e tentar aprender alguma coisa com os vários erros cometidos antes, durante e que com certeza serão cometidos depois do pior passar.

As Bait News funcionaram. Não acho que tenha criado novos lulistas ou bolsonaristas, mas funcionaram no sentido de criar caos informativo suficiente para a maioria das pessoas cansarem de lidar com o tema. Se com as Fake News tem um momento de resolução ao descobrir se era verdade ou mentira após pesquisar, com as Bait News não tem conclusão. As versões continuam sendo diferentes e a pessoa se sente pressionada a tomar um lado.

E como sempre dizemos aqui, é mentira que você tem que escolher um lado. É totalmente possível que nenhum dos lados tenha coisas boas para você, e vendo como a esquerda quer mais “controle da liberdade de expressão” e como a direita nem disfarça que quer ditadura militar, ambos os lados me incomodam com o ranço do autoritarismo.

Só que a coisa vai mais longe: você pode não escolher um lado não com pensamento sobre as consequências da política desses lados, mas por puro cansaço dessa briga toda. É aí que os radicais costumam conseguir o que querem do povão. O cidadão médio brasileiro parece ter cansado da história do Rio Grande do Sul como análise da nossa política. Está tudo muito complicado de lidar nesse nível de discussão.

Fake News te levam a acreditar no que não existe, Bait News te fazem ficar cansado de lidar com a realidade. A primeira tem solução simples, a segunda não. Eu entendo quem está de saco cheio e até tolera censura para parar com essa bagunça de opiniões misturadas com informações, mas não existe neutralidade em quem tem o poder de censurar. Nunca vai ter.

O caminho mais simples é calar os dissidentes e continuar com a crença que está fazendo o bem, mesmo que com algumas atitudes questionáveis no caminho. Pode ser que estejamos ver nascendo um clamor popular pela censura e pelo autoritarismo, não porque temos medo de ser vítimas de mentiras, mas porque não aguentamos mais ter que decidir toda hora entre narrativas e versões.

Existia uma certa paz de espírito em acreditar no que estava no jornal e no que diziam os governantes. O ser humano quer estar do lado certo e acreditar que é uma boa pessoa, e quanto mais difícil ficar decidir o que isso significa, mais as pessoas vão ficar vulneráveis a quem prometa recuperar essa paz de espírito. O que talvez não seja mais possível com a tecnologia que temos, mas nunca duvide do bem que faz acreditar que está do lado certo.

Bait News escapam de checagem de fatos e vão direto para a parte mais incômoda da nossa relação com a realidade: tomar decisões sobre esses fatos e formar uma visão de mundo coerente. É um jeito de deixar as pessoas cansadas e vulneráveis.

Dessa vez parece ter funcionado. Vitória pelo cansaço e a versão que os governos fizeram o que podiam fazer está mais ou menos estabelecida, misturando as ações espetaculares dos voluntários com a morosa e confusa resposta do poder público. E a conversa sobre a prevenção que deveria ter acontecido? Notícia da semana passada…

Para dizer que vai adotar Bait News, para dizer que cansou faz tempo, ou mesmo para dizer que não é possível que a maioria das pessoas tenha boas intenções (essa é a terrível realização que vem com a experiência de vida): comente.

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Comments (8)

  • Essas regiões de enchente se tornarão inabitaveis, certo? Porque a água não baixa e mesmo se baixar, na próxima chuvarada acontecerá tudo de novo. As pessoas deveriam procurar outro lugar, morar perto de rio com o planeta em estado terminal é tragédia anunciada.

    • Eh muita água, eh água pra chamar de “um dilúvio passou por aqui”, mas pera, sempre choveu, pouco ou muito, sempre choveu, em todo lugar chove.
      Teria sido mesmo só “água de chuva”?
      Uma chuva brutal de repente: zupppp, alaga tudo e não dá tempo de pessoas sairem de suas casas.
      Vi um vídeo do início da chuva, não creio ser fake, nao estava chovendo, tinha sol, de depende a dona começa a empurrar um tico de água da frente de uma loja com a vassoura – água começa a sair de bueiros! – dizia quem estava filmando, não vi essa água, presumo que havia mesmo água saindo dos bueiros.
      A seguir a água começa a subir, metros de água chegando ao segundo andar das casas.
      Pera aí, tem algo estranho.
      Dias de chuva intensa? E o povo fica esperando alagar tudo pra sair de casa…
      Só eu acho esquisito isso?
      Instinto de preservação, cadê você?
      Chuva mesmo, ou algum espírito de porco abriu uma represa? Aí explica.

      • Muita gente não quer sair pois sabe que suas casas serão saqueadas e perderão o patrimônio que levaram uma vida toda para construir.
        Não estou dizendo que seja a melhor escolha, mas provavelmente essas pessoas calcularam mal o risco. Provavelmente não acharam que iriam perder suas vidas, acharam que dava para ficar, salvar seu patrimônio e suas vidas.

      • Realmente, tem muita coisa estranha e mal explicada nisso tudo. E brigar por versões em vez de ater-se a fatos não ajuda em nada. O momento agora é de socorrer quem precisa, e não de fazer politicagem. Triste que uma obviedade dessas tenha que ser dita…

      • O volume de chuva encontra rios, arroios e um escoamento completamente subdimensionado.

        Relatos de pessoas conhecidas em regiões afetadas dão conta de que a água leva poucos minutos pra subir. É muito rápido. As pessoas acham que vai dar tempo de erguer/suspender móveis e outros bens, e quando você repara a água já chegou e está subindo. Sem contar os relatos já mencionados aqui em outras ocasiões, da água subir em alturas e locais onde não tinha chegado antes. Ou seja, pela velocidade, pelo ineditismo em alguns lugares, teve um certo fator surpresa pra algumas pessoas.

        O que não dá pra justificar é a natureza continuar dando porrada e a gente não ter sequer um plano de contingência.

        Se o plano é torcer pra não chover tanto, você não tem um plano

  • Caminhamos para um período turbulento, no qual a lógica, a coerência e a argumentação serão muito avacalhadas, diante de uma plateia que, majoritariamente não tem qualquer condições de detectar isso ou impedi-lo.

    Os poucos que perceberem gritarão desesperados tentando avisar aos demais e serão ignorados ou até esculhambados. As cabeças pensantes acabarão caladas, seja por coração, seja por desânimo.

    Que merda… E o pior: isso já está começando a realmente acontecer…

  • Aqui temos uma informação falsa colocada não se sabe se acidentalmente ou propositalmente como bait dentro de uma notícia, mas a informação falsa no geral não vai ser desmentida porque não há interesse nisso, sendo mais interessante manter a informação falsa mesmo pra reforçar a polarização em torno da pessoa alvo da notícia, que aliás, nem está mais viva pra se defender.
    Não, o PL não apoiou o Bolsonaro na eleição de 2018. Inclusive na época a denominação do partido era Partido da República e não Partido Liberal, sendo que se retomou a denominação original do partido (que tinha deixado de ser usada quando da fusão com o Prona) em 2019, quando o Bolsonaro já tinha assumido a cadeira de presidente. Além disso, o PR fazia parte da coligação que apoiava a candidatura do hoje vice-presidente Geraldo Alckmin para a presidência na ocasião e liberou os seus correligionários para apoiarem Haddad ou Bolsonaro quando do segundo turno, conforme consta em notícia da época do próprio G1.

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